segunda-feira, 26 de agosto de 2024

"A meritocracia é uma grande mentira do neoliberalismo", afirma João Paulo Pacífico

João Paulo Pacífico (São Paulo, 1978) não é um executivo comum. Ele usa cabelo comprido "para não parecer como os outros". Sua frase predileta é de Martin Luther King Jr.: “A escuridão não pode expulsar a escuridão; apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio, apenas o amor pode fazer isso”. E ele lança vídeos no Instagram repletos de mensagens anticapitalistas. Em janeiro passado, João Pacífico se tornou o primeiro milionário latino-americano a assinar o manifesto Proud to Pay More, apresentado no Fórum Econômico Mundial de Davos por super-ricos que querem pagar mais impostos. “Quanto mais você tem, mais paga, e ponto. O Estado precisa de dinheiro”, assegura João Pacífico nesta entrevista à CTXT.

A vida de Pacífico, engenheiro de formação, deu uma reviravolta após a crise financeira de 2008. Ele percebeu que o mercado financeiro para o qual trabalhava era desumano. Em 2009, fundou o Grupo Gaia, especializado em operações financeiras e títulos de dívida para pequenos produtores de agricultura orgânica. “Quando me aprofundei na agroecologia, percebi que tudo o que eu apoiava antes estava errado”, diz. Em 2022, vendeu a única empresa do grupo que trabalhava para setores tradicionais e doou todo o dinheiro para uma ONG. Desde então, deixou de ser o dono do Grupo Gaia e passou a ser um empregado. “Acumular dinheiro é coisa de idiotas”, defende com frequência o autor de livros como Onda azul (2017) e Seja líder como o mundo precisa (2022).

O Grupo Gaia apoia projetos de habitação popular, educação, energias renováveis e agricultura orgânica. A empresa movimenta cerca de 4 bilhões de reais em operações financeiras e se orgulha de ter uma equipe mais feminina do que masculina e mais negra do que branca. “Uma sociedade regida por homens brancos e heterossexuais fomenta o individualismo”, afirma.

Com mais de 217.000 seguidores no Instagram, João P. Pacífico é um intruso no Wall Street brasileiro (a avenida Faria Lima de São Paulo). E ele se tornou um guru da esquerda. Seus vídeos contêm duras críticas ao bolsonarismo, ao mercado financeiro, ao setor agropecuário e a todos os tipos de negacionismo.

<><> Eis a entrevista.

·        Após a crise de 2008, sua vida deu uma guinada radical. O que aconteceu?

Em 2002, comecei a financiar o setor agropecuário. Ainda estava dentro do sistema. Pensava que precisávamos dos pesticidas e que o Brasil era o celeiro do mundo. Após a crise de 2008, percebi a falta de humanidade do mercado financeiro. Ele só pensa em ganhar mais dinheiro. Demitiu muitas pessoas de forma desnecessária. Então, decidi montar uma empresa mais humana.

·        Como foi o início da sua relação com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST)?

Todo mundo falava mal deles. Visitei um assentamento e, para mim, abriu-se um novo mundo. Vi que o que o MST dizia fazia sentido. Pensei: tenho que usar minha habilidade para criar operações financeiras a fim de apoiar essas pessoas. Em uma situação de opressão, se você permanece em silêncio, está apoiando o opressor. E o MST estava sendo oprimido pela opinião pública.

·        E então, conseguiu financiamento para o MST, um movimento que ocupa latifúndios improdutivos. Como você conseguiu isso?

Primeiro, emiti um título de dívida. Funcionou. Depois, fiz uma segunda operação para que qualquer pessoa, em vez de colocar o dinheiro no banco, o emprestasse ao MST. Entregamos esse dinheiro a uma cooperativa do MST, que cumpre o combinado e depois paga os investidores com juros.

·        Ou seja, o investidor financia a agricultura sustentável e, além disso, obtém lucro com isso...

