Combinação de agrotóxicos e mudanças
climáticas pode matar peixes amazônicos
Nos laboratórios do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), há um lugar informalmente
chamado de “sala do futuro”. Nesta sala, é simulado um cenário de extremo de
mudanças climáticas, conforme as projeções do Painel Intergovernamental de Mudanças
Climáticas, o IPCC: temperaturas cerca de 5 ºC mais quentes daquilo que é
medido em tempo real, em Manaus, e maior concentração de CO2 na atmosfera (708
partes por milhão a mais, precisamente). Ali, a bióloga Samara Souza conduziu
um experimento com tambaquis, expondo-os, para além dessas condições
extenuantes, a uma mistura de agrotóxicos encontrados nas águas das
proximidades da capital amazonense.
“Quando se fala em
mudanças climáticas, o aumento das temperaturas não é o único elemento em que
devemos prestar atenção”, explica Adalberto Val, coordenador do Instituto
Nacional de Tecnologia (INCT-Adapta), onde a pesquisa foi conduzida. “Também
devemos avaliar como a temperatura e a concentração de CO2 na atmosfera
interagem com outros degradadores ambientais, como é o caso da poluição por
agrotóxicos, formando sinergias perigosas.”
Especializada no
efeito de contaminantes em peixes amazônicos, Samara já tinha uma compreensão
madura de como diferentes agrotóxicos afetam os animais. Combiná-los a um
cenário extremo de mudança climática é, para ela, uma maneira de compreender
melhor o que ocorre nos habitats e quais desafios os organismos enfrentarão no
futuro, na ausência de políticas que lidem com essas questões.
“Porém, é impossível
recriar em laboratório tudo que ocorre no ambiente”, pondera Samara. “Podemos
pensar inclusive que, no habitat, essas interações e seus efeitos podem ser
mais negativos que as encontramos nos experimentos.”
Para o estudo, 36
tambaquis juvenis foram divididos entre um cenário que simula as condições
atuais de temperatura e CO2, e o cenário extremo, sendo expostos a esses
ambientes por 96 horas. Dos quatro agrotóxicos utilizados, dois (clorpirifós e
malathion) são inseticidas, além de um herbicida (atrazina) e um fungicida
(carbendazim), em concentrações semelhantes às encontradas nas águas das
proximidades de Manaus.
Mesmo em concentrações
abaixo do que é considerado letal para os peixes, a mistura dos compostos já
traz impactos negativos aos tambaquis, como danos no fígado e efeitos adversos
no sistema nervoso, que levam à paralisia e perda de funções. Porém, somado ao
cenário climático extremo, alguns desses danos se exacerbam. Em outras
palavras, em temperaturas mais altas, os peixes perdem a capacidade de
metabolizar e se livrar desses compostos em seu corpo.
Isso se dá porque o
aumento da temperatura ambiente de maneira tão aguda exige do peixe ajustes em
seu metabolismo. As consequências disso são graves. Por exemplo, a contaminação
por inseticidas organofosforados leva à
inibição de uma enzima crucial na propagação de impulsos nervosos dos peixes, a
acetilcolinesterase (AChE), e de outras enzimas que têm ação antioxidante nas
brânquias.
Conforme explica
Samara, “em contato com a água contaminada, os peixes que já estavam lidando
com a temperatura alta e a maior concentração de CO2 ficam mais suscetíveis aos
agrotóxicos por seu metabolismo não ter a resposta apropriada a eles,
produzindo efeitos mais nocivos em comparação ao cenário atual de condições
climáticas.”
Essa combinação
produziu danos irreparáveis no fígado dos animais, além de danos também no DNA
de suas células sanguíneas. “Os resultados demonstram que um futuro de mudanças
climáticas combinado com pesticidas será prejudicial para os peixes da Amazônia,
potencialmente levando à perda de biodiversidade”, conclui Samara.
