Os isolados da seca na Amazônia: o drama de
quem não tem água para beber
Isolados e se
alimentando do que conseguem colher na roça ou se aventurando a atravessar a
fronteira para pescar. Os moradores de comunidades indígenas amazônicas lutam
para não voltar para casa sem ter o que comer ou beber. Água potável? A água
barrenta é levada ao fogo, na esperança de que a fervura devolva alguma pureza.
Um pano comum serve de filtro. No improviso, muitas comunidades estão “se
virando” para superar uma estiagem que se imagina ser tão severa quanto a de
2023. Atualmente, 20 municípios e mais de 250 mil pessoas são afetadas pela
seca severa no Amazonas, de acordo com a Defesa Civil Estadual. Aproximadamente
63,5 mil famílias são afetadas pela estiagem, o que equivale a cerca de 254 mil
pessoas.
Na capital Manaus, o
rio Negro chegou nesta sexta-feira (23) à marca de 21,93m. No ano passado, no
mesmo período, o nível estava em 24,83m. No município de Tabatinga, o Solimões
registrou 0,4m. No ano passado, nesse mesmo dia, o rio marcava 2,61m.
O Serviço Geológico do
Brasil (CPRM) expediu nesta sexta-feira o Alerta de Vazante do Amazonas de
2024. Aumentou a probabilidade de novas marcas históricas na estiagem deste
ano. Em Tabatinga, o Solimões tem 65% de chance de superar a marca mínima de
2023. Em Manaus, esse percentual é de 16%, com o Negro ultrapassando os 12,70m
de 2023. É a primeira vez que a CPRM emite alerta de seca em sua história.
Miryam Tikuna, líder
indígena moradora da comunidade Filadélfia Ūtchigüne, onde vivem 387 famílias,
no município de Benjamin Constant (a 1.533 quilômetros de Manaus), na região do
Alto Solimões, revela que nas últimas semanas, os indígenas de seu povo passaram
a arriscar a sorte pescando em águas do Peru. No lado do Brasil, os peixes
estão morrendo nas altas temperaturas.
“Isso está sendo mais
perigoso ainda, porque daqui a pouco, os peruanos, nossos vizinhos, podem não
gostar disso. Se a situação piorar, eles vão começar a revidar, a proteger o
território deles, porque eles também precisam”, admite.
Ela conta que Benjamin
Constant, um dos municípios mais afetados pela seca, possui poucos lagos e
igarapés. Essa condição hidrológica dificulta o suprimento de necessidades
emergenciais, pois há menos opções para pescar. As embarcações estão sem acesso
à cidade e os moradores se sentem ilhados.
“Parece que estamos
numa ilha sem conexão. Não tem água potável para as comunidades indígenas e
para a área rural. É muito difícil ter acesso ao igarapé onde a gente tomava
banho; não tem mais como usar”, lamenta a liderança indígena à Amazônia Real.
Para Miryam, o pior
ainda está por vir, já que do céu não há qualquer sinal de chuva. “Quando
chove, é aquela chuva rápida, chuva de verão”, comenta. Os peixes estão
morrendo, e não há nenhum lago perto da comunidade.
Miryam revela que a
ajuda humanitária prometida pelas autoridades não chega a todas as comunidades.
Pela Associação de Mulheres Indígenas Tikuna (Amit), ela faz parceria com
outras entidades para que seu povo possa receber suprimentos, medicamentos para
diarreia, e filtros de barro para tratar a água. Lá também não há caixa d’água.
A líder indígena
descreve o sofrimento de seu povo. “Estamos fervendo a água para poder beber.
Algumas famílias fervem a água barrenta mesmo. Depois, colocam um pano para
tirar o barro. Tem um cheiro muito forte. Temos que beber com o nariz fechado.
Quando você está com sede, tem que beber assim mesmo. Não dá para esperar”,
conta.
Ela afirma que comunidade sonha em cavar um poço e comprar
uma bomba d’água. O grande problema, segundo Miryam, é o preço cobrado pelas
empresas: uma média de 5 mil reais por dia trabalhado. “Esse é o preço da diária.
E quantos dias eles precisam para encontrar água? Uns três dias. A gente nunca
vai ter água com esse valor. Não temos fundos para isso.”