Se você deixa o dinheiro no banco, ele não fica parado. O banco o empresta para a indústria de pesticidas ou para uma velhinha com juros exorbitantes. Quando fazemos uma operação como a que fizemos, fazemos com que as pessoas entendam que seu dinheiro é poderoso, porque você está reduzindo a desigualdade e produzindo alimentos orgânicos. É uma revolução. Quando me aprofundei na agroecologia, percebi que tudo o que eu apoiava antes estava errado.

·        Como suas ideias mudaram?

Comecei a levantar a bandeira contra os pesticidas. Passei a defender a reforma agrária e a agricultura familiar. Comecei a criticar a monocultura, as commodities, os transgênicos. Mudei completamente de lado. Então, vendi todas as minhas operações no mercado tradicional.

·        E decidiu transformar suas empresas em uma ONG...

Tecnicamente, vendi a empresa e criei uma gestora de fundos patrimoniais. O dinheiro da venda se transformou em uma doação. Agora tudo pertence a uma associação, uma ONG. Por que fiz isso? Porque acredito que é necessário para enfrentar nossos dois grandes problemas, a desigualdade e o meio ambiente. Para reduzir a desigualdade, quem tem mais deve renunciar aos seus ativos.

·        Assinou o manifesto "Proud to Pay More", para reivindicar o papel dos impostos. Por quê?

É muito justo que quem tem mais pague mais impostos, não só de maneira absoluta, mas proporcionalmente. Quanto mais você tem, mais você paga, e ponto. É uma questão de justiça social. O Estado precisa de dinheiro. Obviamente, temos que exigir eficiência do Estado. Temos que parar com a acumulação. Temos comida para todo mundo, mas no Brasil, vinte milhões de pessoas passam fome.

O neoliberalismo elogia a mão invisível do mercado, mas alguns de seus ícones, como o Vale do Silício, estão encharcados de dinheiro público...

Por isso, defendo um Estado forte para ter educação, saúde pública e pesquisa de qualidade. O sistema público inventou a Internet e a NASA. Esses mesmos neoliberais, quando as coisas ficam feias, são os primeiros a pedir ajuda ao Estado. Agora, após as inundações no sul do Brasil, um aeroporto privado de Porto Alegre pede ajuda pública. Defendem um Estado mínimo, mas para os pobres.

Alguns multimilionários, como Amancio Ortega, doam dinheiro para lavar sua imagem e reforçar o mito do livre mercado. Pensar que um milionário explorador é bondoso porque doa uma miséria é uma fantasia. Ele faz isso porque explora as pessoas e a cadeia produtiva.

·        Você é crítico em relação à meritocracia. O que lhe incomoda nessa narrativa?

A meritocracia é uma grande mentira do neoliberalismo.

·        Recentemente, você ajudou a denunciar a CEO do Nubank por colaborar com plataformas de extrema-direita. É importante fomentar debates nas redes sociais?

Esse fenômeno das redes sociais é bom e ruim. É bom porque as pessoas têm mais voz. Ruim porque existem notícias falsas. É muito difícil lutar contra as notícias falsas, porque elas geram interação e as plataformas lucram com isso. E quando há uma tentativa de regular as redes sociais, dizem que é censura.

·        A extrema-direita no Brasil continua forte. Este ano, há eleições municipais. Como você vê isso?

extrema-direita é um dos grandes problemas do mundo. Bolsonaro, embora esteja inelegível, ainda condiciona o voto de muita gente. No Brasil, não existe mais a direita, apenas a extrema-direita e a esquerda. Lula só ganhou de Bolsonaro porque é um grande líder. Qualquer outro teria perdido. Precisamos formar novos políticos progressistas.

 

¨      Pensar o Estado a partir das resistências de baixo. Por Raúl Zibechi

Para refletir sobre os estados realmente existentes, é necessário deixar de lado as ideologias e os julgamentos prévios para nos concentrarmos no que verdadeiramente estão fazendo ou deixando de fazer, em sua relação com os povos indígenas, negros e pardos. Pensar o Estado a partir do que vem fazendo nos últimos anos é muito mais útil do que remontar a teorias que, muitas vezes, partem de outras teorias abstratas que não interagem com a realidade.

