terça-feira, 1 de outubro de 2024

Bets ameaçam ambientes escolares e despertam preocupação de autoridades

Epidemia instalada no país inteiro, os jogos de apostas invadem, agora, as salas de aula do Distrito Federal. Atraídos pela promessa de alcançar dinheiro de forma fácil, adolescentes e jovens têm usado o espaço — e horários — de estudo para arriscar valores em plataformas on-line. Ao Correio, a secretária de Estado de Educação do DF (SEEDF), Hélvia Paranaguá, declarou preocupação com o cenário. A pasta iniciou, na sexta-feira, ações para que a prática seja interrompida o quanto antes. A reportagem esteve nas redondezas de duas escolas para abordar os alunos sobre as bets. Tanto na rede pública quanto na privada, os relatos são os mesmos: as apostas esportivas e os jogos on-line têm sido a principal fonte de diversão de muitos estudantes.

Para a segurança dos entrevistados, usaremos nomes fictícios na identificação. Estudante da rede pública, Camila, 17 anos, cursa o 2° ano do ensino médio. Segundo ela, as apostas acontecem desde o final do ano passado, independentemente das aulas estarem ocorrendo ou não. A adolescente explicou que quem joga costuma convidar os outros colegas, e que isso ocorre principalmente porque as plataformas prometem mais lucros àqueles que captam novos usuários. "Os pais não sabem das bets. Aqui (na escola) é proibido o uso do celular e também dos jogos, então tudo acontece escondido", confidenciou.

De acordo com Alessandra Araújo, psicóloga especialista em atendimento clínico de adolescentes e adultos, as bets são mesmo um motivo para preocupação. "Como estão em fase de desenvolvimento, eles (crianças e adolescentes) são mais vulneráveis a comportamentos impulsivos e podem acabar desenvolvendo vícios. As apostas oferecem recompensas rápidas que estimulam o prazer imediato, mas podem criar um ciclo de compulsão, afastando os jovens de atividades importantes como os estudos e relações sociais", apontou.

Dentre os efeitos negativos que a especialista cita estão a frustração, a baixa autoestima, a ansiedade e os sintomas de depressão. "As apostas podem normalizar comportamentos de risco, levando os jovens a encarar atividades perigosas como algo comum. Isso pode abrir espaço para outros problemas, como uso de substâncias ou impulsividade", reforçou Alessandra.

Desde que virou moda, a mídia tem alertado sobre os riscos de apostar. Apesar disso, há quem desconsidere os fatores comprovados. Samuel tem 18 anos, cursa o 2° ano do ensino médio e confessou, com tranquilidade, que joga desde o início do ano, por influência da própria mãe. "Realmente funciona, a gente já ganhou muito dinheiro. Minha mãe joga todos os dias", confessou. "Geralmente a gente perde cerca de R$ 100 a R$ 150 em cada rodada", informou ele, que trabalha como jovem aprendiz no contraturno escolar e usa o dinheiro nas apostas.

O relato de Samuel dá sentido à teoria apontada pela secretária de Educação. Segundo Hélvia, o governo obteve a informação de que há estudantes utilizando de benefícios, como o Pé-de-Meia — em que estudantes do ensino médio recebem, ao comprovar matrícula e frequência, o pagamento mensal de R$ 200, que pode ser sacado em qualquer momento — para apostar nos jogos. "Nós estamos preocupadíssimos porque os alunos têm acesso à poupança e estão aplicando esse dinheiro nos joguinhos", relatou.

Segundo diretora do Sindicato dos Professores no DF (Sinpro-DF) Márcia Gilda, a demanda ainda não foi recebida pela associação, mas reforçou que a entidade "sempre se posicionará contra tudo aquilo que compromete o processo pedagógico, além de buscar o debate com a sociedade."

•        Problema generalizado

Na rede privada de ensino, o Correio conversou com alunos acompanhados pelos pais. Mariana, 15 anos, estudante do 9° ano, contou que sempre escuta os meninos compartilharem que ganharam grandes quantias, mas, ao mesmo tempo, se lamentando após perderem. O pai demonstrou surpresa ao escutar o relato. Confidenciou não saber que o problema ocorre na escola da filha.

