PLANO BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL: Por um projeto de tecnologia brasileira
No final de julho
passado, o governo federal lançou a proposta do Plano Brasileiro de
Inteligência Artificial (PBIA), cujo objetivo é transformar o país em um modelo
global de eficiência e inovação no uso de Inteligência Artificial (IA).
O PBIA é abrangente e
busca contemplar necessidades e interesses do Estado brasileiro, da sociedade
civil e da comunidade empresarial. Ao consultar a proposta do plano, sobreveio
a ideia de dialogar com as asserções ali incluídas e tecer alguns comentários
sobre possíveis relações entre a sociedade brasileira e as tecnologias.
Registra-se aqui o
termo tecnologias e não Inteligência Artificial, conforme usos comuns de algo
que se tornou metonímia nas relações comunicacionais da vida cotidiana. Ou
seja, reduz-se o debate sobre tecnologias e sociedade a termos como Inteligência Artificial,
machine learning, ChatGPT e outras acepções que se tornam modismo e esquece-se
de toda uma lógica de produção técnica hoje amparada em códigos, que vão dar
forma a meios técnicos como plataformas comerciais e de redes sociais mediadas,
por exemplo, em sensores, que serão os meios para produzir conexões nas mais
variadas situações, e em dados, uma forma de racionalidade para acúmulo
irrestrito de tudo que informa e se movimenta nos ambientes digitais e não
digitais.
Criticar o uso
demasiado de termos como Inteligência Artificial, que sublima a complexidade da
racionalidade técnica (gestão de códigos, dados e sensores), não quer dizer que
discordo que haja debate a partir desse tipo de termo. Pelo contrário: é preciso
discutir os meios técnicos que nos cercam, utilizando os nomes que o processo
de midiatização da cultura e da sociedade adota para interagir com as pessoas e
as instituições, mas é preciso alertar que as discussões em âmbitos nacionais e
transnacionais prescindem de se observar o fenômeno das Inteligências
Artificiais como integrantes de um problema histórico-social maior que
atravessa as relações entre os humanos e as tecnologias.
No contexto da cultura
brasileira, é necessário lembrar que o país construiu um considerável processo
histórico de projetos e ações voltados para a promoção do desenvolvimento
social, técnico e científico, e é preciso, mesmo que brevemente, registrar alguns
pontos dessa jornada de construção social.
O primeiro ponto a ser
aqui tratado diz respeito a uma tradição de inventores que construíram história
a partir da identidade brasileira, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas,
pesquisadores reconhecidos internacionalmente na área de saúde, e Santos
Dumont, um dedicado cientista da área de aviação.
Juntem-se a esses
brasileiros criativos, a presença desde o final do século XX de intelectuais
que pensaram as tecnologias dentro de uma perspectiva brasileira, como Vilém
Flusser, um estudioso dos códigos digitais e da forma como ocorrem as relações
entre os humanos em um mundo cada vez mais codificado.
Álvaro Vieira Pinto é
outra personalidade relevante da nossa cultura, que fez uma extensa discussão
sobre o conceito de tecnologia, contribuindo para a construção de um arcabouço
teórico sobre a filosofia da técnica, com um olhar filosófico brasileiro.
Milton Santos
contribuiu com discussões sobre o espaço e a globalização, assinalando as
intrincadas relações entre o meio técnico-científico-informacional e o meio
natural, e Arlindo Machado e Laymert Santos pensaram transversalmente a questão
das tecnologias, tendo em conta as interlocuções entre tecnologia, arte e
sociedade.
O segundo ponto em
discussão diz respeito ao âmbito institucional, pois é variada a contribuição
de muitas entidades brasileiras para a construção de um projeto de país com
identidade própria quanto às relações com as tecnologias. Observe o Sistema
Financeiro Nacional, composto por diversificados setores da sociedade,
incluindo instituições públicas, estatais e empresas privadas, que processa uma
numerosa quantidade de dados, que circulam de uma instituição financeira a
outra, de um cidadão para uma instituição financeira, de uma instituição
comercial para um cidadão, sob a mediação de uma instituição financeira,
movimentando as riquezas nacionais.
Além disso, o Brasil é
referência em pesquisa sobre petróleo em águas profundas e se dedicou aos
estudos que tornou o álcool uma alternativa de combustível para carros. A
sociedade brasileira também se viu na necessidade de criar um sistema eleitoral
ágil, seguro e efetivo e hoje o país demora menos de 24 horas, após o
encerramento da votação, para apresentar os resultados das eleições municipais,
estaduais ou nacional. O que dizer de um consistente sistema de saúde
reconhecido mundialmente, cujo funcionamento se alicerça em uma infraestrutura
tecnológica complexa, como é o SUS?
São tão comuns as
contribuições inventivas aqui listadas que as pessoas quase não notam que as
referidas soluções sociais são sustentadas por complexas estruturas
tecnológicas. Muito menos lembram que a veia inventiva brasileira está
registrada nas referidas soluções sociais.
É preciso registrar
também a existência de um conjunto sólido de instituições que participa
cotidianamente do desenvolvimento do país em termos de ciência e tecnologia,
como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), com
contribuições relevantes na divulgação do desenvolvimento científico e
tecnológico do país; o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que tem
por objetivo, entre outros, estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao
uso e desenvolvimento da Internet no Brasil; a Associação Rede Nacional de
Ensino e Pesquisa (RNP), uma rede brasileira para educação e pesquisa, que
interage com universidades, institutos educacionais e culturais, agências de
pesquisa, hospitais de ensino, parques e polos tecnológicos; e a Embrapa, que
atua para construir conhecimentos e tecnologias para a agropecuária brasileira.