• Os efeitos de agrotóxicos nos peixes
Atualmente, o Brasil
possui cerca de 4.455 agrotóxicos registrados para uso agrícola, segundo dados
do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), com usos e formulações
diversas, que vão desde a lavoura até a pastagem. Desses, 1.017 são inseticidas
organofosforados, a exemplo do clorpirifós e do malathion, utilizados na
pesquisa com os tambaquis.
Diversas pesquisas têm
se voltado ao efeito dos organofosforados em organismos aquáticos devido ao
modo como esses compostos agem. Em insetos, a quem buscam eliminar, esses
químicos atrapalham o bom funcionamento do controle do impulso nervoso,
inibindo a produção da enzima acetilcolinesterase. “Isso coloca o sistema
nervoso em curto, levando a uma paralisia muscular e à morte dos insetos”,
explica Roberto Artoni, biólogo e geneticista da Universidade Federal de São
Carlos.
Todavia, o composto
não afeta apenas as pestes-alvo. Em contato com corpos d’água, esses
organofosforados têm o mesmo efeito em peixes ou em insetos aquáticos. Artoni
também é autor de pesquisas que testam esses efeitos em tambaquis, sobretudo de
um outro organofosforado muito acessível no mercado, o triclorfon. “O composto
leva o peixe a perder o equilíbrio. Dependendo da concentração, o animal passa
a nadar de lado, com uma letargia que o impede de fugir de um predador ou de
migrar em seu habitat natural”, explica. “Pouquíssimos peixes voltam quando
expostos já a 50% da concentração considerada letal.”
Analisando tecido do
fígado de tambaquis, Artoni e sua equipe também averiguaram como o triclorfon
leva à morte celular, ativando genes relacionados à formação de tumores.
“Usando o tambaqui como modelo, podemos presumir que, no ambiente, esses
compostos também irão prejudicar a saúde de outros peixes, ou mesmo a insetos
aquáticos, que fazem parte da cadeia alimentar dos rios. Em última instância,
esses agroquímicos podem chegar a humanos, conforme são acumulados nos músculos
dos peixes, levando a consequências igualmente relevantes à saúde”, explica
Artoni.
• Como os agrotóxicos chegam aos rios da
Amazônia
Em dezembro de 2019, o
ecotoxicologista espanhol Andreu Rico esteve na Amazônia brasileira para
avaliar as concentrações de agrotóxicos nos corpos d’água de Manaus, Belém,
Santarém e Macapá. Foi a partir da pesquisa de Andreu que Samara estabeleceu o
que seriam concentrações realistas dos compostos para utilizar em seus
experimentos com tambaquis.
Andreu conduziu uma
avaliação da capacidade tóxica desses componentes na Amazônia a partir de dados
já existentes sobre a letalidade dos compostos para diferentes espécies. Com
isso, foi possível determinar como, próximos a essas cidades, as concentrações
encontradas dos inseticidas clorpirifós e malathion são altamente perigosas
para a biodiversidade aquática. Ao todo, 11 compostos foram detectados nas
águas.
“Porém, usamos como
referência espécies que já foram estudadas na literatura, sendo que não havia
dados suficientes ainda para avaliar o risco especificamente de espécies
amazônicas”, avalia Andreu. “Nos agrotóxicos que nós testamos, não achamos uma
diferença significativa na sensibilidade entre peixes da Amazônia em comparação
com peixes de outras regiões”.
O crescimento da
população urbana na Amazônia gerou um aumento na demanda por comida, que passou
a ser atendida por atividades agrícolas de pequeno porte ao redor das regiões
metropolitanas. Segundo dados do MapBiomas, a área dedicada à agricultura aos arredores
de Manaus saltou de 16 hectares, em 2004, para 197, em 2022.
Um artigo publicado
pela The Royal Society of Biological Sciences, em 2013, demonstrou como o
cultivo de frutas e vegetais não-nativos é responsável por um aumento do uso de
agrotóxicos para combater pestes e competição com outras plantas. Uma vez no
solo, os químicos se lixiviam e chegam aos rios com facilidade.
Todavia, os
levantamentos sobre uso de pesticidas na região são feitos por universidades e
centros de pesquisas, apenas. Atualmente, não há um acompanhamento oficial
sobre esse crescimento. A falta de dados disfarça, inclusive, outros usos
diversos desses compostos que ocorrem na região sem o devido controle ou
fiscalização.