Luiza, 16, também é estudante do 9° ano e disse que quem aposta costuma jogar em grupo e competir sobre quem lucra mais. "Já houve brigas entre alunos que estavam jogando e perderam dinheiro. Os professores costumam advertir e, agora, estão sendo mais rigorosos quanto ao uso do celular." O pai de Luiza disse que, em casa, monitora o uso do celular e alerta para que a adolescente não se deixe levar pelas propagandas dos jogos. As alunas contaram que, para apostar, os estudantes usam o dinheiro que os pais dão para comprar lanche.

O diretor jurídico do Sindicato dos Professores em Estabelecimentos Particulares de Ensino no DF (Sinproep-DF), Rodrigo de Paula, apontou que a preocupação ocorre principalmente em relação ao vício. "Nós temos trabalhado a educação financeira em várias escolas e acredito que, após a divulgação da quantidade de pessoas que estão apostando nessas plataformas, o tema receberá um olhar diferenciado."

A Associação de Pais e Alunos das Instituições de Ensino do Distrito Federal (ASPA-DF) declarou aflição, por meio de nota, e enfatizou que o sistema educacional precisa regular o uso do celular no ambiente escolar. "É fundamental que haja uma diretriz clara e unificada para toda a rede de ensino, a fim de garantir que os dispositivos não se tornem um canal de distrações ou piora na qualidade da aprendizagem dos alunos."

•        Patologia

Segundo Lucas Benevides, médico psiquiatra e professor de medicina no Centro Universitário de Brasília (Uniceub), o vício em bets pode ser considerado uma patologia, categorizado como um transtorno de jogo, reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Quando avançado, o vício exige tratamento. "Os cuidados podem incluir combinação de terapias psicológicas, suporte de grupos de ajuda e, em alguns casos, medicação. A terapia cognitivo-comportamental é comumente usada para ajudar o indivíduo a modificar pensamentos e comportamentos relacionados ao jogo, aprender a gerenciar impulsos, e lidar com problemas associados ao vício; Em casos específicos, medicamentos podem ser prescritos para tratar problemas subjacentes que podem contribuir para o vício, como depressão ou transtornos do espectro bipolar", explicou o especialista.

Aos responsáveis, Amanda Andrade, psicóloga do Grupo Mantevida, sinalizou que estabelecer um relacionamento de confiança com os filhos é essencial para abrir diálogos sobre comportamentos de risco, tanto à saúde mental quanto financeira. "Os sinais podem variar de acordo com o padrão comportamental de cada criança ou adolescente. É importante observar mudanças repentinas em comparação ao comportamento normal."

•        Educar para tratar

Para o economista Newton Marques, a educação financeira deve ser pensada como uma das principais bases a resolver o problema. "As mídias atraem porque mostram que há uma chance de se ter ganho fácil e, por 'deseducação financeira', os jovens passam a questionar a necessidade de estudar, uma vez que podem ficar ricos a partir daquilo." O especialista ressaltou, porém, que o trabalho deve ser estendido aos pais. "Não adianta ensinar aos alunos na escola se em casa os pais não vão entender. Eu costumo dizer que esse é um trabalho de formiguinha, que leva tempo.", completou.

A secretária de Educação afirmou que a matéria faz parte da grade curricular dos estudantes do DF há, pelo menos, cinco anos. "Nós temos uma parceria de educação financeira com o Banco Central (BC); isso é trabalhado com os alunos a partir da escola classe, que são os anos iniciais. Os alunos têm consciência plena do que é educação financeira", apontou Hélvia Paranaguá.

A psicóloga Amanda Andrade destacou que ações educativas nas escolas desempenham um papel essencial. "Devemos entender que o celular, jogos e as redes sociais fazem parte do crescimento do adolescente. Não existem só lados negativos. Em vez de proibir o uso de celulares e videogames, é necessário educar para que desenvolvam um relacionamento equilibrado com a tecnologia, sabendo controlar o tempo e o uso dessas ferramentas sem prejudicar o desenvolvimento pessoal e acadêmico", relatou. 

