sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O lucrativo e mortal tráfico de migrantes no México

Mais uma vez, uma caminhonete que transportava migrantes em direção à fronteira com os Estados Unidos foi alvo de tiros no estado de Sonora, no norte do México. O saldo: um menor de idade morto, oito migrantes feridos e o veículo completamente destruído. O ataque ocorreu no último fim de semana, na estrada entre Tubutama e Sáric, a apenas cerca de 50 quilômetros da fronteira internacional.

De acordo com a imprensa local, a criança morta seria mexicana, e os feridos, haitianos. No entanto, as autoridades mexicanas ainda não confirmaram as nacionalidades.

A região fronteiriça em Sonora é uma área disputada por gangues criminosas que buscam controlar o tráfico de migrantes, armas e drogas. Os cartéis de Sinaloa, Jalisco Nova Geração e Caborca operam na área.

"Mortes violentas de migrantes ocorrem constantemente na região. A população já está acostumada", afirma à DW Tamara Aranda, especialista em migração e ativista em Sonora. "Certamente se tratava da caminhonete de um 'coiote' [traficante de pessoas] que levava o grupo à fronteira e pode ser que tenha se recusado a pagar pedágio aos cartéis."

O ataque trouxe à memória um incidente semelhante ocorrido em fevereiro deste ano, quando um menino e duas mulheres migrantes foram assassinados enquanto viajavam em uma caminhonete por Caborca, a poucos quilômetros de Tubutama e Sáric.

"Não deram muitas informações até agora, mas como é possível que uma van transportando menores chegue até Sonora, depois de atravessar vários estados e quilômetros, sem ter sido parada por alguma autoridade, a menos que estejam coniventes com elas?", critica Gloria Valdez, coordenadora do Seminário de Assessoria à Infância Migrante do Colégio de Sonora, associação que acolhe crianças e adolescentes migrantes.

<><> O milionário negócio do tráfico de pessoas

Somente entre janeiro e junho deste ano foram registrados 741 homicídios em Sonora, de acordo com dados oficiais.

Devido aos múltiplos assassinatos, sequestros e extorsões, a fronteira entre o México e os Estados Unidos é considerada a rota migratória terrestre "mais perigosa" do mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Isso não impediu que cerca de um milhão de pessoas cruzassem a fronteira em Sonora em 2023 – movimento aproveitado por traficantes.

Dados de 2022 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) apontam que o tráfico de pessoas movimenta 31 bilhões de dólares por ano em todo o mundo. Somente o que ocorre entre a América Latina e os Estados Unidos seria responsável, em uma estimativa conservadora, por 8,5 bilhões de dólares.

Em 2023, a organização Insight Crime estimou que, apenas na travessia do México para os Estados Unidos, o tráfico ilegal de migrantes possa garantir a organizações criminosas lucros de mais de 12 bilhões de dólares por ano.

<><> Até 20 mil dólares para cruzar a fronteira

No continente americano, os chamados coiotes cobrariam entre 5 mil e 20 mil dólares (entre R$ 27 mil e R$ 100 mil) por pessoa dependendo de diversos fatores, como o local de origem do migrante, os meios de transporte utilizados e o uso de documentos falsos.

Uma opção mais econômica, porém mais perigosa, é atravessar a selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, onde se paga menos de 50 dólares aos traficantes para cruzar a fronteira. É, sem dúvida, um negócio criminoso lucrativo, mas que não garante que os migrantes cheguem sãos ou vivos ao seu destino.

"Migrantes nos contam que precisam pagar quantias similares para chegar a Sonora, mas, na fronteira com os Estados Unidos, podem até ser abandonados [pelos traficantes], caso sejam descobertos pela patrulha fronteiriça", diz a ativista Valdez.

Calcular números exatos é muito difícil e depende da fonte, segundo Aranda. "Mas é fato que, depois das armas e das drogas, o tráfico de pessoas é o negócio mais lucrativo para o crime organizado no México", afirma a especialista.

<><> Migração extracontinental em alta

Além da migração proveniente de países das Américas, como Venezuela, Guatemala, Honduras e Haiti, vê-se atualmente um aumento da migração extracontinental. "Agora temos em Sonora migrantes de cinco continentes: Ásia, África, Oceania, Europa e América", relata Valdez.

Um estudo recente da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime constatou que o tráfico de pessoas para os Estados Unidos evoluiu de tal forma que agora são oferecidos pacotes VIP, que podem custar até 60 mil dólares por pessoa para migrantes da Ásia. O custo depende do local de origem na África ou Ásia, de onde as pessoas geralmente são transportadas para a América do Sul e, em seguida, "sobem" pelo continente até os Estados Unidos.