Por exemplo, a
professora do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal do Amazonas
(Ufam), Ana Gomes, explica como o triclorfon é utilizado para o combate de
parasitas no cultivo de peixes, pela aquicultura da região. “Como este
agroquímico não tem regulamentação para aplicação em animais aquáticos, seu uso
na aquicultura é irregular. Também não há iniciativa por parte dos setores do
governo da região em monitorar esses produtos na aquicultura”, explica.
Publicações
científicas, como as do próprio Roberto Artoni, trazem relatos de piscicultores
que expõem seus peixes a banhos de imersão com estes compostos, o que gera os
efeitos negativos já mencionados nos próprios animais de cultivo. Os estudos
evidenciam que organofosforados em peixes cultivados podem ficar até 15 dias
nas vísceras do animal sob tratamento. Além disso, se não houver controle de
entrada e saída da água neste cultivo, “a possibilidade desses compostos irem
para os rios é muito relevante”, alerta Ana.
Procurada pela
reportagem, a Associação Independente de Aquicultores do Estado do Amazonas não
reconheceu o uso dos compostos citados na piscicultura do estado. Todavia, não
há uma avaliação formal dessa utilização por parte da associação.
• Agroquímicos no Brasil e suas
alternativas
“O aumento da área
agrícola explica apenas em parte o consumo de agroquímicos no Brasil”, defende
o biólogo Charles dos Santos. Em 2018, Charles publicou um estudo com o
levantamento que colocou o país como o maior consumidor de defensivos agrícolas
no mundo, com um crescimento da demanda de 150% em 15 anos.
Embora esse acréscimo
esteja diretamente relacionado à expansão da fronteira agrícola do país,
Charles coloca como outro fator importante nesse aumento o uso inadequado
desses compostos. “No temor de perder a produção, há uma tendência para se usar
muito mais do que é recomendado, inclusive misturando compostos, para ter essa
sensação de maior controle”, aponta Charles.
Todavia, esses
agroquímicos tem uma alta persistência e alta mobilidade no meio ambiente. O
herbicida atrazina utilizado na pesquisa de Samara, por exemplo, persiste até
100 dias na água antes de se dissolver completamente. Na Europa, a atrazina é
banida já há 20 anos, à semelhança do clorpirifós, também proibido. Todavia, o
Brasil continua sendo um mercado consumidor desses produtos cuja patentes
sequer são nacionais.
Especificamente para a
Amazônia, um cenário de mudanças climáticas somado aos efeitos destes compostos
se apresenta como uma ameaça à segurança alimentar da região, que encontra nos
peixes sua principal fonte de proteínas. Afinal, apenas em Manaus se consome
cerca de 400 toneladas de tambaqui por ano. Além de risco à saúde, essa
combinação também representaria perdas de produtividade na pesca e na
aquicultura da região.
Por outro lado, o
Brasil também é um mercado em potencial para alternativas aos agroquímicos. Por
exemplo, Charles é um entusiasta do controle biológico nas lavouras, que
consiste em introduzir uma espécie que preda a peste em questão até reduzir sua
população ou eliminá-la.
“Mas há ainda outras
alternativas como rotação de culturas e um manejo integrado de pragas até com
drones”, complementa Charles. “As novas gerações de agricultores familiares
precisam ter acesso ao que há de mais novo em ciência e tecnologia para reduzir
o uso de agrotóxicos e até mesmo reduzir seus custos”.
Já na aquicultura,
além da necessidade de haver controle na entrada e saída da água, também estão
sendo desenvolvidas pesquisas no âmbito do Inpa e do INCT-Adapta para utilização da tecnologia de bioflocos.
Trata-se do uso de microrganismos para a melhoria da qualidade da água nos
sistemas de criação, levando a ganhos imunológicos nos animais e,
consequentemente, reduzindo o uso de agroquímicos e outros medicamentos.
Fonte: Mongabay
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