Rios voadores da Amazônia viram corredores
de fumaça tóxica
Brasileiros de Norte a
Sul do País perderam o direito de ver o céu limpo. Em vez disso, quando alguém
olha para cima não só vê uma “espécie de cobertor”, que faz o azul ficar com tons
de cinza, como começa a sentir o cheiro da poluição do ar que afeta diretamente
a saúde humana. A fumaça que há semanas queima a Amazônia e o Cerrado já atinge
extensas áreas do Sul e Sudeste. Ela vem carregada dos perigos do carbono
tóxico, emitido pela queima da vegetação. Este material, altamente absorvente,
provoca o aquecimento atmosférico e causa doenças respiratórias.
“São valores bem
altos”, explica o cientista Eduardo
Landulfo, do Instituto de Pesquisas Energéticas (Ipen e Nucleares e do Laser
Environmental Applications Laboratory (Leal). Ele está se referindo aos índices
de material particulado de 2,5 micrômetros, altamente concentrado na atmosfera.
“Esse material vai se sedimentando, entrando no trato respiratório, então ele
tem consequências para a saúde e para a qualidade do ar.”
As imagens de satélite
mostram que o Sul do Amazonas concentra os maiores focos de incêndio. O rastro
de queimadas começa na região Norte do País, incluindo também os Estados do
Acre e de Rondônia, estendendo-se pelo Centro-Oeste (Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul). A Amazônia boliviana é outra fonte emissora de fumaça, já que a
prática de queimadas também ocorre no país vizinho. “Estão pegando carona. Tem
uma parte que certamente é da queimada localizada na Amazônia, mas está
queimando tudo, infelizmente”, explica o pesquisador do Inpe.
O Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe) já
registrou 5.454 focos de queimadas no Amazonas nesses primeiros 20 dias de
agosto. No mesmo período do ano passado foram registrados 2.331 focos, o que
significa um crescimento de 233%. A fumaça das queimadas na Amazônia segue
praticamente a mesma rota que os rios voadores, fenômeno que ocorre quando a
umidade da floresta tropical desce com força total por um corredor que passa
pelo Centro-Oeste e chega até o Sul e o Sudeste – que intensificou a grande enchente
no início deste ano.
Agora, em vez de
grandes volumes de água suspensa, o que está “descendo” para o Sul do País são
gases tóxicos. Essa fumaça das queimadas na Amazônia, segundo Landulfo, vem
avançando por diversas cidades brasileiras, incluindo Cuiabá, Campo Grande,
Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Florianópolis. “A
qualidade do ar está péssima, justamente em função do material particulado
pequeno, 2,5 micrômetro ou abaixo disso”, conclui.
• Hospitais lotados
Antes mesmo de
“viajar” pelo Brasil, a fumaça que encobre os céus de Manaus já deixou um
rastro de hospitais lotados, seja nas redes pública ou privada de saúde. “Agora
ele está na inalação. No corticoide e amoxicilina”, afirmou a analista fiscal
Diene Teles ao descrever a situação do filho, Tárcio Felipe, de 4 anos. Eles
moram no bairro Praça 14, na zona sul de Manaus, local onde a fumaça começa a
ficar mais perceptível a partir das 18 horas.
“Ele está com problema
de rinite, sinusite e bronquiolite. Começou no último dia 12 com uma tosse seca
e raiz escorrendo”, descreveu a analista fiscal. Ela tentou levá-lo para um
hospital particular, mas o local estava
lotado por conta da quantidade de crianças internadas ou na enfermaria
fazendo inalação. Diene diz se sentir revoltada com a situação. “Todos sabem
que esse período quente sempre vai ter queimada, só que ninguém faz nada antes
para evitar. O povo não tem consciência e começa a fazer queimadas também. Quem
sofre são as crianças”, lamenta.
Há duas semanas, a
dona de casa Miriam Galvão da Silva, de 35 anos, vem lutando com os problemas
de saúde de suas duas filhas, Ana Gabriela, de 10, e Maria, de 4. Elas
apresentam febre, dor de cabeça, dor no corpo e no peito. Embora já tenha
passado no médico antes, a cura está custando a chegar. Moradora do bairro
Alfredo Nascimento, na zona norte de Manaus, ela associa o quadro de saúde da
família com o ar poluído pelas queimadas. “Tem dias que está mais ou menos, mas
tem dias que a fumaça está bem forte”, disse.
