segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Os isolados da seca na Amazônia: o drama de quem não tem água para beber

Isolados e se alimentando do que conseguem colher na roça ou se aventurando a atravessar a fronteira para pescar. Os moradores de comunidades indígenas amazônicas lutam para não voltar para casa sem ter o que comer ou beber. Água potável? A água barrenta é levada ao fogo, na esperança de que a fervura devolva alguma pureza. Um pano comum serve de filtro. No improviso, muitas comunidades estão “se virando” para superar uma estiagem que se imagina ser tão severa quanto a de 2023. Atualmente, 20 municípios e mais de 250 mil pessoas são afetadas pela seca severa no Amazonas, de acordo com a Defesa Civil Estadual. Aproximadamente 63,5 mil famílias são afetadas pela estiagem, o que equivale a cerca de 254 mil pessoas.

Na capital Manaus, o rio Negro chegou nesta sexta-feira (23) à marca de 21,93m. No ano passado, no mesmo período, o nível estava em 24,83m. No município de Tabatinga, o Solimões registrou 0,4m. No ano passado, nesse mesmo dia, o rio marcava 2,61m.

O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) expediu nesta sexta-feira o Alerta de Vazante do Amazonas de 2024. Aumentou a probabilidade de novas marcas históricas na estiagem deste ano. Em Tabatinga, o Solimões tem 65% de chance de superar a marca mínima de 2023. Em Manaus, esse percentual é de 16%, com o Negro ultrapassando os 12,70m de 2023. É a primeira vez que a CPRM emite alerta de seca em sua história.

Miryam Tikuna, líder indígena moradora da comunidade Filadélfia Ūtchigüne, onde vivem 387 famílias, no município de Benjamin Constant (a 1.533 quilômetros de Manaus), na região do Alto Solimões, revela que nas últimas semanas, os indígenas de seu povo passaram a arriscar a sorte pescando em águas do Peru. No lado do Brasil, os peixes estão morrendo nas altas temperaturas.

“Isso está sendo mais perigoso ainda, porque daqui a pouco, os peruanos, nossos vizinhos, podem não gostar disso. Se a situação piorar, eles vão começar a revidar, a proteger o território deles, porque eles também precisam”, admite.

Ela conta que Benjamin Constant, um dos municípios mais afetados pela seca, possui poucos lagos e igarapés. Essa condição hidrológica dificulta o suprimento de necessidades emergenciais, pois há menos opções para pescar. As embarcações estão sem acesso à cidade e os moradores se sentem ilhados.

“Parece que estamos numa ilha sem conexão. Não tem água potável para as comunidades indígenas e para a área rural. É muito difícil ter acesso ao igarapé onde a gente tomava banho; não tem mais como usar”, lamenta a liderança indígena à Amazônia Real.

Para Miryam, o pior ainda está por vir, já que do céu não há qualquer sinal de chuva. “Quando chove, é aquela chuva rápida, chuva de verão”, comenta. Os peixes estão morrendo, e não há nenhum lago perto da comunidade.

Miryam revela que a ajuda humanitária prometida pelas autoridades não chega a todas as comunidades. Pela Associação de Mulheres Indígenas Tikuna (Amit), ela faz parceria com outras entidades para que seu povo possa receber suprimentos, medicamentos para diarreia, e filtros de barro para tratar a água. Lá também não há caixa d’água.

A líder indígena descreve o sofrimento de seu povo. “Estamos fervendo a água para poder beber. Algumas famílias fervem a água barrenta mesmo. Depois, colocam um pano para tirar o barro. Tem um cheiro muito forte. Temos que beber com o nariz fechado. Quando você está com sede, tem que beber assim mesmo. Não dá para esperar”, conta.

Ela afirma que  comunidade sonha em cavar um poço e comprar uma bomba d’água. O grande problema, segundo Miryam, é o preço cobrado pelas empresas: uma média de 5 mil reais por dia trabalhado. “Esse é o preço da diária. E quantos dias eles precisam para encontrar água? Uns três dias. A gente nunca vai ter água com esse valor. Não temos fundos para isso.”