Tudo isso diante de uma aparente permissividade das autoridades mexicanas. "A rota da migração irregular no México não ocorre sem a vigilância do Estado. Há agentes migratórios em cada esquina, então é muito difícil para as pessoas transitarem do sul até o norte", ressalta Aranda.

"Na ausência de uma política migratória horizontal e transversal, a situação vai continuar assim, mesmo com maior vigilância: com tecnologia ou muros, as pessoas vão continuar migrando", considera Valdez.

<><> Brasil na rota do tráfico de pessoas para os EUA

Brasil é um dos países que entrou nessa rota da imigração ilegal com destino aos Estados Unidos, como indicou um relatório da Polícia Federal (PF). De acordo com uma reportagem da TV Globo, que teve acesso ao documento, estrangeiros de vários países compram passagens com conexão no Brasil para outros destinos sul-americanos. Ao chegar no país, deixam de embarcar para o destino final e entram com um pedido de refúgio.

O documento afirma que a maioria dessas pessoas quer uma permissão para entrar no Brasil para, em seguida, tentar entrar ilegalmente nos Estados Unidos ou no Canadá. Grande parte desses migrantes são de países da África e do Sul da Ásia. A grande maioria destes pedidos de refúgio, 70%, foi feita por cidadãos do Nepal, Vietnã e Índia. Somente no aeroporto de Guarulhos, mais de 8 mil estrangeiros pediram refúgio entre janeiro de 2023 e junho deste ano.

Em resposta ao aumento do fluxo migratório, o Ministério da Justiça e Segurança Pública determinou que o Brasil passará a restringir a entrada de imigrantes sem visto para o país.

¨      Crime organizado provoca êxodo em massa no México

O pequeno município de Tila, em Chiapas, no sul do México, é a mais nova vítima de um fenômeno cada vez mais recorrente no país: o êxodo devido ao crime organizado. Recentemente, mais de 4.000 pessoas foram para abrigos e municípios vizinhos após um grave episódio de violência.

Segundo a imprensa local, os residentes deslocados esperam que as autoridades se comprometam a proporcionar mais segurança antes que eles regressarem as suas casas – algo que, até agora, não aconteceu.

O caso de Tila é o sexto de deslocamentos internos devido a conflitos no México apenas em 2024, segundo o Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC, na sigla em inglês). A plataforma estima um total de 8.659 pessoas deslocadas em razão de conflitos este ano. No acumulado de 2008 a 2023, o número chega a 392.000.

Ramón Coria, membro do Coletivo Vítimas de Deslocamentos Internos Forçados e das organizações civis que o acompanham, disse à DW que, até agora, foram relatados quase 10 mil pessoas deslocadas pela violência que começou na quinta-feira da semana passada em Tila.

<><> Um único fenômeno, múltiplas dimensões

O deslocamento interno no México não tem uma origem única. É um fenômeno "multicausal e multidimensional", explica Pablo Cabada, da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

Entre as causas estão os conflitos comunitários – políticos, religiosos, agrários –, a violência gerada por grupos armados, os desastres causados ​​por fenômenos naturais, os projetos de desenvolvimento em grande escala como a mineração ou o desmatamento e as violações dos direitos humanos. No entanto, para especialistas ouvidos pela DW, todos esses episódios têm a violência como denominador comum.

A Comissão Mexicana de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CMDPDH), maior plataforma nesta área, destacou no seu relatório de 2021 que 74% dos episódios registados tiveram origem na violência de grupos armados organizados. O IDMC, por sua vez, contabilizou até 29 mil deslocamentos devido à violência e conflitos em 2021, e 19 mil em razão de desastres naturais.

"Este fenômeno é particularmente prevalente em regiões nas quais a presença e a atividade de grupos criminosos são intensas e onde o controle territorial por parte dessas organizações resulta em altos níveis de violência e insegurança", disse à DW María del Pilar Fuerte, pesquisadora do CentroGeo, com sede em Aguascalientes, México.

Chiapas, junto com Guerrero, Michoacán, Chihuahua e Zacatecas, são as regiões com maior número de deslocados, segundo o último registro do CMDPDH.

A falta de ferramentas dificulta a localização do destino final dessas pessoas, embora geralmente elas se desloquem para cidades próximas ou em direção à fronteira com os Estados Unidos, conforme identificado em estudo publicado pela OIM em 2023.