A atendente Marcileide
Sampaio, de 42 anos, contou que vinha se recuperando de uma forte crise
alérgica. Ela convive com rinite alérgica e sinusite, e conta que já começava a
se recuperar, quando a fumaça das queimadas na Amazônia trouxe novamente os problemas
de saúde. “Muito ruim, né? Eu, principalmente, quando fiz um tratamento de sete
dias, fiquei bem. Essa semana já voltei [a adoecer] de novo. Por causa da
queimada, garganta ardendo, tossindo, voltei a tossir de novo [e ter] dor de
cabeça. A gente não respira ar puro. Estou a cada dia só piorando”, lamentou.
• Consequências da poluição
Segundo o
pneumologista David Luniere, a exposição prolongada aos alérgenos e poluentes
presentes na fumaça resulta em uma série de problemas de saúde. “Os maiores
danos que a fumaça pode causar estão relacionados à exposição prolongada a
esses poluentes. No sistema respiratório, observamos ressecamento das fossas
nasais, crises de espirros e, muitas vezes, sangramentos nasais. A garganta
pode ficar ressecada, com a presença de pigarro e tosse intensa, seca ou
irritativa”, explicou.
Mas esses sintomas não
se limitam apenas às vias aéreas superiores. “Na inferior, os pacientes podem
sentir falta de ar, fôlego curto, chiado no peito e dor ou desconforto no peito
ou nas costas. Outros sintomas, como lacrimejamento, vermelhidão e coceira nos
olhos, também são comuns devido à exposição aos poluentes presentes na fumaça”,
detalhou Luniere.
A médio e longo prazo,
a exposição constante à biomassa das queimadas pode levar ao desenvolvimento de
doenças respiratórias crônicas, similares às que acometem fumantes. “As pessoas
podem desenvolver bronquites crônicas e se tornarem mais suscetíveis a doenças
respiratórias e infecciosas, como pneumonia ou infecções virais, especialmente
idosos e crianças, que são os mais afetados”, enfatizou o pneumologista.
Crianças e idosos são
os que mais sofrem. Mas Luniere aponta que pessoas com doenças respiratórias
pré-existentes, como asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, fibrose pulmonar
ou pulmão sequelado por infecções passadas, como a tuberculose, são especialmente
vulneráveis aos danos causados pela fumaça das queimadas na Amazônia.
Essa faixa etária
também sofre com a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Segundo o último
informe da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) do Amazonas, feito na última
sexta-feira (16) e publicado nesta segunda-feira (19), 15,8% dos casos de SRAG
envolvem crianças de até 1 ano, outros 26,3% dos casos envolvem crianças de 1 a
4 anos; 13,2% são de crianças de 5 a 9 anos; 7,9% dos casos são de pessoas
entre 10 a 19 anos; 5,3% dos casos afetam adultos entre 20 a 39 anos; 10,5%
para pessoas com idade entre 40 a 59 anos; e, por fim, 21,1% dos casos afetam
pessoas com mais 60 anos.
• Omissão oficial
Para a reportagem da
Amazônia Real, a Secretaria de Saúde do Estado do Amazonas (Seas) informou que
há casos relacionados a problemas respiratórios, mas que não há dados
específicos sobre os causados diretamente pelos efeitos da fumaça. Os dados
gerais indicam que houve, neste ano, 3.171 casos de SRAG em todo o Estado.
Foram 109 nas últimas três semanas, quando a fumaça das queimadas se
intensificaram nos céus de Manaus.
Informação semelhante
foi dada pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) ao ser questionado sobre a
quantidade de atendimentos médicos nas unidades de saúde do município
relacionadas à fumaça. “Sabe-se que diversos fatores podem contribuir para o
agravamento das condições respiratórias, incluindo a sazonalidade, a poluição
do ar e outros elementos ambientais”, disse a secretaria em nota.
