segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Na Bahia, bibliotecas comunitárias estimulam educação antirracista na primeira infância

Era uma vez três mulheres que descobriram nos livros a possibilidade de transformar a vida de dezenas de crianças e suas famílias. Em Vitória da Conquista, município localizado na região sudoeste da Bahia, elas decidiram criar espaços onde meninos e meninas pudessem brincar, imaginar e, principalmente, ler e ouvir histórias nas quais se sentissem representados através de protagonistas negros e negras.

Esses lugares, chamados de bibliotecas comunitárias, estão em pontos geográficos onde o acesso a equipamentos culturais, muitas vezes, não é garantido.

Carolina Maria de Jesus, Nelson Mandela, Dandara e Zumbi dos Palmares são algumas das figuras negras históricas que os pequenos passam a conhecer através dos livros disponíveis nessas bibliotecas. Presentes em áreas rurais e periféricas de Conquista, elas buscam proporcionar a crianças na primeira infância uma educação antirracista a partir do acesso à leitura.

De acordo com o Censo 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE), dos mais de 370 mil habitantes da cidade, 9,12% têm de 0 a 6 anos, faixa etária que compreende uma fase crucial para o desenvolvimento infantil. Isso representa mais de 30 mil crianças, sendo que 66,01% são negras. Além disso, o município do interior baiano abriga a 10ª maior população quilombola do país em números absolutos.

E é exatamente em um território quilombola, certificado em janeiro de 2024 pela Fundação Palmares,  está situada a Biblioteca Comunitária Kilombeco, no bairro Pedrinhas. O nome faz referência à palavra “quilombo” e à travessa estreita onde fica a instituição: o “Beco de Vó Dôla”, batizado assim em homenagem a Maria Petronilha, uma das primeiras mulheres negras a ocupar a localidade. Sua neta, Laiz Gonçalves Souza, é uma das pessoas que leva adiante seu legado e coordena a biblioteca da comunidade, criada há quatro anos.

Em uma pequena casa revestida de azulejo na fachada, a Kilombeco atende cerca de 30 crianças a partir dos dois anos de idade. O projeto começou em 2020, durante a pandemia da covid-19, quando Laiz precisou ajudar sua filha e suas sobrinhas com as aulas remotas. Mas logo ela percebeu que outras famílias também necessitavam do apoio. Dessa forma, uma atividade pontual se tornou uma iniciativa permanente que muda a vida de muitas pessoas, principalmente de meninos e meninas negras do Quilombo de Vó Dôla.

•                                          Impacto na autoestima

Isadora Oliveira, de 7 anos, é uma menina que tem orgulho do seu black power. Ela mora em uma casa situada a poucos metros da Kilombeco. Desde os três anos de idade, frequenta o espaço coordenado por Laiz. Quem a acompanha de perto, como a mãe Luciana Silva, e a voluntária da biblioteca, Maiane Moreira, consegue perceber o quanto a garotinha se desenvolveu ao longo do tempo, inclusive quando o assunto é autoestima.

“Um dia eu falei pra ela brincando: ô Isa, quando você crescer e aguentar secador, vou alisar seu cabelo. Na hora ela respondeu: meu cabelo mesmo não, ele é lindo, é black”, relembra a mãe sorrindo.

Numa folha de papel branca, com giz de cera preto, Isadora desenhou o seu cabelo afro e me pediu que fizesse os cacheados das amiguinhas. “Naiumi, Kiara, eu, Raíssa, Luiza e Lívia”, disse apontando para as figuras. Ela me mostrava quem eram as meninas no seu desenho.

Naquela ocasião, Isa contou que gosta do seu cabelo de qualquer jeito e explicou que é principalmente sua tia quem lhe arruma com diferentes penteados. Disse também que gosta de ir para a escola, mas que lá não costuma ouvir histórias de meninas parecidas com ela.

Na Biblioteca Comunitária Kilombeco, Laiz e as voluntárias do projeto buscam apresentar para as crianças obras literárias que celebram a cultura afro-brasileira e o protagonismo negro, a exemplo do livro “Meninas Negras”, daautora mineira Madu Costa,que de maneira lúdica busca reforçar a autoestima da criança a partir da valorização de seus antepassados.

