Por que caminhar descalço pode realmente
ajudar os seus pés? A ciência explica
O fascínio de se
movimentar naturalmente, com a possibilidade de menos lesões e pés mais fortes,
tem cativado corredores e caminhantes há anos. Esse fascínio ganhou força
quando “Born to Run”, um livro sobre corredores descalços de longa distância no
México, despertou um interesse global em um estilo de vida descalço e
minimalista.
Agora, mais de uma
década depois, um crescente número de pesquisas continua a demonstrar que
caminhar descalço ou usar calçados minimalistas pode ajudar a restaurar a força
dos pés, aumentar o tamanho dos músculos e melhorar a marcha: em um estudo de
2021 na revista científica Nature, os participantes que usavam calçados
minimalistas aumentaram a força dos pés em uma média de 57,4% em seis meses.
O estudo também
mostrou melhora no equilíbrio e redução do risco de quedas. Andar descalço é
especialmente importante para as crianças, diz Galahad Clark, sapateiro de
sétima geração e fundador da marca de calçados minimalistas Vivobarefoot, pois
é nesse período que a pisada é estabelecida.
• Calçados modernos x minimalistas
“Nossos pés são, na verdade, muito fortes e
resistentes e conseguem lidar com as demandas que impomos a eles, mas não os
usamos como a natureza planejou”, afirma Rina Harris, podóloga funcional de
Londres, na Inglaterra. “Temos 33 articulações em nossos pés e [nossos pés] se
movem em três planos diferentes. Portanto, eles devem se moldar ao terreno em
que caminhamos.” Mas os calçados modernos restringiram nossos padrões naturais
de movimento, afetando nossa marcha e até mesmo a estrutura de nossos pés.
“A maioria dos
calçados modernos tem uma biqueira bastante afunilada, o que significa que os
dedos dos pés ficam amassados e não é possível pressionar para baixo ou engajar
os dedos dos pés e, portanto, também engajar os músculos intrínsecos do pé”,
diz Harris. Além disso, as entressolas almofadadas reduzem a entrada sensorial,
tornando mais difícil sentir o solo sob nós. Isso pode contribuir para a má
postura, a redução do equilíbrio ao longo do tempo e até mesmo o colapso do
arco, levando a problemas musculoesqueléticos.
Enquanto os calçados
modernos têm amortecimento de espuma espessa, biqueira estreita e calcanhar
elevado, os calçados minimalistas, de estilo descalço têm solas flexíveis e
finas, uma biqueira larga para estimular a abertura dos dedos e um design de
queda zero que coloca o calcanhar no mesmo nível dos dedos, como se você
estivesse descalço.
• A transição para um estilo de vida
descalço
Embora as pesquisas
sobre o movimento dos pés descalços sejam promissoras, não jogue fora todos os
seus calçados ainda. A troca muito rápida pode ser uma receita para lesões,
comenta John Mercer, professor de cinesiologia e pesquisador de biomecânica da Universidade
de Nevada, em Las Vegas, nos Estados Unidos.
Nossos pés se
adaptaram aos calçados com amortecimento, perdendo parte de sua força inata.
Além disso, muitos de nós agora são hipersensíveis a qualquer coisa que não
seja solo liso e macio (pense em andar sobre cascalho), portanto, andar
descalço em qualquer lugar pode ser uma tarefa dolorosa.
Basicamente, você não
pode simplesmente se livrar dos sapatos e sair correndo: “Isso é como ficar com
o braço em uma tipóia ou engessado por anos a fio”, diz Clark. “Então, tire o
gesso e a primeira coisa que você faz é sair e jogar uma partida de tênis. É
claro que você vai machucar o braço se fizer isso.” A transição muito rápida
pode sobrecarregar músculos e tendões pouco utilizados, causando fraturas por
estresse, fascite plantar e tendinite de Aquiles. Mercer recomenda começar
devagar.