•        Ações da SEEDF

Na sexta-feira, pela manhã, a secretária de Educação reuniu-se com os 14 coordenadores das regionais de ensino do DF para debater o tema. À reportagem, Hélvia Paranaguá disse que orientará os professores a seguirem rigorosamente a Lei 4131/2008, que proíbe o uso de celulares e de outros aparelhos eletrônicos em salas de aula de escolas públicas e privadas do DF.

"O vício nesses jogos interfere na aprendizagem e retira dos alunos a capacidade de socialização. Nós vamos precisar trabalhar isso junto ao Consed (Conselho Nacional de Secretários da Educação), porque a gente precisa debater o que deve ser feito para que isso seja impedido", declarou.

Hélvia disse que a preocupação será apresentada ao governador Ibaneis Rocha (MDB) e que, se necessário, bloqueadores de celulares poderão ser instalados nas escolas. "Nós vamos fazer um trabalho junto aos pais para que entendam que não há necessidade de levar o celular à escola. Será um trabalho com a comunidade escolar, gestores e famílias", finalizou.

 

•        Bets: das celebridades a leis mais rígidas

Celebridades brasileiras e internacionais têm aproveitado a popularização dos jogos de apostas on-line, as chamadas bets, para ampliar suas fontes de renda. O fenômeno cresceu à medida que plataformas se tornaram patrocinadoras de grandes eventos e times esportivos, com a publicidade de rostos famosos para impulsionar o setor. Entre as principais personalidades destacam-se atletas, influenciadores digitais e músicos.

No Brasil, jogadores de futebol como Vini Jr., Neymar, Ronaldinho Gaúcho e Galvão Bueno estão entre os mais conhecidos. A ascensão dos jogos fez com que muitos associassem suas marcas pessoais a essas plataformas, não só promovendo-as, mas também participando de torneios e eventos exclusivos.

O envolvimento de celebridades com apostas on-line acompanha inúmeras polêmicas. Críticos argumentam que essas parcerias podem promover o vício em jogos, especialmente entre o público jovem. Estima-se que algumas celebridades tenham contratos milionários com empresas de apostas, além de bonificações atreladas ao crescimento da base de usuários das plataformas que promovem.

O cantor Gusttavo Lima, suspeito de participar de um esquema de lavagem de dinheiro de jogos ilegais, falou em honestidade e fazer o certo durante seu primeiro show após ter o pedido de prisão revogado pela Justiça. Ele se apresentou em Marabá (PA), na última sexta-feira.

O sertanejo estava fora do país quando o pedido de prisão foi decretado e voltou ao Brasil no dia seguinte. "Faça o certo, o errado todo mundo faz. Seja honesto. Quando o mundo ameaçar cair sobre o teu lado, a tua honestidade te salvará", disse.

O momento foi registrado por fãs e divulgado nas redes sociais. "Seja certo, seja justo, seja honesto, para que quando tudo parecer desmoronar, só tua honestidade te salvará. Obrigada a cada um de vocês pelo carinho e pela presença", afirmou.

Após o governo federal anunciar um pacote de medidas sobre as bets, entidades do setor e personalidades ficaram contra a publicidade por influenciadores. Para o presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL), Magno José, esses profissionais não têm responsabilidade suficiente para fazer a propaganda das apostas. "Quem não tem responsabilidade com publicidade, contrata influencers que não têm compromisso com o apostador e com ninguém. Só querem repassar a mensagem e ganhar dinheiro", disse.

O Papa Francisco também lamentou a proliferação de publicidade de famosos em casa de apostas. "Fico muito triste ao ver que alguns jogos de futebol e estrelas do esporte promovem plataformas de apostas. Isso não é um jogo, é um vício. É colocar a mão nos bolsos das pessoas, especialmente dos trabalhadores e dos pobres", disse, durante o 10º aniversário do primeiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares (EMMP).