Além disto o país
dispõe de um sistema de educação superior público, formado por universidades e
institutos de tecnologias, que se dedica à pesquisa, à educação e à extensão,
contribuindo para a formação daqueles que poderão participar do desenvolvimento
científico e tecnológico da nação.
O leitor pode ter
objeções quanto à efetividade das soluções sociais aqui listadas, mas é preciso
lembrar que projetos de sociedade são passíveis de erros e lapsos e que é
preciso ter acompanhamento constante dos processos que dão vida às soluções
aqui apresentadas. O que não é possível ignorar é o complexo conjunto de
iniciativas da sociedade brasileira para o desenvolvimento técnico e científico
do Brasil.
Feito este breviário
não exaustivo da história do desenvolvimento técnico e científico do Brasil, é
preciso também fazer apreciações sobre os próximos passos que o país intenta
alcançar tendo em conta o Novo Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. As
apreciações são as seguintes:
1. A Inteligência Artificial brasileira
precisa ser reconhecida como uma forma de cosmotécnica, ou seja, um processo
sociocultural sustentado por tecnologias, construído a partir de olhares e
práticas singulares intrínsecos à cultura brasileira. Cosmotécnica como uma
prática inovadora de “florescimento de trabalhos verdadeiramente inaugurais,
capazes de extrair o máximo das potencialidades significantes dos nossos
meios”, como já alertava anos atrás o pensador brasileiro Arlindo Machado.
2. A Inteligência Artificial não é mera
ferramenta de uso técnico, mas se converte em um processo social e técnico que
necessita ser articulado em benefício da humanidade e dos demais entes não
humanos (flora, fauna, recursos minerais e os inventos técnicos).
3. É preciso estabelecer um trabalho
constante de valorização dos processos inventivos locais e, ao mesmo tempo,
respeitar toda a tradição global de elaboração da técnica já construída pela
humanidade.
4. É necessário estabelecer interseções
entre os saberes locais e os saberes globais como premissa de uma construção
social e técnica voltada para a valorização da soberania nacional, ao mesmo
tempo que se reconhece os valores inventivos oriundos das demais nações.
5. É necessário reconhecer outras formas de
produção técnica, além das tradições hegemônicas contemporâneas, indo além do
pensamento único estabelecido pelas iniciativas estadunidense e europeia.
6. A Inteligência Artificial brasileira
precisa ser sustentada por investimentos advindos do setor público e do setor
privado, tanto em atividades de pesquisa básica quanto de pesquisa aplicada.
7. É preciso que as empresas brasileiras se
reconheçam como entes que possuem objetivos sociais vinculados aos interesses
de desenvolvimento da nação brasileira, pois não é mais possível investir em
empresas que só visam ao lucro e não distribuem parte do que ganham em forma de
benefícios sociais, como seguridade social, saúde, lazer, emprego, educação
etc.
8. O desenvolvimento de processos de
Inteligência Artificial de uma nação perpassa construir conhecimentos
alicerçados em lógicas computacionais ligadas à construção de códigos,
interconexão de sensores e gerenciamento de grandes quantidades de dados; é preciso
não ficar preso ao fetiche de que só investir em Inteligência Artificial é
sinônimo de promoção de desenvolvimento tecnológico de um país.
9. É preciso contar com a participação de
autores de diversificados setores da sociedade brasileira em um projeto maior
de desenvolvimento técnico e científico do Brasil, o que demanda um trabalho de
governança multidisciplinar, multissetorial, multirracial, multigênero,
multietário e multi-institucional.
10. É preciso reconhecer a história do
desenvolvimento técnico e científico do país, aprendendo com os erros e
ressignificando as experiências que foram bem-sucedidas.
11. Enfim, para que as asserções acima possam
se concretizar, é preciso que todos os cidadãos tenham acesso a uma educação
multirreferencializada, que leve em conta os saberes locais, os das ciências,
os das artes, a partir de uma posição filosófica clara em benefício dos humanos
e dos não humanos que compõem a existência na Terra.
Um projeto de país,
voltado para o desenvolvimento técnico e científico, envolve assunção de
identidades, uma cosmovisão de si, que se liga aos demais entes, reconhecendo
as diferenças que possam contribuir para o desenvolvimento da humanidade.
Um projeto de
tecnologia a partir dos saberes da cultura brasileira neste sentido vai além de
considerações circunscritas ao âmbito tecnológico somente, por ser necessário
alcançar também as dimensões socioeconômicas e políticas que dão forma ao país,
reconhecendo a participação de todos, pessoas e instituições, conformando-se
como um projeto de soberania nacional, tendo em conta que “lutar por soberania
tecnológica sem lutar por soberania econômica é inútil”, conforme nos assevera
Evgeny Morozov.
Enfim, um projeto de
tecnologia “depende do engajamento e colaboração entre governo, academia, setor
privado e sociedade civil”. Então, brasileiros e brasileiras, uni-vos em prol
de um projeto de Inteligência Artificial na perspectiva da cultura brasileira,
pois outras tecnologias são possíveis.
Fonte: Por Cleonilton
Souza, no Le Monde
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