Primeiro, tente
caminhar pela casa e fora dela em uma superfície macia. Em seguida, faça uma
caminhada curta ao redor do quarteirão. Aumente a quilometragem lentamente,
adicionando um pouco mais a cada semana. “Seus pés lhe dirão quando você já
tiver feito o suficiente”, afirma Harris, e se você sentir alguma dor aguda,
pare, diz Mercer.
Calçados adequados
podem ajudá-lo com a mudança, mas quando você usá-los pela primeira vez, eles
terão uma sensação diferente de qualquer outro calçado que você já tenha
experimentado. “Eles parecerão grandes demais para você porque há muito espaço
na caixa do dedo do pé”, diz Harris. Com mais uso, eles começarão a parecer
mais naturais. A sensação do chão embaixo de você pode parecer estranha e, por
isso, seus pés podem se cansar mais rapidamente. Harris recomenda comprar uma
bola de massagem com pontas para estimular os receptores nervosos.
• Todo mundo deveria andar descalço?
Andar descalço com
mais frequência pode ajudar a fortalecer os pés, mas, assim como qualquer outra
tendência de condicionamento físico, o movimento dos pés descalços pode não ser
para todos. Também não há dados conclusivos sobre o impacto da escolha do calçado
no risco de lesões.
Depois de estudar
tudo, desde calçados descalços até super tênis com amortecimento máximo, a
conclusão de Mercer é que todos devem adotar uma abordagem personalizada. “Por
que um calçado é ótimo para uma pessoa e péssimo para outra? Isso não é
totalmente compreendido, e ainda estamos tentando descobrir”, diz ele.
• Por que os pés humanos se desenvolveram
em arcos?
Por mais de um século,
os biólogos evolucionistas admiraram o design requintado dos pés humanos e como
as características deles nos permitem caminhar eretos sem fazer esforço. Nossos
dedos curtos, por exemplo, permitem-nos percorrer longas distâncias.
Agora, um artigo
publicado na revista científica Nature defende que uma outra parte de nossa
anatomia — um arco localizado na parte superior dos pés — desempenha um papel
ainda mais importante do que se imaginava no campo da mobilidade. A descoberta
aumenta a nossa compreensão da evolução da biomecânica do pé, dizem os
especialistas, e pode levar a pés robóticos e protéticos mais precisos, ajudar
médicos ortopedistas a tratarem problemas nos pés e até inspirar designs de
calçados mais bem pensados.
Chamado de arco tarsal
transversal (a curva horizontal na parte superior do pé), esse atributo
anteriormente subestimado é responsável por mais de 40% da rigidez do pé humano
moderno, de acordo com a equipe de pesquisadores dos Estados Unidos, Japão e Reino
Unido. O arco superior se une ao exemplo mais conhecido na parte inferior do
pé, chamado arco longitudinal medial. Juntos, eles representam a rigidez
exclusiva dos pés humanos, o que nos permite caminhar sem cair e nos distingue
de outros primatas, que dependem de pés mais flexíveis para se agarrar nos
galhos das árvores.
“Ficamos surpresos com
o efeito por ele produzido”, conta Madhusudhan Venkadesan, autor principal do
estudo e professor assistente de engenharia mecânica e ciência de materiais na
Universidade de Yale. “Houve grandes debates sobre como a forma do pé está
relacionada com a rigidez, mas eles se concentraram no arco longitudinal medial
[o arco longo, que compreende o osso redondo do pé até o calcanhar pelo lado
interno]”.
É fácil compreender a
relação entre a curva de um arco e a rigidez do pé utilizando uma nota de
dinheiro. Coloque-a na horizontal e enrole levemente as pontas compridas para
que o meio se dobre — como se estivesse formando um tubo ou túnel rodoviário.
Isso criará um arco, percorrendo longitudinalmente a nota. Empurre um dedo no
meio do arco da nota e note uma certa resistência ou rigidez. A equipe de
Venkadesan queria provas de que um princípio semelhante — que também explica
por que dobrar uma pizza a torna menos flexível — funciona em nossos pés.
“Precisamos criar uma
maneira de testar essa teoria em um pé de verdade”, conta ele.