Na comunidade de
Miryam Tikuna, a alimentação vem da roça, de onde se obtém mandioca, batatas e
bananas. Mas até manter os plantios é difícil, já que falta água para regar. E
como nenhuma embarcação consegue chegar até o local, os produtos disparam de preço.
“Um quilo de açúcar, na estiagem do ano passado, chegou a custar 13 reais. O
galão de água custava 27 reais. Tudo aumenta”, conta Miryam.
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Tríplice fronteira
Localizado na região
da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o município de Tabatinga
(a 1.106 km de Manaus) é um dos mais castigados pela estiagem. A presidente da
Federação Indígena do Povo Kukami Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia (Federação
Kokama – TWRK), Gladis Kokama, falou sobre a situação do município que, na seca
extrema, acaba recebendo as mercadorias que deveriam ir para os municípios de
Benjamin Constant e Atalaia do Norte, pois estes se encontraram sem
navegabilidade.
“Todos vêm para
Tabatinga para pegar embarcações, e às vezes, as embarcações podem até sofrer
um acidente devido à seca. Tem várias praias surgindo, então os comandantes têm
que ter cuidado. Está pior do que no ano passado”, analisa.
Gladis Kokama se diz
incrédula com o que vê sobre a estiagem de 2024. “Estou vendo com meus próprios
olhos. Atravessei o rio até chegar em Santa Rosa, no Peru, e as pessoas já
estão tomando banho no meio do rio. Eu não acreditava”, diz.
A liderança indígena
aposta que a educação ambiental poderia ajudar a reverter esse quadro tão grave
que o Amazonas enfrenta hoje. “Eu tenho muita esperança na educação. Inclusive,
sou professora, pedagoga, e atualmente trabalho no apoio pedagógico no município
de Tabatinga. Vejo essa necessidade. Deveríamos mudar essa parte curricular,
não só aqui, mas no Estado do Amazonas e no Brasil inteiro”, finaliza.
<><> A
seca em Coari
No Médio Solimões, o
município de Coari (a 363 km de Manaus) também vivencia os impactos da seca. As
populações mais afetadas são as que moram em comunidades ribeirinhas e
indígenas. A cacica da comunidade São José da Fortaleza, Maria Dione, do povo
Apurinã, relata que até a atividade de manejo de pirarucu, que os moradores do
local utilizam para alimentação e também como fonte de renda, está prejudicado.
“Não conseguimos tirar o peixe porque os igarapés secaram. Não dá para entrar
no canal porque ficou tudo seco”, lamenta.
Em São José da
Fortaleza vivem 57 famílias e aproximadamente 300 apurinã. Para chegar à
comunidade indígena, que fica no rio Copeá, é necessário quase um dia de viagem
a partir da sede do município. Dione afirma que, por ora, a situação não é tão
grave, mas já espera pelo pior no próximo mês, quando a estiagem deve chegar em
seu ponto alto. “Em setembro, eu não sei como a gente vai se virar. Ano
passado, num tempo desse [agosto], não estava aparecendo assim o barranco
[referindo-se ao barranco da entrada da comunidade]. Ano passado o barranco só
apareceu em setembro”, compara.
A cacica afirma que,
além da estiagem severa, é difícil conviver com tanto calor. “Agora é quente!
Até as 9 horas, 10 horas, a gente suporta, depois não suporta mais. Uma hora o
sol vai acabar conosco. É terrível! Isso é o homem branco que está fazendo,
acabando com todas as matas”, finaliza.
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Floresta evita efeito da seca
Não é de hoje que os
cientistas alertam para a gravidade das alterações climáticas e necessidade de
se planejar para o pior, e isso inclui evitar desmatamento para mitigar os
efeitos da seca. Em 2024, com a situação cada vez mais crítica da natureza e dos
rios, os especialistas voltam a destacar a urgência nos compromissos ambientais
e planejamento pelas autoridades e sociedade.
O pesquisador Renato
Sena, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), avalia que a seca
de 2024 é a continuidade da seca de 2023, quando a região amazônica foi
impactada pela estiagem severa causada pelo El Niño. Para Sena, a seca deste
ano será desafiadora com “provável drástica redução dos níveis dos rios”, o que
vai comprometer principalmente as populações mais suscetíveis (ribeirinhos),
com dificuldades no acesso ao transporte, saúde, educação, água e
abastecimento, também poderemos observar danos a fauna e flora da região.