Na comunidade de Miryam Tikuna, a alimentação vem da roça, de onde se obtém mandioca, batatas e bananas. Mas até manter os plantios é difícil, já que falta água para regar. E como nenhuma embarcação consegue chegar até o local, os produtos disparam de preço. “Um quilo de açúcar, na estiagem do ano passado, chegou a custar 13 reais. O galão de água custava 27 reais. Tudo aumenta”, conta Miryam.

<><> Tríplice fronteira

Localizado na região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o município de Tabatinga (a 1.106 km de Manaus) é um dos mais castigados pela estiagem. A presidente da Federação Indígena do Povo Kukami Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia (Federação Kokama – TWRK), Gladis Kokama, falou sobre a situação do município que, na seca extrema, acaba recebendo as mercadorias que deveriam ir para os municípios de Benjamin Constant e Atalaia do Norte, pois estes se encontraram sem navegabilidade.

“Todos vêm para Tabatinga para pegar embarcações, e às vezes, as embarcações podem até sofrer um acidente devido à seca. Tem várias praias surgindo, então os comandantes têm que ter cuidado. Está pior do que no ano passado”, analisa.

Gladis Kokama se diz incrédula com o que vê sobre a estiagem de 2024. “Estou vendo com meus próprios olhos. Atravessei o rio até chegar em Santa Rosa, no Peru, e as pessoas já estão tomando banho no meio do rio. Eu não acreditava”, diz.

A liderança indígena aposta que a educação ambiental poderia ajudar a reverter esse quadro tão grave que o Amazonas enfrenta hoje. “Eu tenho muita esperança na educação. Inclusive, sou professora, pedagoga, e atualmente trabalho no apoio pedagógico no município de Tabatinga. Vejo essa necessidade. Deveríamos mudar essa parte curricular, não só aqui, mas no Estado do Amazonas e no Brasil inteiro”, finaliza.

<><> A seca em Coari

No Médio Solimões, o município de Coari (a 363 km de Manaus) também vivencia os impactos da seca. As populações mais afetadas são as que moram em comunidades ribeirinhas e indígenas. A cacica da comunidade São José da Fortaleza, Maria Dione, do povo Apurinã, relata que até a atividade de manejo de pirarucu, que os moradores do local utilizam para alimentação e também como fonte de renda, está prejudicado. “Não conseguimos tirar o peixe porque os igarapés secaram. Não dá para entrar no canal porque ficou tudo seco”, lamenta.

Em São José da Fortaleza vivem 57 famílias e aproximadamente 300 apurinã. Para chegar à comunidade indígena, que fica no rio Copeá, é necessário quase um dia de viagem a partir da sede do município. Dione afirma que, por ora, a situação não é tão grave, mas já espera pelo pior no próximo mês, quando a estiagem deve chegar em seu ponto alto. “Em setembro, eu não sei como a gente vai se virar. Ano passado, num tempo desse [agosto], não estava aparecendo assim o barranco [referindo-se ao barranco da entrada da comunidade]. Ano passado o barranco só apareceu em setembro”, compara.

A cacica afirma que, além da estiagem severa, é difícil conviver com tanto calor. “Agora é quente! Até as 9 horas, 10 horas, a gente suporta, depois não suporta mais. Uma hora o sol vai acabar conosco. É terrível! Isso é o homem branco que está fazendo, acabando com todas as matas”, finaliza.

<><> Floresta evita efeito da seca

Não é de hoje que os cientistas alertam para a gravidade das alterações climáticas e necessidade de se planejar para o pior, e isso inclui evitar desmatamento para mitigar os efeitos da seca. Em 2024, com a situação cada vez mais crítica da natureza e dos rios, os especialistas voltam a destacar a urgência nos compromissos ambientais e planejamento pelas autoridades e sociedade.

O pesquisador Renato Sena, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), avalia que a seca de 2024 é a continuidade da seca de 2023, quando a região amazônica foi impactada pela estiagem severa causada pelo El Niño. Para Sena, a seca deste ano será desafiadora com “provável drástica redução dos níveis dos rios”, o que vai comprometer principalmente as populações mais suscetíveis (ribeirinhos), com dificuldades no acesso ao transporte, saúde, educação, água e abastecimento, também poderemos observar danos a fauna e flora da região.