A rejeição da própria imagem e a dificuldade de confiar em si mesmo são alguns dos possíveis efeitos do racismo no desenvolvimento infantil, de acordo com estudo do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI). Por isso, a introdução de referências artístico-literárias que valorizam a identidade e a cultura negra representa um primeiro passo para auxiliar crianças como Isadora na construção da autoconfiança e do senso de pertencimento.

Para Laiz Gonçalves, uma mulher negra e candomblecista, nascida no Quilombo de Vó Dôla, é um orgulho ver que as novas gerações de sua comunidade não têm medo ou vergonha de afirmar de onde vêm. “Antigamente a gente não falava que era do Candomblé, do Beco ou das Pedrinhas, porque tínhamos medo do preconceito, do racismo. E hoje as crianças falam que são do quilombo onde tem um terreiro”, conta a coordenadora.

O Terreiro de Xangô, inclusive, foi o primeiro espaço físico a abrigar as crianças da Kilombeco. Só foi possível alugar um local específico para as atividades da biblioteca após o projeto ser oficialmente reconhecido como Ponto de Cultura.A certificação foi concedida pelo Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Cidadania e Diversidade, através da Lei Cultura Viva(13.018/2014). O reconhecimento possibilitou que a entidade recebesse apoio financeiro para a manutenção e o desenvolvimento das ações socioculturais.

Não há como negar a extrema importância do investimento de órgãos públicos em iniciativas como a Kilombeco. Mas o alicerce que mantém o projeto vivo é a união e o empenho das mulheres negras do Beco de Vó Dôla. Lideradas por Laiz, elas trabalham juntas para garantir que seus filhos, sobrinhos e netos tenham acesso à educação e, principalmente, consigam viver suas vidas orgulhosos de suas raízes.

Durante a manhã, as crianças de zero a 6 anos frequentam a Creche Municipal Tia Zaza. Já no turno vespertino, elas vão até a biblioteca, onde têm acesso à leitura e outras atividades lúdicas, como desenho e pintura. “A gente sempre escuta das professoras que os alunos daqui estão um pouco mais avançados. É uma benção para a comunidade ter um lugar assim”, explica Maiane Moreira, uma das voluntárias do projeto.

Enquanto creches e escolas ainda são espaços onde o racismo é reproduzido, iniciativas como a Kilombeco surgem para acolher crianças negras em suas particularidades e ensinar sobre o respeito à diversidade étnico-racial. “A gente tinha um problema na creche. Antes de comer o lanche, os meninos tinham que fazer uma oração. Até que nós conversamos com a diretora e explicamos que o culto deles é outro. Agora eles mesmos já sabem que podem dizer não”, conta Laiz Gonçalves Souza.

•                                          Lugares de resistência

A cerca de 10km do Beco de Vó Dôla, está um outro espaço construído por uma mulher negra que é referência para a sua comunidade. Mickelle Xavier é pedagoga e conselheira tutelar. Foi a partir de uma experiência como estudante na Universidade Federal da Bahia (UFBA) que nasceu a Biblioteca Comunitária Miro Cairo. Entre 2018 e 2019, ela atuou como estagiária em um espaço de educação não formal: a Associação Conquistense para Atendimento Especializado à Pessoa Autista (Acaepa).

Quando Mickelle viu Vitória Aparecida, mãe de uma criança autista, iniciar por conta própria um projeto social que pudesse atender outras mães atípicas, ela compreendeu que também precisava fazer algo pela sua comunidade. “Todos nós temos responsabilidade quando o assunto é a educação e a oferta de dignidade para uma criança. Então comecei a pensar sobre isso e não me vi fazendo nada para ajudar essa causa”, conta.

Decidida a contribuir com o futuro das crianças do seu bairro, o Miro Cairo, ela inscreveu a biblioteca como um projeto de extensão da UFBA. No início, conseguiu 300 livros doados por uma empresa do ramo dos recicláveis. Com esse acervo, iniciou atividades como reforço escolar e clubes de leitura em uma área comum de um condomínio residencial, construído através do programa do Governo Federal “Minha Casa, Minha Vida”.