Para isso, projetaram
uma série de experimentos em que realizavam testes de flexão nos pés de dois
cadáveres humanos. Em seres humanos vivos, é muito difícil isolar o papel do
arco transversal, porque ele funciona em sincronia com outras partes do pé. Mas
nos pés dos cadáveres, os pesquisadores conseguiram remover o tecido elástico
entre os ossos longos — chamados metatarsos — para medir diretamente o impacto
do arco na rigidez dos pés.
O próximo passo foi
entender o papel do arco transversal no contexto da evolução humana. A equipe
de Venkadesan desenvolveu um modelo matemático para reconstruir a história do
pé humano, comparando nosso arco atual com os de fósseis de espécies de hominídeos
extintos.
Conforme suspeitavam,
a presença do arco transversal — que apareceu em outros hominídeos mais de três
milhões de anos antes dos humanos modernos caminharem sobre a terra — era um
elemento importante do bipedalismo. O arco longitudinal medial surgiu depois —
chegando 1,8 milhão de anos atrás, mais precisamente. A combinação desses arcos
criou a rigidez necessária que nos permitiu eventualmente correr maratonas e
tirar fotos pulando para postar nas mídias sociais.
Especialistas dizem
que a pesquisa recente é valiosa porque é a primeira a quantificar a rigidez do
arco transversal.
“Sabemos da presença
do arco transversal há muito tempo, mas nunca tivemos uma maneira de mensurá-lo
e não sabíamos como isso afetava a função geral do pé”, relata Nicholas
Holowka, professor assistente de antropologia da Universidade de Buffalo, em
Nova York, que estuda a evolução do pé humano. “Isso contribui de forma
significativa para a nossa compreensão de como a forma distinta do pé humano
permite a nossa locomoção bípede única”.
Afinal, o que essa
pesquisa significa para as pessoas de pés chatos? O arco transversal é o herói
anônimo de apoio delas.
A falta de um arco
longitudinal medial em pés chatos pode causar estresse em outras áreas do corpo
e dores no pé. Houve uma época em que foi motivo de rejeição automática nas
forças armadas.
Mas a pesquisa de
Venkadesan esclarece por que a maioria das pessoas de pés chatos não sofre de
dores ou lesões crônicas, comenta Holowka.
“Você pode até
acreditar que possa ter pés chatos com um arco longitudinal baixo, mas por ter
um arco transversal relativamente alto, ainda se pode ter um pé rígido”.
Holowka diz, acrescentando que pesquisas futuras devem examinar quaisquer
ligações entre os graus de pés chatos das pessoas e seus arcos transversais.
Ele também está buscando maneiras de quantificar essa curvatura do arco
transversal em pessoas vivas para entender melhor as dores nos pés, que pode
ser a chave para a construção de órteses corretivas.
Outras pesquisas
futuras devem também examinar a variação na anatomia do arco transversal entre
os seres humanos para investigar a correlação entre uma alta curvatura e altos
níveis de rigidez, acrescenta Glen Lichtwark, professor associado de biomecânica
da Universidade de Queensland em St. Lucia, Austrália.
“Você pode ter uma
curva alta, mas pode ter algo que compense em outra parte do corpo. Ou pode
usar seus músculos de maneira diferente. Ainda não sabemos tudo sobre todos
esses aspectos”, diz Lichtwark.
Segundo Lichtwark,
coautor de um artigo complementar da revista científica Nature, a pesquisa tem
aplicações práticas para a saúde dos pés, incluindo o design de robótica e
próteses, e explica o mistério o motivo pelo qual as cirurgias ortopédicas
proporcionam alívio da dor para alguns pacientes e não para outros. Também no
futuro, os funcionários de lojas de sapatos poderão escanear os pés dos
clientes e dar recomendações personalizadas com base na estrutura total
analisada.
“Essa pesquisa nos dá
outra dimensão da estrutura complexa do pé”, explica Lichtwark. Isso destaca
que o pé é tridimensional e que precisamos começar a pensar nisso dessa
maneira.”
Fonte: National
Geographic Brasil
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