Com base nos dados
disponíveis, a secretaria informou sobre o número de atendimentos ocorridos na
Atenção Primária à Saúde de Manaus que tiveram agravos respiratórios
identificados. “No período de janeiro a agosto de 2023, o número de pessoas que
procuraram a rede municipal por problemas respiratórios foi de 59.040. No mesmo
período de 2024, até o dia 16 de agosto, o número foi de 63.561”, disse a nota
que aponta para o crescimento do número de casos.
O epidemiologista e
pesquisador da Fiocruz Amazônia, Jesem Orellana, explicou que a fumaça
carregada de micro partículas nocivas à saúde podem atingir o sistema
respiratório. “Esses contaminantes geram reação inflamatória e podem até
prejudicar nossa resposta imunológica. Entre os efeitos diretos estão a tosse
seca, sensação de falta de ar, irritação dos olhos e garganta, congestão nasal
ou alergias na pele. Podem agravar doenças respiratórias pré-existentes como
rinite, asma, bronquite, doença pulmonar obstrutiva crônica ou mesmo Síndrome
Respiratória Aguda Grave”, afirmou.
Segundo o pesquisador,
o comprometimento do bem-estar e da saúde no Amazonas é muito preocupante em
2024. “Estamos lidando com altas na incidência (casos novos) da Síndrome
Respiratória Aguda Grave (SRAG) e elevada carga de fumaça tóxica”, apontou.
Para Jesem, o novo recorde de incêndios no Amazonas não surpreende, pois assim
como aconteceu durante a pandemia de Covid-19, a efetividade das medidas ao seu
enfrentamento beira a nulidade, disse o cientista. “Sobretudo no sul do estado
do Amazonas. A fórmula para o descalabro sanitário e o permanente estado de
crise no Amazonas é simples, a cristalina certeza de impunidade”, criticou.
<><> Cenas
que se repetem
No ano de 2019, a
fumaça das queimadas na Amazônia chamou a atenção do País ao chegar aos céus de
São Paulo, escurecendo o dia. À época, o pesquisador do Inpe e colaborador do
Programa Queimadas – Monitoramento por Satélite, Alberto Setzer, afirmou que a
origem da nuvem tóxica na capital paulista provinha da fumaça das queimadas da
Amazônia, em especial do Mato Grosso e de Rondônia, com uma frente fria.
Contribuíram ainda para o quadro, que não é incomum, segundo ele, a fumaça
vinda do Mato Grosso do Sul e de países como Bolívia, Paraguai e norte da
Argentina.
Essa cena voltou a ser
notada em 2022, quando Eduardo Landulfo alertava para a chegada de uma imensa
“língua” de materiais particulados em São Paulo e baixado a uma altitude de 2
mil metros – portanto, facilmente visível.
Apesar de todos os
sinais, o governador do Estado, Wilson Lima (União Brasil), insiste no discurso
de que o estado tem 97% de suas florestas preservadas enquanto cumpre agendas
no Brasil e fora dele falando de sustentabilidade.
Para o “público
interno”, o governador é conhecido por suas posições em favor do garimpo, da
mineração e do agronegócio. Na última sexta-feira (16), ele participou do 23º
Fórum Empresarial Lide, no Rio de Janeiro, quando fez uma explanação sobre o
trabalho para viabilizar a produção de potássio em Autazes (a 113 quilômetros
de Manaus). “Essa é uma mina que demorou 15 anos para chegar à condição que
está e pudesse entregar todas as licenças ambientais. Por conta da burocracia
e, em alguns casos, por conta da convicção daqueles que tomam decisões, isso
aqui não acontecia”, disse o governador, sem mencionar as questões envolvendo a
consulta aos povos indígenas do município.
Na mesma viagem,
Wilson Lima teve ainda uma reunião com o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), e saiu de lá com um compromisso da instituição
financeira em liberar 45 milhões de reais em recursos para o combate às
queimadas no Amazonas até outubro.
Segundo o chefe do
executivo estadual, o recurso será usado para montar uma estratégia de combate
às queimadas no sul do Amazonas. “Isso inclui a compra de carro Auto Bomba
Tanque florestal, a construção de três quartéis [no interior], carros-pipa e
outros implementos que serão importantes e fundamentais para essa pronta
resposta”, disse Lima.
Fonte: Amazônia Real
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