“Infelizmente esta é
uma tendência dos próximos anos. Temos observado desde o início do século 21 a
intensificação e aumento de frequência de eventos extremos sejam cheias ou
grandes vazantes nos rios da região se comparado às séries históricas disponíveis”,
observa o pesquisador do Inpa.
Sena alertou que, além
dos ciclos naturais do clima, como aquecimento dos Oceanos Pacífico e
Atlântico, a interferência humana tem papel fundamental no equilíbro climático.
“É inegável o papel do homem, na alteração do ambiente natural, ocasionando
desmatamento, elevação das temperaturas dos oceanos e queimadas em grandes
regiões”.
Estudioso dos impactos
da seca na floresta, o cientista Jochen Schongart, também do Inpa, destaca a necessidade de se restaurar em
grande escala as áreas degradadas que se encontram, na maior parte, localizadas
no sul da bacia Amazônica. “Temos que evitar novos desmatamentos e incêndios
para que o efeito da seca seja mitigado”, sugere o cientista, que é
pesquisador-titular da Coordenação de Dinâmica Ambiental.
Ele explica que uma
cobertura florestal intacta ajuda a mitigar os efeitos da seca e da estiagem
esfriando a atmosfera e na emissão de várias partículas da biota da floresta.
Esse processo ajuda na formação de nuvens.
A seca meteorológica
causada pelo Atlântico Tropical Norte, a perda da cobertura florestal e os
incêndios alteram, segundo o pesquisador, a física e a química da atmosfera
resultam num atraso da formação de nuvens e, com isso, no retorno das chuvas.
“Todo aquele vapor de
água gerado não entra na bacia amazônica, resultando em condições de secas
extremas, principalmente na região Sul e Sudoeste da bacia amazônica. Esse
mecanismo continua e estamos observando que os níveis de água dos afluentes no
Sul da bacia Amazônica, como Madeira e o próprio Solimões, já estão em níveis
bastante críticos”, assinala o pesquisador.
Schongart explica que
a estiagem de 2024 será tão desafiadora quanto a de 2023, quando se estabeleceu
o recorde da série histórica. “Varia de região para região. Temos que estar
muito atentos às regiões que ficam no Sul da bacia amazônica, onde há também o
aumento do desmatamento, da degradação florestal e dos incêndios.”
Segundo o Schongart,
os fenômenos climáticos e meteorológicos nos oceanos, em sinergia com a perda
da cobertura florestal, com a degradação florestal e com as queimadas em larga
escala, piora a situação no Sul da região da Amazônia. “Além da seca, temos ondas
de calor que afetam tanto a biodiversidade quanto a saúde humana”, alerta.
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Defesa Civil
O secretário municipal
de Proteção e Defesa Civil de Tabatinga, Donizete Cruz, conduz uma equipe de 17
profissionais na luta para mitigar os efeitos da estiagem. Segundo Cruz, a
cidade tem 53 comunidades afetadas de forma direta. Dessas, 39 ficaram totalmente
isoladas e o restante, parcialmente. Só nesse município, a Defesa Civil estima
que pelo menos 10 mil pessoas foram afetadas diretamente pela estiagem.
“Decretamos a situação
de emergência no dia 15 de julho. Acionamos o governo do Estado e o governo
federal. O governo do Estado está enviando um subsídio alimentar para a calha
do Alto Solimões e também para o município de Tabatinga. A ideia é deixar abastecido
agora em setembro, que é o pico da estiagem, tanto com água quanto com
alimentos para essas populações”, pontua Cruz.
Ele afirma que as
primeiras ações da Defesa Civil do município foram no sentido de adequar um
sistema de água que havia nas escolas para que também atendesse à população. O
secretário garante que as questões envolvendo combustível, insumos e água
potável no município estão sob controle.
À reportagem da
Amazônia Real, Donizete relata como é viver as experiências com secas extremas
de forma sequencial. “A gente tem que se adaptar, né? Essa nova mudança
climática, esse novo mundo aí, nós ainda não nos recuperamos da seca de 2023,
já entramos na de 2024. É um desafio”, descreve.
Para Cruz, é preciso
quebrar paradigmas, a começar pela população. “Alguns hábitos, algumas
atitudes, precisamos mudar, começando por casa, para amenizar essa situação.