“Infelizmente esta é uma tendência dos próximos anos. Temos observado desde o início do século 21 a intensificação e aumento de frequência de eventos extremos sejam cheias ou grandes vazantes nos rios da região se comparado às séries históricas disponíveis”, observa o pesquisador do Inpa.

Sena alertou que, além dos ciclos naturais do clima, como aquecimento dos Oceanos Pacífico e Atlântico, a interferência humana tem papel fundamental no equilíbro climático. “É inegável o papel do homem, na alteração do ambiente natural, ocasionando desmatamento, elevação das temperaturas dos oceanos e queimadas em grandes regiões”.

Estudioso dos impactos da seca na floresta, o cientista Jochen Schongart, também do Inpa,  destaca a necessidade de se restaurar em grande escala as áreas degradadas que se encontram, na maior parte, localizadas no sul da bacia Amazônica. “Temos que evitar novos desmatamentos e incêndios para que o efeito da seca seja mitigado”, sugere o cientista, que é pesquisador-titular da Coordenação de Dinâmica Ambiental.

Ele explica que uma cobertura florestal intacta ajuda a mitigar os efeitos da seca e da estiagem esfriando a atmosfera e na emissão de várias partículas da biota da floresta. Esse processo ajuda na formação de nuvens.

A seca meteorológica causada pelo Atlântico Tropical Norte, a perda da cobertura florestal e os incêndios alteram, segundo o pesquisador, a física e a química da atmosfera resultam num atraso da formação de nuvens e, com isso, no retorno das chuvas.

“Todo aquele vapor de água gerado não entra na bacia amazônica, resultando em condições de secas extremas, principalmente na região Sul e Sudoeste da bacia amazônica. Esse mecanismo continua e estamos observando que os níveis de água dos afluentes no Sul da bacia Amazônica, como Madeira e o próprio Solimões, já estão em níveis bastante críticos”, assinala o pesquisador.

Schongart explica que a estiagem de 2024 será tão desafiadora quanto a de 2023, quando se estabeleceu o recorde da série histórica. “Varia de região para região. Temos que estar muito atentos às regiões que ficam no Sul da bacia amazônica, onde há também o aumento do desmatamento, da degradação florestal e dos incêndios.”

Segundo o Schongart, os fenômenos climáticos e meteorológicos nos oceanos, em sinergia com a perda da cobertura florestal, com a degradação florestal e com as queimadas em larga escala, piora a situação no Sul da região da Amazônia. “Além da seca, temos ondas de calor que afetam tanto a biodiversidade quanto a saúde humana”, alerta.

<><> Defesa Civil

O secretário municipal de Proteção e Defesa Civil de Tabatinga, Donizete Cruz, conduz uma equipe de 17 profissionais na luta para mitigar os efeitos da estiagem. Segundo Cruz, a cidade tem 53 comunidades afetadas de forma direta. Dessas, 39 ficaram totalmente isoladas e o restante, parcialmente. Só nesse município, a Defesa Civil estima que pelo menos 10 mil pessoas foram afetadas diretamente pela estiagem.

“Decretamos a situação de emergência no dia 15 de julho. Acionamos o governo do Estado e o governo federal. O governo do Estado está enviando um subsídio alimentar para a calha do Alto Solimões e também para o município de Tabatinga. A ideia é deixar abastecido agora em setembro, que é o pico da estiagem, tanto com água quanto com alimentos para essas populações”, pontua Cruz.

Ele afirma que as primeiras ações da Defesa Civil do município foram no sentido de adequar um sistema de água que havia nas escolas para que também atendesse à população. O secretário garante que as questões envolvendo combustível, insumos e água potável no município estão sob controle.

À reportagem da Amazônia Real, Donizete relata como é viver as experiências com secas extremas de forma sequencial. “A gente tem que se adaptar, né? Essa nova mudança climática, esse novo mundo aí, nós ainda não nos recuperamos da seca de 2023, já entramos na de 2024. É um desafio”, descreve.