Porém, o local não era adequado para receber os alunos. Não tinha banheiro, nem água ou energia elétrica. Mickelle então decidiu transferir as atividades para a garagem de sua casa. Cinco anos depois, em 2024, o projeto saiu da residência da pedagoga e agora é realizado em um espaço próprio: uma casa alugada graças ao recurso que a iniciativa recebeu do Ministério da Cultura, através da Lei Cultura Viva(13.018/2014).

Assim como tantas outras bibliotecas comunitárias no Brasil, a Miro Cairo partiu da mobilização de uma pessoa da sociedade civil. A pesquisa “O Brasil que Lê”, publicada em 2018, aponta que esses espaços “refletem movimentos de resistência à exclusão e de luta por direitos e cultura”. É exatamente esse o fio condutor do trabalho realizado por Mickelle.

O bairro Miro Cairo, composto principalmente por conjuntos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida, está localizado às margens do anel do contorno rodoviário, em Vitória da Conquista. É uma comunidade situada a quilômetros de distância de equipamentos públicos como museus e centros culturais. Diante de tantas ausências, a biblioteca surge como uma forma de aproximar as famílias, e principalmente os meninos e as meninas, do universo da leitura.

Cerca de 80 crianças são atendidas pelo projeto. A maioria delas são filhos de catadores de recicláveis ou de trabalhadores das indústrias. Para a primeira infância, a biblioteca oferece o Clube de Leitura Mirim, onde os pequenos ouvem histórias e, aqueles que já sabem ler, podem fazer leituras para os coleguinhas.

•                                          Protagonismo negro

O acervo da Biblioteca Comunitária Miro Cairo já ultrapassou a marca de 5.000 títulos. Grande parte das obras é fruto de doações. Mas além disso, Mickelle compra um ou outro livro sempre que o seu orçamento permite. Quando nossa equipe de reportagem visitou o local, numa manhã de sábado, encontramos em exposição diversas produções que trazem nas capas meninos e meninas negras ou abordam temáticas que tratam da diversidade étnico-racial.

“Minha mãe é negra sim!”, de Patrícia Santana; “Que cor é a minha cor?”, de Martha Rodrigues; “E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas”, de Emicida; “O pequeno príncipe preto”, de Rodrigo França. Essas são algumas das literaturas que descobrimos fazer parte do acervo da biblioteca. No novo espaço, crianças corriam, desenhavam e brincavam enquanto aguardavam o momento da contação de histórias.

Uma dessas crianças era Miguel, de 5 anos. Ele estava acompanhado de sua avó, Fátima Vieira. Naquela manhã, o pequeno não estava contagiando a todos com sua alegria costumeira. Há algumas semanas um episódio de violência havia abalado o seu emocional. Dentro do transporte escolar, foi agredido por garotos mais velhos por causa da religião da qual ele e sua mãe são adeptos: oCandomblé Angola.

O racismo religioso é uma problemática que a Biblioteca Comunitária Miro Cairo busca combater através da educação e da leitura. Ao apresentar para os leitores mirins histórias que retratam os orixás e outros elementos das religiões de matrizes africanas, Mickelle acredita que é possível realizar uma transformação, mesmo que a passos pequenos.

Quem também confia no potencial transformador do projeto é Jolucia Santos. Ela é voluntária na biblioteca e mãe de Safira, uma menina que começou a frequentar o espaço com três anos. “É uma ação muito importante. Na periferia, a maioria das crianças são negras e elas precisam se ver nos livros. A minha filha quando vê uma menina com as trancinhas iguais às dela na capa já quer logo ler aquela história”, relata.

De acordo com Lucimar Rosa Dias, pedagoga, mestra em Educação e membro do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), as bibliotecas comunitárias podem atuar como aliadas na promoção de uma educação antirracista para crianças, mas existem fatores que precisam ser levados em consideração, a exemplo da seleção dos livros.

Segundo a pesquisadora, é necessário que seja feita uma curadoria especializada para que não sejam distribuídas obras literárias que se dizem antirracistas, mas na verdade reforçam estereótipos. Além disso, ela aponta que é essencial prestar atenção em quem escreve os livros. “É preciso saber quantos títulos foram de fato produzidos por autores e autoras negras comprometidos com a perspectiva antirracista”, destaca Lucimar.