Não é tão fácil, mas precisamos nos adaptar, precisamos ser resilientes.
Antigamente, uma grande seca de rio acontecia a cada 10 anos; hoje, não”,
lamenta.
<><> São
Paulo de Olivença
A situação não é muito
diferente em São Paulo de Olivença (a 991 km de Manaus), como descreve o
coordenador de operações da Defesa Civil do município, Lucas Gomes. Com a
missão de “não deixar nenhuma comunidade desassistida”, Lucas lembra que o
município está executando a perfuração de poços artesianos para comunidades que
viram seus lagos secarem e ficaram sem água potável.
São Paulo de Olivença
tem 84 comunidades rurais e indígenas em estado de emergência. São pelo menos
5.600 famílias afetadas, conforme dados da Defesa Civil, mas a situação ainda
pode piorar. “Eu tenho certeza que em breve a Cosama (Companhia de Saneamento
do Amazonas) vai sentir um impacto porque o igarapé de onde ela retira água já
está começando a descer rapidamente devido à estiagem. Hoje, já estamos
enfrentando dificuldade de navegação devido aos bancos de areia que estão
surgindo rapidamente”, alerta Lucas.
A rápida descida do
nível dos rios no município de São Paulo de Olivença deu origem a uma das
histórias mais dramáticas da estiagem de 2024, até aqui, quando o pescador
Belmiro Tavares, de 85 anos, saiu para pescar e foi surpreendido pela rápida
seca do rio, ficando encalhado a aproximadamente sete quilômetros de sua casa.
Ele tentou sair para desencalhar a canoa e acabou ficando três dias atolado na
lama, até ser localizado por um drone e resgatado pela Defesa Civil de São
Paulo de Olivença.
O governo do Estado
diz ter distribuído 226 toneladas de alimentos para as regiões mais afetadas.
Diz ainda ter instalado 24 purificadores de água, sendo 10 deles direcionados
para a calha do Alto Solimões, além de enviar 100 caixas d’água para melhorar o
acesso à água potável.
• Comunidades do Acre vivem drama com
falta de água potável na seca amazônica
Rosineide de Lima,
moradora da comunidade do Panorama, em Rio Branco, enfrenta uma luta diária
pela sobrevivência em meio à seca severa que atinge a capital do Acre e a
região. Em sua casa, onde vivem sete pessoas, o racionamento de água é uma
realidade constante.
“O meu poço seca mesmo
em agosto”, ela disse à Mongabay, preocupada com a saúde dos cinco filhos. “Por
enquanto, ainda estou conseguindo tirar um pouco de água dele para lavar roupa
uma vez na semana e fazer as coisas de casa, mas para beber comecei a comprar
água mineral desde que meus filhos começaram a ter problemas de saúde, como
desidratação.”
Após viver uma seca
extrema em 2023, a Amazônia já vem sentindo sinais de uma nova estiagem neste
ano. Segundo especialistas, a seca de 2024 pode ser ainda pior. A estiagem já
atinge 69% dos municípios da Amazônia, uma alta de 56% em relação ao mesmo período
do ano passado.
Panorama, localizada a
pouco mais de 6 km do centro de Rio Branco, é uma das 31 comunidades rurais
severamente afetadas pela seca que assola o estado. Embora fique a 800 metros
das margens do Rio Acre, a comunidade não usa o poluído rio para abastecimento.
As 700 famílias do local não têm água encanada e dependem de poços artesianos,
que estão secando devido à baixa do lençol freático.
A seca atual é uma das
mais graves já registradas no estado, com o Rio Acre atingindo, em julho, a
menor cota dos últimos cinco anos: 1,55 metro.
Desde 14 de junho, o
nível do rio se mantém abaixo de 2 metros, o que levou a Defesa Civil Nacional
a reconhecer a situação de emergência em Rio Branco em 24 de julho. Além disso,
um decreto de emergência ambiental foi emitido para os 22 municípios do Acre,
com previsões de agravamento nos meses de agosto e setembro. O impacto dessa
seca, considerada atípica pela Defesa Civil Municipal, vai além do ambiental,
afetando profundamente a vida das pessoas.