Para Cruz, é preciso quebrar paradigmas, a começar pela população. “Alguns hábitos, algumas atitudes, precisamos mudar, começando por casa, para amenizar essa situação. Não é tão fácil, mas precisamos nos adaptar, precisamos ser resilientes. Antigamente, uma grande seca de rio acontecia a cada 10 anos; hoje, não”, lamenta.

<><> São Paulo de Olivença

A situação não é muito diferente em São Paulo de Olivença (a 991 km de Manaus), como descreve o coordenador de operações da Defesa Civil do município, Lucas Gomes. Com a missão de “não deixar nenhuma comunidade desassistida”, Lucas lembra que o município está executando a perfuração de poços artesianos para comunidades que viram seus lagos secarem e ficaram sem água potável.

São Paulo de Olivença tem 84 comunidades rurais e indígenas em estado de emergência. São pelo menos 5.600 famílias afetadas, conforme dados da Defesa Civil, mas a situação ainda pode piorar. “Eu tenho certeza que em breve a Cosama (Companhia de Saneamento do Amazonas) vai sentir um impacto porque o igarapé de onde ela retira água já está começando a descer rapidamente devido à estiagem. Hoje, já estamos enfrentando dificuldade de navegação devido aos bancos de areia que estão surgindo rapidamente”, alerta Lucas.

A rápida descida do nível dos rios no município de São Paulo de Olivença deu origem a uma das histórias mais dramáticas da estiagem de 2024, até aqui, quando o pescador Belmiro Tavares, de 85 anos, saiu para pescar e foi surpreendido pela rápida seca do rio, ficando encalhado a aproximadamente sete quilômetros de sua casa. Ele tentou sair para desencalhar a canoa e acabou ficando três dias atolado na lama, até ser localizado por um drone e resgatado pela Defesa Civil de São Paulo de Olivença.

O governo do Estado diz ter distribuído 226 toneladas de alimentos para as regiões mais afetadas. Diz ainda ter instalado 24 purificadores de água, sendo 10 deles direcionados para a calha do Alto Solimões, além de enviar 100 caixas d’água para melhorar o acesso à água potável.

 

•        Comunidades do Acre vivem drama com falta de água potável na seca amazônica

Rosineide de Lima, moradora da comunidade do Panorama, em Rio Branco, enfrenta uma luta diária pela sobrevivência em meio à seca severa que atinge a capital do Acre e a região. Em sua casa, onde vivem sete pessoas, o racionamento de água é uma realidade constante.

“O meu poço seca mesmo em agosto”, ela disse à Mongabay, preocupada com a saúde dos cinco filhos. “Por enquanto, ainda estou conseguindo tirar um pouco de água dele para lavar roupa uma vez na semana e fazer as coisas de casa, mas para beber comecei a comprar água mineral desde que meus filhos começaram a ter problemas de saúde, como desidratação.”

Após viver uma seca extrema em 2023, a Amazônia já vem sentindo sinais de uma nova estiagem neste ano. Segundo especialistas, a seca de 2024 pode ser ainda pior. A estiagem já atinge 69% dos municípios da Amazônia, uma alta de 56% em relação ao mesmo período do ano passado.

Panorama, localizada a pouco mais de 6 km do centro de Rio Branco, é uma das 31 comunidades rurais severamente afetadas pela seca que assola o estado. Embora fique a 800 metros das margens do Rio Acre, a comunidade não usa o poluído rio para abastecimento. As 700 famílias do local não têm água encanada e dependem de poços artesianos, que estão secando devido à baixa do lençol freático.

A seca atual é uma das mais graves já registradas no estado, com o Rio Acre atingindo, em julho, a menor cota dos últimos cinco anos: 1,55 metro.

Desde 14 de junho, o nível do rio se mantém abaixo de 2 metros, o que levou a Defesa Civil Nacional a reconhecer a situação de emergência em Rio Branco em 24 de julho. Além disso, um decreto de emergência ambiental foi emitido para os 22 municípios do Acre, com previsões de agravamento nos meses de agosto e setembro. O impacto dessa seca, considerada atípica pela Defesa Civil Municipal, vai além do ambiental, afetando profundamente a vida das pessoas.