"É uma dependência. Significa colocar as mãos nos bolsos das pessoas, sobretudo dos trabalhadores e dos pobres. Isso destroi famílias inteiras. Na verdade, existem doenças mentais, desespero e suicídios causados por "ter um cassino em cada casa" pelo celular", completou o pontífice.

Na semana passada, o senador Omar Aziz (PSD-AM) pediu à Procuradoria-Geral da República que retire do ar os sites de apostas até a regulamentação da Lei 14.790 de 2023. "E o que mais nos espanta são pseudo-influencers, pseudo-líderes e ídolos, influenciando pessoas a jogarem. Meus amigos, não joguem porque vocês não vão ganhar nunca, isso aí é uma enganação", afirmou o parlamentar.

Aziz também criticou clubes esportivos e empresas de comunicação que financiam o adoecimento de milhões de brasileiros. "Devido à agressividade e ao volume de dinheiro envolvido no mercado de apostas, sabemos que as empresas operadoras estão emaranhadas em todos os aspectos relacionados à temática esportiva, de locutores a treinadores. Clubes de futebol e empresas de comunicação estão se tornando dependentes destes patrocínios, mas às custas das finanças e da saúde mental de milhões de brasileiros", apontou.

<><> Mudança

Proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), o PL 3.563/2024 sugere a alteração das leis que regulam as bets no Brasil. A matéria tem como objetivo "vedar a publicidade, o patrocínio e a promoção de apostas esportivas e jogos on-line, bem como apostas que envolvam resultados de eleições".

O projeto ainda está em tramitação no Senado e aguarda a avaliação da Câmara dos Deputados. Caso aprovada, nenhum tipo de publicidade poderá ser feita em qualquer meio de comunicação — rádio, televisão, jornais, revistas, outdoors, internet, redes sociais e quaisquer outros intermédios. Além disso, as bets não poderão realizar nenhum tipo de patrocínio a clubes ou eventos esportivos e culturais.

Atualmente, muitas casas patrocinam campeonatos esportivos e culturais, clubes de futebol e programas televisivos. A lei atual, 14.790, de 2023, prevê que, a partir de 1º de janeiro de 2025, todas as empresas legalizadas deverão ter responsabilidade na publicidade que divulgarem, passíveis de multa em caso de desinformação ou falsas promessas.

O crescimento explosivo das apostas on-line trouxe à tona a preocupação com o uso dessas plataformas para lavagem de dinheiro. Com o avanço da tecnologia e o rápido aumento de jogadores em todo o mundo, os jogos têm se tornado um meio atraente para atividades ilícitas e ocultação de grandes valores.

Segundo a advogada criminalista Amanda Silva Santos, considerando que a plataforma autorizava o depósito e transferência de valores, os criminosos passaram a usar das contas bets para transferir dinheiro para terceiros. "Outra forma bastante utilizada, é a aposta coordenada, onde o criminoso realiza depósito de valores oriundos da prática criminosa em apostas e depois direcionam os sorteios para pessoas pré-selecionadas que também fazem parte do esquema", disse.

A advogada ressaltou que, para coibir essa prática, a plataforma, além de passar por fiscalização, deverá aplicar regramentos e instituir um sistema adequado para monitoramento dos usuários e transações suspeitas. "A regulamentação dessa atividade, além de ensejar a regularidade das transações, garantem confiabilidade às atividades exercidas pela plataforma e segurança aos usuários", afirmou.

O advogado criminalista Miguel Pereira Neto apontou que em caso de proibição da publicidade das bets, as empresas do setor podem sofrer uma redução significativa de clientes e de lucros. "Se houver uma regulamentação que limite as publicidades, as empresas terão que ajustar suas estratégias de marketing, mas poderão continuar operando de forma mais controlada", destacou.

Para Neto, a prioridade deve ser a transparência dos valores nas casas de apostas. "No aspecto jurídico, portanto, a regularização pode trazer mais transparência e controle sobre o setor de apostas, esportivas ou outras, combatendo assim a lavagem de dinheiro e a manipulação de resultados. Com regras mais rígidas e claras, é possível diminuir a ocorrência de práticas ilegais no mercado de apostas", concluiu.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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