Para mitigar os
efeitos da seca, a Defesa Civil Municipal instalou 19 caixas d’água em pontos
estratégicos, abastecidas por carros-pipas. No entanto, com os poços secando, a
demanda por essa água excede a oferta, e o transporte da caixa até as casas
muitas vezes é feito manualmente, com baldes. “São muitas famílias que se
servem dessas caixas, então precisamos controlar porque não tem como atender
toda a nossa necessidade”, diz Lima. “O que priorizo é comprar galão com água
para beber porque água é tudo, é vida.”
Francisco Rodrigo de
Oliveira, outro morador de Panorama, também sente os efeitos da seca. No final
de julho, ele enchia uma caixa com a água que recolhia manualmente de balde em
balde. “Sofrer com a falta de água é sentir falta de tudo”, ele disse à Mongabay.
“Se falta água em uma casa, falta tudo. Comprar nem sempre dá certo, porque não
é todo dia que a gente tem dinheiro, então a gente vai fazendo o que dá.”
Isandra Nascimento
mora na comunidade há 13 anos e diz que já se acostumou a usar o mínimo de água
para não faltar em nenhum momento. Mesmo com a mobilidade limitada após perder
a perna em um acidente de trânsito, ela relata que já chegou a levar roupa para
lavar na casa de uma amiga porque não tinha água em sua caixa.
“Somos seis pessoas
dentro de casa, então a gente precisa regrar porque senão a água não dá pra
nada”, ela disse à Mongabay. “Minha filha, muitas vezes, quando sai do trabalho
vai na casa da sogra, toma banho e lava a roupa dela lá pra poder poupar a água
que conseguimos reservar aqui.”
A aposentada Ivone da
Silva também compartilha a sensação de que a água se tornou um luxo. “Meu sonho
é voltar a ter água jorrando, não para estragar, mas para que a gente não fique
mais sem, porque água é tudo na vida da gente”, disse, enquanto mostrava como
faz para lavar a louça de casa e armazenar água, que já está abaixo da metade
do recipiente que usa como apoio.
O vaqueiro Sebastião
Matos, que trabalha em uma das fazendas da comunidade, enfrenta dificuldades
adicionais. Sem um poço nas terras onde vive, ele depende do abastecimento
irregular da Defesa Civil. “No inverno, a gente pega água da chuva ou em algum
poço mais perto; agora, com uma seca dessa, a gente depende desse abastecimento
pontual da Defesa Civil”, disse à Mongabay. “Mesmo assim é bem complicado,
porque não atende a tudo que a gente precisa. Temos que tomar banho, cozinhar,
beber, e tem o gado e as plantações, que sofrem também com essa seca.”
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Ciclos extremos
Em menos de um ano, o
Acre sofreu com os extremos dos eventos da já conhecida sazonalidade da região.
Durante o “verão amazônico” (de julho a novembro), que tecnicamente ocorre
entre o outono e o inverno brasileiros, o bioma tem altas temperaturas e seca.
No “inverno amazônico” (de dezembro a junho), quando o resto do país vive o
verão e o outono, a região passa a ter o maior volume de chuvas e rios cheios.
Em março, o Rio Acre,
na capital, registrou a segunda maior enchente desde 1971, quando os rios
passaram a ser monitorados no estado. O nível chegou a 17,89 metros, e o evento
chegou a ser considerado, proporcionalmente, o maior desastre ambiental do estado.
As queimadas também
preocupam. Neste ano, o Acre teve 740 focos de incêndio, 96% a mais que em
2023, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Eventos extremos têm
se tornado cada vez mais comuns no Brasil, e, segundo Carolina Accorsi
Montefusco, engenheira civil e técnica do Laboratório de Hidráulica e
Saneamento da Universidade Federal do Acre (Ufac), que pesquisa o impacto
desses eventos na população acreana, uma estiagem como a registrada este ano
afeta drasticamente a vida de todos da comunidade.
“Com menos
precipitação, a água disponível para infiltrar no solo e reabastecer é
drasticamente diminuída”, ela disse à Mongabay. “Isso resulta em uma queda no
nível do lençol freático, tornando os poços menos produtivos ou completamente
secos. A seca prolongada pode fazer com que poços mais rasos sequem, ou seja, o
nível do lençol freático cai abaixo da profundidade do poço. Isso exige a
perfuração de poços mais profundos, o que é caro e tecnicamente mais complexo”,
disse, ao explicar o motivo de comunidades como o Panorama serem as mais
afetadas com essa estiagem.