Dias atrás, a revista Science publicou um estudo sobre o acesso da população mundial à água potável: cerca de 55% da população do mundo não tem acesso à água potável segura, ou seja, 4,4 bilhões de pessoas que vivem majoritariamente nos países do Sul global. “A contaminação fecal afeta quase metade da população em áreas de renda baixa e média”, diz o relatório comentado pelo El País, o que provoca anualmente mais de meio milhão de mortes por diarreia.

Do total, 1,2 bilhão vive no sul da Ásia, quase 950 milhões na África subsaariana, cerca de 850 milhões no leste da Ásia, quase 500 milhões no sudeste asiático e mais de 400 milhões na América Latina e o Caribe. O que os estados fazem para resolver tal drama? A resposta é: pouco ou nada.

Na verdade, limitam-se a promover o extrativismo/acumulação por espoliação (mineração, monoculturas, grandes obras de infraestruturas, especulação imobiliária etc.) que só agravam o caos climático e a escassez de água para quem não pode pagar por ela.

Embora o estudo mencionado não reúna dados do Norte global, nem de alguns países do Sul, como Chile e Uruguai, sabemos que nessas regiões existem grandes desigualdades no acesso à água. Em grandes cidades da América Latina, como Buenos Aires, São Paulo e Cidade do México, existem bairros inteiros com déficit crítico de água, questão que não está sendo atendida pelos estados.

No país onde moro, o Uruguai, sempre houve abundância de água potável de excelente qualidade. No entanto, nos últimos 30 anos, a deterioração é evidente, a tal ponto que hoje a água que consumimos não é segura. Nenhum dos governos destas três décadas, onde progressistas e conservadores se revezaram, levou a sério as consequências das monoculturas e da pecuária, responsáveis pela contaminação de todos os rios.

Os estados estão se limitando a facilitar a acumulação por espoliação, de formas muito diversas. O sociólogo William I. Robinson argumenta, em artigo recente, que “nesta era do capitalismo global, o sistema produz uma multiplicação historicamente sem precedentes de humanidade excedente”, pessoas “demais para ser úteis ao capital como exército de reserva, incapazes de consumir, inquietas e em constante movimento”. Para contê-las, porque os de cima não almejam mais integrá-las, recorrem ao “estado policial global, cujo objetivo final contingente é o extermínio”.

Estamos, então, diante de estados para o extermínio, cujo maior exemplo é Gaza, que para Robinson “aparece como uma forma de acumulação primitiva através do genocídio”. É o espelho no qual o resto da humanidade deveria se olhar.

O importante é compreender que estamos diante de uma realidade estrutural, que não depende mais de quem governa, ou seja, de quem administra o Estado, que disso se trata a arte de governar. Embora nos vendam “mudanças”, tanto a direita quanto a esquerda quando estão no poder se limitam a gerir o que existe. E o que existe é a espoliação, as guerras para a espoliação.

O que foi dito acima não quer dizer que não existam alternativas, mas, sim, que não podemos continuar confiando nos estados para que forneçam os serviços que lhes correspondem. Enquanto na Cidade do México vários bairros permanecem sem água porque se privilegia as áreas de alta renda e as indústrias, em La Polvorilla (Comunidade Habitacional Acapatzingo), a comunidade organizada conseguiu sua autonomia de água através da construção de três fontes diferentes. Não dependem do serviço estatal irregular.

O grande problema que enfrentamos é que a imensa maioria da população, ao menos em nosso continente, segue confiando nos estados e nos governos para resolver os seus problemas mais urgentes. Quando agem diferente e assumem o controle da água, como fizeram os Povos Unidos na região dos vulcões de Puebla, a resposta do Estado é a repressão para que a multinacional Bonafont retome as fontes.

Mesmo nas grandes cidades, cenário mais difícil para os setores populares, é possível avançar em autonomias de todos os tipos, se conseguirmos nos organizar e olhar longe, escapando do imediatismo e das armadilhas estatistas do sistema. É possível, mas para isso é necessário navegar contra a corrente, desafiar a rotina e a desordem capitalista, em particular a que reproduzimos todos os dias com total indiferença.

 

Fonte: Entrevista para Bernardo Gutiérrez, no  CTXT/La Jornada

 

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