Desde a sua concepção, a Biblioteca Miro Cairo busca apresentar para as crianças obras que colocam a população negra como protagonista. Mas ainda assim, Mickelle procura formas de ampliar essa atuação com foco no combate ao racismo. “A partir de agora vamos adquirir livros de escritoras negras daqui da cidade e da região. Estamos articulando também a compra de 50 títulos para um clube de leitura preta”, explica.

•                                          Primeiros passos

Enquanto Mickelle Xavier caminha para ampliar o acervo de obras escritas por autores e autoras negras, a professora Juliana Brito dá os primeiros passos para fazer da Biblioteca Comunitária Donaraça uma aliada na luta contra o racismo. Situado na zona rural de Vitória da Conquista, no distrito Cabeceira do Jiboia, o projeto começou a tomar forma em 2014.

Foi naquele ano que Juliana e seu esposo, Josué, adquiriram um sítio no povoado. Mais tarde, em 2018, quando ambos já tinham criado laços com moradores da comunidade, a professora começou a dar aulas de reforço para crianças e adolescentes. O casal também passou a emprestar livros do seu acervo pessoal para vizinhos e pessoas próximas.

Dois anos depois, em 2020, o que antes não tinha nome se tornou oficialmente uma biblioteca comunitária. Uma das principais ações do projeto é a Capanga Literária, que funciona como uma espécie de delivery de literatura. Dentro de uma bolsa, Juliana coloca livros que ela mesma seleciona. Posteriormente, o material é entregue nas casas dos leitores e leitoras que tomam os títulos emprestados por algumas semanas.

Além dos empréstimos de obras literárias, a Donaraça oferece o seu espaço para que mulheres da comunidade possam estudar para concursos públicos, processos seletivos e realizar outros tipos de formação, como aprender artesanato, por exemplo. Joelma Oliveira, de 38 anos, foi uma das pessoas que começou a frequentar o local para receber esse tipo de auxílio e, durante essas visitas, costumava levar junto o seu filho mais novo.

Com pouco mais de três anos de idade,Rafael, que não estava matriculado em uma creche, passou a visitar a biblioteca e, assim, tomar gosto pela literatura mesmo antes de aprender a ler. “Eu via o meu filho criar as histórias a partir das imagens dos livros. Então, eu percebo que a Donaraça ainda tem muito a oferecer para a nossa comunidade”, relata Joelma, que hoje atua como voluntária no projeto criado por Juliana e Josué.

A moradora do Cabeceira do Jiboia conta que o acesso aos livros por meio da biblioteca comunitária foi essencial para o desenvolvimento do seu filho. Com 5 anos de idade, o menino começou a frequentar a escola e, quando chegou lá, surpreendeu os educadores porque já conseguia ler. “A professora me chamou e disse que ia ter que dar uma avançada nele. A gente fica até emocionada e orgulhosa com tudo isso”, destaca.

Histórias como as de Rafael e Joelma fazem Juliana e Josué, dois apaixonados pela literatura e pelos livros, acreditar na importância da Donaraça para aquela comunidade. Com quatro anos de existência do projeto, o objetivo agora é ampliar as atividades e o acervo da biblioteca, inclusive para incluir obras que celebram autores e autoras negras.

No sábado em que nossa reportagem visitou a biblioteca, as crianças estavam reunidas para ouvir uma contação de histórias afro-brasileiras e indígenas. A atividade foi promovida em parceria com o projeto social Maria Nilza. Naquela manhã, era a primeira visita de muitos meninos e meninas à Donaraça. Para a pedagoga Juliana Varges Ferraz, iniciativas como essa precisam ser permanentes, principalmente para crianças na primeira infância.

“Estamos tão acostumados a ver apenas o negativo quando falamos das culturas africanas, que o nosso papel agora é fazer um movimento contrário, não somente falar do sofrimento. E é essencial que esses contos sobre ancestralidade sejam apresentados para crianças nessa faixa etária de aprendizado”, destaca a voluntária do Maria Nilza.

 

Fonte: Conquista Repórter

 

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