sábado, 24 de agosto de 2024

Meio ambiente, vítima silenciosa da guerra na Ucrânia

Quando explosões abalaram a barragem de Kakhovka, no sudeste da Ucrânia, em 6 de junho do ano passado, levando ao seu rompimento pouco depois, imagens da tragédia rodaram o mundo.

Grandes quantidades de água inundaram rapidamente uma área com quilômetros de extensão, devastando localidades inteiras. Dezenas de milhares de pessoas foram afetadas, e o número exato de mortos segue desconhecido.

Cerca de 600 toneladas de petróleo bruto vazaram de instalações industriais danificadas, segundo autoridades ucranianas. Produtos químicos provenientes de fábricas destruídas também contaminaram a água, o solo, ecossistemas e áreas agrícolas, apontou a Organização das Nações Unidas (ONU). A guerra na Ucrânia não é apenas uma catástrofe humana, mas também ecológica.

Agora, a destruição da barragem de Kakhovka pode vir a ser objeto de um processo potencialmente pioneiro contra a Rússia.

Autoridades ucranianas estão reunindo provas para levar a Rússia ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. O processo por crimes de guerra envolve também a destruição do meio ambiente por meio de atos de guerra. A Ucrânia acusa a Rússia de ter provocado a explosão da barragem, o que Moscou nega.

"O meio ambiente não pode continuar sendo uma vítima silenciosa da guerra", diz o ministro ucraniano de Proteção Ambiental e Recursos Naturais, Ruslan Strilets, à DW. "A humanidade precisa se dar conta de que a guerra é cara. Todos os Estados precisam se dar conta de que a guerra é cara. Destruir o meio ambiente é caro."

Imagem aérea mostra estrago em Oleshky, na Ucrânia, após rompimento da barragem de KakhovkaFoto: Maxar Technologies via AP

·        Qual é a dimensão do prejuízo?

A explosão da barragem e a subsequente inundação são apenas um dos muitos crimes ambientais que autoridades ucranianas estão investigando e que podem vir a ser incluídos na acusação contra a Rússia.

O Ministério de Proteção Ambiental e Recursos Naturais da Ucrânia estima que a invasão russa tenha causado mais de 5 mil casos de danos a florestas, solo, ar e água, com um prejuízo total de mais de 57 bilhões de euros (R$ 351,5 bilhões).

Cerca de 500 estações de tratamento de esgoto no país foram destruídas até o final de 2023, e pelo menos 20% das áreas de proteção ambiental estão ameaçadas. O procurador-geral da Ucrânia, Andriy Kostin, espera concluir a base para uma acusação até o final do ano.

"O grau de contaminação e os danos em muitas áreas só podem ser estimados, pois a coleta de dados é extremamente difícil", afirma Oleksii Vasyliuk, chefe da organização ambiental ucraniana Nature Conservation Group.

No entanto, a organização não governamental ucraniana Ecoaction conseguiu coletar amostras de solo em algumas regiões. A análise de material coletado na disputada região de Donbass revelou que todo o terreno foi contaminado por metais pesados altamente tóxicos devido aos combates.

Em alguns casos, os níveis de mercúrio, vanádio e cádmio estavam 100 vezes acima do normal. Metais pesados em altas concentrações são extremamente tóxicos, pois se acumulam no corpo humano e muitas vezes não podem ser eliminados.

Vasyliuk acredita que efeitos dos danos ao ar, à água e ao solo serão sentidos por décadas após o fim da guerra. Além disso, em algumas das áreas em conflito, a agricultura dificilmente será viável no longo prazo.

Strilets exige que a Rússia seja responsabilizada. Além disso, o ministro ucraniano quer estabelecer um precedente e desenvolver procedimentos adequados para a aplicação da lei internacional, para que, no futuro, guerras à custa do meio ambiente não permaneçam impunes. A Ucrânia pretende exigir o pagamento de reparações pela Rússia.

No entanto, caso acatado pelo TPI, um processo provavelmente se arrastaria por muitos anos, diz Aaron Dumont, que pesquisa questões ambientais no direito internacional na Universidade Ruhr de Bochum, na Alemanha.

·        Quando danos ambientais são crimes de guerra?

A ONU define a destruição do meio ambiente como crime de guerra somente quando ela é desproporcional em relação à vantagem militar obtida pelo responsável e causa danos graves, abrangentes e de longo prazo à população.

O promotor-chefe do TPI, Karim Khan, anunciou em fevereiro que crimes contra o meio ambiente serão investigados com mais rigor e receberão maior atenção no futuro.

Até agora, nenhum país ou pessoa foi condenado por destruição ambiental no contexto de um processo por crimes de guerra. Isso se deve em parte à definição vaga no direito internacional, segundo Dumont.