A pesquisadora
ressalta, ainda, que para mitigar os impactos é crucial que as autoridades
locais e a comunidade científica no Acre permaneçam em monitoramento contínuo
desses padrões e desenvolvam um planejamento adequado para enfrentar as
consequências dessas variações climáticas.
“Uma opção é a
construção de reservatórios que possam ser usados tanto para controle de
enchentes quanto para armazenamento de água potável durante períodos de seca.
Esses reservatórios ajudam a regular o fluxo dos rios, diminuindo o risco de
inundações e armazenando água para uso posterior. Essas medidas, entre outras,
não só ajudam a proteger as comunidades contra os riscos de inundações e secas,
mas também promovem a resiliência hídrica e a sustentabilidade a longo prazo”,
sugere.
De forma unânime, os
moradores concordam que a solução para que essa realidade mudasse seria a
recuperação de reservatórios de água que já possuem na comunidade, mas estão
contaminados com o despejo do esgoto. Outra solução dada pela comunidade é a
escavação de poços mais profundos para garantir que eles não sequem.
Já Rosineide Lima
completa que o alto custo para a escavação do poço impede que mais moradores
tenham acesso à água. “Os nossos poços são mais rasos, porque um poço profundo
exige uma estrutura diferente e sai muito caro.”
À Mongabay, a
associação dos moradores do bairro informou que tem mantido um diálogo com a
Prefeitura de Rio Branco em busca de mapear, pelo menos, dois pontos para a
perfuração de poços mais profundos, que possam atender a população.
Irving Foster Brown,
cientista ambiental do Woodwell Climate Research Center, também aponta a
complexidade da situação. Ele explica que a alternância entre os fenômenos El
Niño e La Niña, respectivamente o aquecimento e o esfriamento anormal das águas
do Pacífico equatorial, contribui para esses eventos extremos, entre outros
fatores. O El Niño ocorreu em 2023 e será substituído por La Niña neste ano. “A
seca é mais fácil de prever do que a cheia”, disse Brown à Mongabay. “A mudança
na distribuição de correntes no oceano afeta o que acontece na área terrestre,
então essas variações afetam o clima também.”
Um relatório da World
Weather Attribution (WWA), feito por uma equipe de cientistas climáticos
internacionais que analisa eventos climáticos extremos, concluiu que o
aquecimento global foi o principal responsável pela grave seca que assolou a
bacia do Rio Amazonas em 2023. O El Niño, um fenômeno climático natural que há
muito se suspeitava ser um dos principais causadores da seca, teve um papel
muito menor, de acordo com a WWA.
A combinação de pouca
chuva e alta evaporação desencadeou o que os autores classificaram como uma
“seca agrícola” excepcional. Essa condição se tornou 30 vezes mais provável
devido ao aquecimento global, o relatório concluiu. Este ano, com a previsão de
instalação do fenômeno La Niña a partir de agosto, a seca pode não alcançar
níveis tão baixos, mas a falta de chuvas continua preocupante.
Apesar das chuvas que
restauraram a navegabilidade e reconectaram as comunidades isoladas pela seca
histórica de 2023, os rios em todo o bioma estão em níveis mais baixos agora do
que no mesmo período de 2023. Em junho, o nível do Rio Madeira recuou 3 metros
em duas semanas, atingindo 4,15 m no dia 19, o nível mais baixo em 2024.
Até agora, os estados
amazônicos não registraram chuvas suficientes para indicar mudanças
promissoras. Em Rio Branco, choveu 1,20 milímetro até o final de junho — pouco,
perto dos 60 mm esperados para o período.
O coordenador da
Defesa Civil de Rio Branco, tenente-coronel José Glacio de Souza, ressalta que
o baixo nível registrado no Rio Acre em julho já é considerado atípico para o
período. “Não temos previsão de chuva, e o que nos chama atenção é que o rio
atingiu uma cota de 1,55 metro em julho, quando esses níveis são comumente
registrados em outubro, como mostra o histórico das menores cotas,” ele disse à
Mongabay. “Por isso, já consideramos um evento atípico porque a previsão é que,
sem chuvas, o rio vá secando cada vez mais.
Fonte: Amazônia
Real/Mongabay
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