<><> Crime organizado, em destaque

O deslocamento forçado dessas comunidades ocorre devido a fatores interligados pela violência, que, por sua vez, se deve à presença, principalmente, do crime organizado em sua busca pelo controle de territórios. Ou por motivos mais profundos, como a disputa por recursos ou o livre fluxo de migrantes, comenta Carla Zamora, doutora em Ciências Sociais pelo El Colegio de México.

O especialista mexicano em segurança e analista político David Saucedo explica que o que aconteceu em Tila é produto da "narcoguerra" entre o Cartel de Sinaloa e o Cartel de Jalisco Nova Geração, em consonância com máfias locais como, neste caso, "Los Autónomos", para pressionar e chantagear as comunidades locais a retirarem-se da área.

"Sua ação é a violência como um dispositivo de terror para desapropriar as populações, especialmente nas áreas rurais", conta Kelly Muñoz, pesquisadora em Desenvolvimento Rural da Universidade Autônoma Metropolitana Unidad Xochimilco, no México.

"Essas disputas podem transformar comunidades inteiras em campos de batalha, onde os moradores ficam no meio do conflito", diz Fuerte, do CentroGeo. "A presença militarizada destes grupos em determinadas áreas impõe controle sobre as comunidades, alterando radicalmente o quotidiano dos residentes e obrigando-os a procurar refúgio em outros locais", acrescenta.

Fuerte destaca que esses grupos criminosos também procuram recrutar jovens para se juntarem às suas fileiras, o que faz com que famílias inteiras abandonem suas casas.

"Uma cultura de violência causada pelas drogas começou a criar raízes, tornando-se a aspiração de numerosos jovens, muitos deles recrutados à força", diz Zamora.

<><> Leis diferentes das de refugiados

Ao contrário dos refugiados, que atravessam as fronteiras internacionais, os deslocados internos obedecem à jurisdição do governo nacional, explica Fuertes. A nível federal, o México aprovou uma lei de 2020 para deslocamentos forçados internos, mas a legislação está paralisada no Senado. No nível estadual, Chiapas, Guerrero, Sinaloa e Zacatecas têm leis específicas.

Apesar deste reconhecimento, "no México as pessoas afetadas não têm acesso ao tratamento como vítimas no âmbito do atual quadro jurídico", afirma Fuertes, que defende uma "estratégia abrangente" que aborde tanto as causas do deslocamento quanto as necessidades mais imediatas.

Kelly Muñoz, por sua vez, destaca a ativação de protocolos de alerta sobre os fatores de risco desses deslocamentos nos municípios mais críticos, bem como "um diagnóstico do meio ambiente de forma participativa com as comunidades".

As alternativas passam pelo desmantelamento dos grupos armados, insiste Zamora, mas também pela aposta na coexistência de diferentes projetos de vida.

"É urgente trabalhar na reconstituição do tecido social a partir das raízes comunitárias, uma vez que o impacto psicológico que estes fenômenos terão na população demorará provavelmente várias gerações".

¨      México, da violência criminosa ao terrorismo

A pressão exercida pelo narcotráfico e a corrupção acumulada durante décadas no México – graças à tolerância do então hegemônico Partido Revolucionário Institucional (PRI) e a uma sociedade sem anticorpos, que se habituou à presença de corruptos e traficantes como se fossem parte da paisagem natural – provocou uma fissura profunda que rompe as instituições e o tecido social do país.

Embora o problema mexicano se tenha feito visível para a comunidade internacional pelos altos índices de violência, particularmente nos últimos anos, o que ocorre no México é, na realidade, um longo processo de decomposição política, econômica e social, que deve pelo menos servir de exemplo a outras nações e sociedades.

Nos últimos 18 anos, o México foi fortemente sacudido por episódios análogos aos de países em guerra declarada e que, em qualquer outro contexto, teriam sido reprovados pela comunidade internacional e mobilizado os cidadãos a exigir das autoridades o fim da violência e da perversa impunidade que a acompanha.

A cumplicidade e a inação das autoridades fizeram com que, no contexto da disputa entre os cartéis da droga para intimidar seus rivais e a sociedade, pouco a pouco os limites de sua violência foram se expandindo, até passar a ser terrorismo.

Se fosse possível dizer quando começou a romper-se claramente a fronteira entre uma coisa e outra, eu diria que foi em setembro de 2006, quando, numa discoteca de Uruapan, no estado de Michoacán, no sudoeste do país, apareceram cinco cabeças humanas rodando na pista de dança.

Meios de comunicação nacionais e internacionais noticiaram o selvagem episódio, parte da guerra entre a organização criminosa La Familia Michoacana e o assim chamado Cartel del Milenio. O rosto da barbárie mostrava uma nova faceta para infundir medo, não só ao grupo criminoso rival, mas à sociedade em geral. Nunca antes se vira algo semelhante, ainda que a guerra entre os diversos narcocartéis tenha se iniciado no México por volta de 2002.