"É preciso provar que, daqui a dez anos, ainda haverá uma destruição ambiental mensurável resultante do bombardeio ou da forma específica de guerra em questão", diz Dumont, apontando que até hoje isso foi muito difícil de provar.

·        Campos de petróleo em chamas no Iraque

Dumont cita um exemplo de 1991, durante a Guerra do Golfo. Ao se retirarem do Kuwait, tropas iraquianas incendiaram mais de 700 campos de petróleo, provocando uma catástrofe ambiental em toda a região.

"Qualquer pessoa comum diria que isso é um crime de guerra com impacto ambiental", afirma Dumont. "Mas, naquela época, nos anos 1990, era muito difícil para geólogos provar que as consequências desses incêndios ainda poderiam ser medidas dez anos depois. Metodologicamente, simplesmente não era possível."

·        Reconhecimento de crimes

Hoje, isso é diferente. Graças a imagens de satélite e métodos científicos avançados, Dumont considera as chances de sucesso em um processo contra a Rússia promissoras.

Isso inclui a explosão da barragem de Kakhovka, afirma o pesquisador. Para ele, uma condenação seria um momento histórico. "Seria realmente um avanço, um momento pioneiro no direito ambiental", diz.

No entanto, não está claro qual seria o efeito de uma eventual condenação. A Rússia não ratificou o Estatuto de Roma, a base legal do TPI, e não reconhece as decisões do tribunal.

Dumont destaca outro ponto: "A partir de estudos, sabemos que para os afetados é muito importante que esses crimes sejam reconhecidos. Isso inclui, por exemplo, agricultores ou outras pessoas da região que dependem da natureza. Eles querem que suas preocupações também façam parte desses processos."

 

¨      Como a Rússia recruta estrangeiros para a guerra na Ucrânia

Quando assinou o contrato com o Ministério da Defesa da Rússia, o rapaz de 21 anos do Sri Lanka não esperava ser enviado para a frente de combate na Ucrânia. Um compatriota lhe contara sobre a possibilidade de se alistar no Exército, alegando que, caso servisse durante um ano, ele e sua família obteriam a cidadania russa.

"Ele me disse que a gente não era mandado para o front, só mobilizado como pessoal de apoio", conta. Numa decisão rápida, em fevereiro ele assinou um contrato, recebendo imediatamente o equivalente a 2 mil dólares, com a perspectiva de um soldo mensal de 2,3 mil dólares, mais eventuais adicionais.

Alguns meses mais tarde, num hospital da Ucrânia, tendo sido ferido e capturado, ele se dispôs a contar sua história à DW, sob condição de anonimato. Uma intérprete acompanhou por telefone a conversa em cingalês, sob os olhos de militares ucranianos que aparentemente tinham poucos conhecimentos de inglês e não intervieram.

<><> Quem são os grandes beneficiários dos conflitos?

Ele havia decidido obter um visto de trabalho para a Rússia, através de uma agência de emprego, "por causa da situação econômica ruim no Sri Lanka". A crise no país sul-asiático se agravara também devido à guerra russa, que fizera disparar o preço de alimentos e combustível, com o bloqueio às exportações ucranianas pelo Mar Negro.

Depois de trabalhar um ano num açougue, seu visto expirou, e ele passou mais um ano vivendo ilegal em Moscou, como empregado de uma lanchonete. Por fim, dirigiu-se às Forças Armadas. Após apenas dois meses na retaguarda, foi mobilizado para os subúrbios da cidade ocupada de Donetsk, no leste da Ucrânia.

De sua unidade participavam também cidadãos do Nepal, Índia, Quirguistão e Tajiquistão. "Eu disse ao comandante que queria voltar para o Sri Lanka, mas ele respondeu que era impossível e que, em caso de deserção, segundo o contrato, eu estava sujeito a 15 anos de prisão na Rússia." O jovem só esteve diretamente no front uma vez, por cinco dias, até ser ferido e aprisionado.

<><> A história de um nepalês

Como noticiou em junho a agência Bloomberg, citando funcionários europeus, a Rússia forçou milhares de trabalhadores migrantes e estudantes estrangeiros a se alistarem para a guerra contra a Ucrânia. Quem se recusasse, era ameaçado de não ter seu visto de permanência prorrogado.

"Nós somos muito, muito pobres", afirma um nepalês de 35 anos no centro para prisioneiros de guerra no oeste da Ucrânia, igualmente pedindo para não ser identificado. Também essa conversa ocorreu na presença de um vigia, que se manteve calado e parecia não entender inglês.

Em seu país, o nepalês diz que fazia cerca de 400 dólares por mês como taxista, o que não bastava para manter seus pais, a esposa e dois filhos. Amigos da Índia lhe contaram que se podia ganhar "muito dinheiro" no Exército russo. Assim, em outubro de 2023 chegou a Moscou, onde foi recrutado e enviado para o centro de treinamento Avantgarde, juntamente com outros 60 estrangeiros.