Para mitigar os efeitos da seca, a Defesa Civil Municipal instalou 19 caixas d’água em pontos estratégicos, abastecidas por carros-pipas. No entanto, com os poços secando, a demanda por essa água excede a oferta, e o transporte da caixa até as casas muitas vezes é feito manualmente, com baldes. “São muitas famílias que se servem dessas caixas, então precisamos controlar porque não tem como atender toda a nossa necessidade”, diz Lima. “O que priorizo é comprar galão com água para beber porque água é tudo, é vida.”

Francisco Rodrigo de Oliveira, outro morador de Panorama, também sente os efeitos da seca. No final de julho, ele enchia uma caixa com a água que recolhia manualmente de balde em balde. “Sofrer com a falta de água é sentir falta de tudo”, ele disse à Mongabay. “Se falta água em uma casa, falta tudo. Comprar nem sempre dá certo, porque não é todo dia que a gente tem dinheiro, então a gente vai fazendo o que dá.”

Isandra Nascimento mora na comunidade há 13 anos e diz que já se acostumou a usar o mínimo de água para não faltar em nenhum momento. Mesmo com a mobilidade limitada após perder a perna em um acidente de trânsito, ela relata que já chegou a levar roupa para lavar na casa de uma amiga porque não tinha água em sua caixa.

“Somos seis pessoas dentro de casa, então a gente precisa regrar porque senão a água não dá pra nada”, ela disse à Mongabay. “Minha filha, muitas vezes, quando sai do trabalho vai na casa da sogra, toma banho e lava a roupa dela lá pra poder poupar a água que conseguimos reservar aqui.”

A aposentada Ivone da Silva também compartilha a sensação de que a água se tornou um luxo. “Meu sonho é voltar a ter água jorrando, não para estragar, mas para que a gente não fique mais sem, porque água é tudo na vida da gente”, disse, enquanto mostrava como faz para lavar a louça de casa e armazenar água, que já está abaixo da metade do recipiente que usa como apoio.

O vaqueiro Sebastião Matos, que trabalha em uma das fazendas da comunidade, enfrenta dificuldades adicionais. Sem um poço nas terras onde vive, ele depende do abastecimento irregular da Defesa Civil. “No inverno, a gente pega água da chuva ou em algum poço mais perto; agora, com uma seca dessa, a gente depende desse abastecimento pontual da Defesa Civil”, disse à Mongabay. “Mesmo assim é bem complicado, porque não atende a tudo que a gente precisa. Temos que tomar banho, cozinhar, beber, e tem o gado e as plantações, que sofrem também com essa seca.”

<><> Ciclos extremos

Em menos de um ano, o Acre sofreu com os extremos dos eventos da já conhecida sazonalidade da região. Durante o “verão amazônico” (de julho a novembro), que tecnicamente ocorre entre o outono e o inverno brasileiros, o bioma tem altas temperaturas e seca. No “inverno amazônico” (de dezembro a junho), quando o resto do país vive o verão e o outono, a região passa a ter o maior volume de chuvas e rios cheios.

Em março, o Rio Acre, na capital, registrou a segunda maior enchente desde 1971, quando os rios passaram a ser monitorados no estado. O nível chegou a 17,89 metros, e o evento chegou a ser considerado, proporcionalmente, o maior desastre ambiental do estado.

As queimadas também preocupam. Neste ano, o Acre teve 740 focos de incêndio, 96% a mais que em 2023, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Eventos extremos têm se tornado cada vez mais comuns no Brasil, e, segundo Carolina Accorsi Montefusco, engenheira civil e técnica do Laboratório de Hidráulica e Saneamento da Universidade Federal do Acre (Ufac), que pesquisa o impacto desses eventos na população acreana, uma estiagem como a registrada este ano afeta drasticamente a vida de todos da comunidade.

“Com menos precipitação, a água disponível para infiltrar no solo e reabastecer é drasticamente diminuída”, ela disse à Mongabay. “Isso resulta em uma queda no nível do lençol freático, tornando os poços menos produtivos ou completamente secos. A seca prolongada pode fazer com que poços mais rasos sequem, ou seja, o nível do lençol freático cai abaixo da profundidade do poço. Isso exige a perfuração de poços mais profundos, o que é caro e tecnicamente mais complexo”, disse, ao explicar o motivo de comunidades como o Panorama serem as mais afetadas com essa estiagem.