Dois anos mais tarde, em 15 de setembro de 2008, em Morelia, na tradicional festa popular pelo início da luta pela independência do México, foram detonadas duas granadas numa praça pública. Três pessoas morreram e mais de 132 ficaram feridas, muitas perdendo diversos membros do corpo.

A violência exercida perante as autoridades e a sociedade, ambas inertes, continuou sua dinâmica, até sua constante presença modificar as dinâmicas sociais no México. Viver com medo passou a ser normal. Mortos e desaparecidos foram engrossando as estatísticas oficiais, passando do extraordinário ao habitual.

Em agosto de 2010, "58 homens e 14 mulheres – a maioria centro-americanos, mas também equatorianos, brasileiros e um índio –, vestidos com bonés de beisebol e roupa desgastada, jaziam em fila, com as mãos atadas. Estavam ensanguentados e espancados com um nível de crueldade similar à exercida pelo ISIS [sigla para 'Estado Islâmico']".

Assim o jornal espanhol El País descrevia o massacre de migrantes perpetrado pelo grupo criminoso Los Zetas, em San Fernando, Tamaulipas, no noroeste do México, a poucos quilômetros da fronteira com os Estados Unidos. Até agora ninguém foi sentenciado por esse crime. Em 2010, o Colégio do México, uma das instituições de pesquisa mais prestigiadas do país, publicou um relatório afirmando que em San Fernando pelo menos 36 policiais trabalhavam para Los Zetas.

O crime organizado mexicano impôs novos parâmetros ao horror. Em 2014, 43 alunos da escola rural Raúl Isidro Burgos, de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, desapareceram numa operação conjunta de militares e policiais federais, estatais e municipais. Graças às famílias desses estudantes e seu protesto imediato, o caso manteve em xeque o governo mexicano por pelo menos dois anos.

A história comoveu o mundo, até que a ausência dos jovens filhos de camponeses, idealistas, pobres entre os pobres, virou hábito. Os cidadãos comuns regressaram a suas casas, a seu próprio inferno pessoal, e o governo conseguiu alterar todas as pistas que poderiam ajudar a responsabilizar penalmente os culpados.

Em 17 de outubro de 2019, uma pequena facção do Cartel de Sinaloa tomou as ruas de Culiacán, no estado de Sinaloa, e capturou alguns reféns, assim obrigando o governo a liberar Ovidio Guzmán López, o filho de "El Chapo", que tem ordem de prisão nos EUA por tráfico de drogas e fora capturado com sucesso. O presidente Andrés Manuel López Obrador declarou que o Estado fora vencido e, para "salvar vidas", eles tiveram que soltar Guzmán.

Na época, assinalei que a mostra de fraqueza do governo teria consequências graves para a sociedade mexicana. Quando a autoridade se rendeu, as vidas que disse ter salvado se multiplicaram por muitas outras que deixa declaradamente à mercê do narcotráfico. Assim, 120 milhões de mexicanos permanecem oficialmente sequestrados pelo crime organizado.

As fronteiras do crime organizado no México desapareceram, e a violência se tornou terrorismo. É assim que, em 4 de novembro, houve o indescritível e doloroso episódio da família mórmon LeBarón: três mulheres e seis crianças, entre os quais dois bebês, foram massacrados no norte do país, na divisa entre Sonora e Chihuahua.

Há mais de 20 anos esses estados são dominados pelo crime organizado, por serem um passo estratégico para a travessia de drogas para os Estados Unidos. Outras oito crianças conseguiram escapar do massacre, a maioria correndo sozinha pelo deserto.

A brutal violência cotidiana, valas clandestinas aqui e ali, dezenas de policiais assassinados em um mês, execuções sumárias por parte das autoridades: tudo isso anestesiou a sociedade mexicana e as autoridades.

A tal ponto que, dois dias após os fatos de 4 de novembro, o presidente, cujo hobby é o beisebol, apareceu sorridente, abraçando o jogador mexicano José Urquidy, descrevendo-o como um "tremendo beisebolista". Até então, López Obrador nem fora ao local do inadmissível massacre, nem se reunira com os familiares sobreviventes.

Sem uma estratégia do governo para proteger seus cidadãos e impor ordem e justiça – que é a razão de ser de qualquer governo democrático – e com a sociedade mexicana anestesiada, fica impossível revertermos sozinhos o terrorismo imposto pelo crime organizado.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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