Essas instalações nas cercanias da capital servem exclusivamente à formação de mercenários estrangeiros, de acordo com a emissora americana CNN. Lá, o nepalês firmou um contrato de um ano, com soldo mensal de 2 mil dólares. De início também foi indicado para a retaguarda na Rússia, como auxiliar de cozinha, juntamente com um chinês. Ao todo, a tropa se compunha de 23 indivíduos do Nepal, três da Índia e 11 da Rússia, que se comunicavam com a ajuda de softwares de tradução.

Após um mês, foi mobilizado a posições nas proximidades de Donetsk. Ao pedir ao comandante para retornar para casa, ouviu que era impossível rescindir o contrato. Poucas semanas mais tarde, em abril de 2024, foi ferido e avistou soldados ucranianos: "Eu tirei o capacete, o colete protetor e larguei a metralhadora, pedi ajuda e disse que vinha do Nepal."

<><> Nem todos são vítimas de engano

Atualmente a Ucrânia mantém presos cerca de dez mercenários, explica Petro Yatsenko, porta-voz do Quartel-General para Coordenação do Tratamento de Prisioneiros de Guerra do HUR, o serviço secreto militar ucraniano. "Alguns outros foram capturados, mas ainda não constam das estatísticas."

Entre eles estão cidadãos de países africanos como Serra Leoa e Somália, assim como do Sri Lanka, Nepal e Cuba: "A maioria vem do Sul Global, de países pobres." Um cubano revelou a Yatsenko que em seu país ganhava só sete dólares por mês.

O HUR não dispõe de informações sobre o número de estrangeiros lutando do lado russo. O governo os atrai tanto com propaganda nas redes sociais, quanto diretamente no exterior, através de agitadores: "Muitas vezes se prometem empregos em empresas e, quando se trata do Exército, se diz que só vão ser mobilizados para a retaguarda."

<><> Ucrânia: a arte resiste e sobrevive à guerra

Essa afirmação é confirmada por prisioneiros estrangeiros que o HUR apresentou em março, numa coletiva de imprensa em Kiev. Os cinco nepaleses, um cubano, um serra-leonês e um somaliano asseguraram que estavam falando voluntariamente. O de Serra Leoa fora para a Rússia sob a promessa de emprego numa construção. Ele já participara de uma guerra no próprio país, fora ferido e não pretendia participar de outra guerra, afirmou.

Yatsenko ressalva, no entanto, que nem todos são vítimas de engano, pois há também profissionais entre os estrangeiros que lutam pela Rússia: "Eles têm experiência militar e sabem muito bem para onde estão indo."

Quanto a seu status legal, "enquanto não houver um processo contra eles, são detidos como os soldados russos capturados". Até agora, nenhum foi libertado em trocas de prisioneiros ou outro procedimento. Mas "alguns países, sobretudo o Sri Lanka e o Nepal, têm interesse em ter de volta seus cidadãos. Isso nos possibilita negociar", explica o porta-voz do HUR.

<><> Precariedade financeira e ignorância das leis são armas

No início de 2024, a CNN noticiou que a Rússia recrutara cerca de 15 mil nepaleses. Na capital Katmandu, os repórteres participaram de um encontro com as famílias dos mercenários, as quais exigiam das autoridades que os trouxessem de volta.

Embora só registrando a presença no Exército russo de 200 cidadãos seus – 13 deles já mortos –, o governo do Nepal proibiu as viagens à Rússia para fins de trabalho, atendendo a um apelo popular pelo fim dos recrutamentos. Além disso, a polícia prendeu em Katmandu 18 indivíduos possivelmente envolvidos no aliciamento de mercenários.

Há também notícia de casos em que os estrangeiros abandonaram as posições militares russas. Em maio, sem citar números, o HUR informou sobre uma fuga em massa de mercenários nepaleses estacionados na região ocupada de Luhansk. E em junho a emissora France 24 noticiava que 22 cingaleses teriam escapado do serviço militar russo.

A organização russa de direitos humanos Idite Lesom (Vai pela Floresta) ajuda na fuga do serviço militar – sobretudo russos e ucranianos das regiões sob ocupação, que foram recrutados com violência, mas também cidadãos de outros países.

O ativista Ivan Chuvilyayev confirma que a ONG já ajudou cidadãos de países africanos e do Afeganistão a desertarem. Segundo ele, a forma como a Rússia recruta os estrangeiros não se distingue de como atrai seus próprios cidadãos para lutarem na guerra contra a Ucrânia: "Ela se aproveita de que eles não conhecem as leis e se encontram numa situação financeira precária."

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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