A pesquisadora ressalta, ainda, que para mitigar os impactos é crucial que as autoridades locais e a comunidade científica no Acre permaneçam em monitoramento contínuo desses padrões e desenvolvam um planejamento adequado para enfrentar as consequências dessas variações climáticas.

“Uma opção é a construção de reservatórios que possam ser usados tanto para controle de enchentes quanto para armazenamento de água potável durante períodos de seca. Esses reservatórios ajudam a regular o fluxo dos rios, diminuindo o risco de inundações e armazenando água para uso posterior. Essas medidas, entre outras, não só ajudam a proteger as comunidades contra os riscos de inundações e secas, mas também promovem a resiliência hídrica e a sustentabilidade a longo prazo”, sugere.

De forma unânime, os moradores concordam que a solução para que essa realidade mudasse seria a recuperação de reservatórios de água que já possuem na comunidade, mas estão contaminados com o despejo do esgoto. Outra solução dada pela comunidade é a escavação de poços mais profundos para garantir que eles não sequem.

Já Rosineide Lima completa que o alto custo para a escavação do poço impede que mais moradores tenham acesso à água. “Os nossos poços são mais rasos, porque um poço profundo exige uma estrutura diferente e sai muito caro.”

À Mongabay, a associação dos moradores do bairro informou que tem mantido um diálogo com a Prefeitura de Rio Branco em busca de mapear, pelo menos, dois pontos para a perfuração de poços mais profundos, que possam atender a população.

Irving Foster Brown, cientista ambiental do Woodwell Climate Research Center, também aponta a complexidade da situação. Ele explica que a alternância entre os fenômenos El Niño e La Niña, respectivamente o aquecimento e o esfriamento anormal das águas do Pacífico equatorial, contribui para esses eventos extremos, entre outros fatores. O El Niño ocorreu em 2023 e será substituído por La Niña neste ano. “A seca é mais fácil de prever do que a cheia”, disse Brown à Mongabay. “A mudança na distribuição de correntes no oceano afeta o que acontece na área terrestre, então essas variações afetam o clima também.”

Um relatório da World Weather Attribution (WWA), feito por uma equipe de cientistas climáticos internacionais que analisa eventos climáticos extremos, concluiu que o aquecimento global foi o principal responsável pela grave seca que assolou a bacia do Rio Amazonas em 2023. O El Niño, um fenômeno climático natural que há muito se suspeitava ser um dos principais causadores da seca, teve um papel muito menor, de acordo com a WWA.

A combinação de pouca chuva e alta evaporação desencadeou o que os autores classificaram como uma “seca agrícola” excepcional. Essa condição se tornou 30 vezes mais provável devido ao aquecimento global, o relatório concluiu. Este ano, com a previsão de instalação do fenômeno La Niña a partir de agosto, a seca pode não alcançar níveis tão baixos, mas a falta de chuvas continua preocupante.

Apesar das chuvas que restauraram a navegabilidade e reconectaram as comunidades isoladas pela seca histórica de 2023, os rios em todo o bioma estão em níveis mais baixos agora do que no mesmo período de 2023. Em junho, o nível do Rio Madeira recuou 3 metros em duas semanas, atingindo 4,15 m no dia 19, o nível mais baixo em 2024.

Até agora, os estados amazônicos não registraram chuvas suficientes para indicar mudanças promissoras. Em Rio Branco, choveu 1,20 milímetro até o final de junho — pouco, perto dos 60 mm esperados para o período.

O coordenador da Defesa Civil de Rio Branco, tenente-coronel José Glacio de Souza, ressalta que o baixo nível registrado no Rio Acre em julho já é considerado atípico para o período. “Não temos previsão de chuva, e o que nos chama atenção é que o rio atingiu uma cota de 1,55 metro em julho, quando esses níveis são comumente registrados em outubro, como mostra o histórico das menores cotas,” ele disse à Mongabay. “Por isso, já consideramos um evento atípico porque a previsão é que, sem chuvas, o rio vá secando cada vez mais.

 

Fonte: Amazônia Real/Mongabay

 

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