‘Essa
terra pertence a nós’, questiona rezador Guarani Kaiowá
“Será
que nós não é ser humano? Será que é só o fazendeiro rico?” O questionamento do
rezador guarani kaiowá Tito Vilhalva, de 106 anos, sintetiza o sentimento do
povo Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Expulso de seu território, como
parte de uma violenta política de colonização que exterminou e desagregou
comunidades inteiras, Seu Tito pôde retornar a Guyraroká, declarada como Terra
Indígena, mas aguarda a homologação da área há mais de 15 anos, o que causa uma
constante insegurança a ele e sua família.
Infelizmente,
o caso de Guyraroká não é isolado. À espera da demarcação de suas terras, são
inúmeras as comunidades que vivem em condições sub-humanas, com a falta de
direitos básicos, como alimentação adequada, acesso à água potável e
saneamento. Elas também sofrem as mais diversas formas de preconceito e
exploração – além dos frequentes ataques e ameaças àqueles que decidem retornar
para suas terras de ocupação tradicional.
Na
próxima segunda-feira (19/08), o governo federal promete inaugurar um novo
capítulo das tentativas de solução desse grave quadro. Atendendo a uma demanda
da Aty Guasu, organização representativa dos povos Guarani Kaiowá e Guarani
Ñandeva, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou, na dia 10, uma
força-tarefa para acelerar os processos de demarcação das Terras Indígenas
(TIs) desses povos em Mato Grosso do Sul.
Procurado
pela reportagem do ISA, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirmou que, em
conjunto com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), está qualificando
os dados solicitados por Lula e que iniciará os trabalhos na próxima semana,
com a discussão da metodologia e detalhes da atuação.
As
medidas governamentais acontecem em resposta a uma escalada de violência
iniciada há cerca de um mês contra aldeias reocupadas pelos indígenas na TI
Panambi-Lagoa Rica, em Douradina, área delimitada pela Funai em 2011, com
12.196 hectares de extensão (um hectare corresponde mais ou menos a um campo de
futebol).
Dias
antes da promessa do presidente, uma comitiva do governo federal visitou a
área. Estiveram presentes a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara;
Joenia Wapichana, presidente da Funai; Célia Xakriabá, deputada federal
(PSOL-MG); Gleice Jane, deputada estadual (PT-MS); Eloy Terena,
secretário-executivo do MPI; Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da
República; e Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público
Federal (MPF).
Segundo
a ministra, mais do que prestar solidariedade às vítimas, a visita teria um
caráter resolutivo. “Existe aqui uma necessidade urgente da população por uma
solução em curto prazo. Estamos aqui enquanto representação desse governo que
tem um compromisso de avançar com esse processo de demarcação, porque é uma
área que não vai ser afetada pela Lei do Marco Temporal”, afirmou.
Mesmo
não sendo aplicável ao caso, em 2015 o processo de demarcação chegou a ser
anulado pela Justiça Federal com base na tese ruralista do “marco temporal”. Em
2012, uma liminar da Justiça Federal já havia suspendido o andamento da
demarcação em favor do Sindicato Rural de Itaporã. O processo segue paralisado
até hoje. “Nós queremos agora voltar a dar encaminhamento, a destravar esse
processo que se encontra parado por impasse judicial”, afirmou Sonia.
Durante
a visita, a presença da Força Nacional e dos representantes do governo não foi
capaz de intimidar o acampamento de ruralistas que concentrava dezenas de
caminhonetes a apenas 150 metros da aldeia Yvyajere. “Será que precisaremos
morrer para ter direito ao que é nosso?”, suplicou uma das lideranças.
No
dia anterior à chegada da comitiva, uma ação de reintegração de posse movida
por uma das ocupantes não indígenas da TI foi suspensa pelo TRF-3. Desde a
visita, não foram registrados outros ataques, mas a situação segue tensa e os
indígenas temem uma nova ofensiva. Na manhã desta sexta-feira (16), ruralistas
realizaram um “tratoraço” contra as demarcações em Douradina, aumentando a
tensão.
“Desde
nova, a gente luta pelas nossas terras, desde muito nova a gente já corria das
armas de fogo. Isso acontece há muito tempo, há décadas”, relatou a anciã Nona
Mereciana, filha do antigo líder Horácio Aquino. “Hoje, é impressionante como
ainda temos que continuar fazendo isso, continuar correndo das armas de fogo.
Mesmo eu estando nessa condição, mesmo sendo uma anciã. Isso me entristece
muito”, completou.
Nona
Mereciana contou à comitiva que foram oferecidas panelas em troca de suas
terras. “Eu lembro muito bem, como se fosse ontem, quando chegaram os
colonizadores […] Quando a gente se recusou a sair, começaram as agressões que
até hoje continuam”, lembra.
• Ataques
O
primeiro ataque aos indígenas na TI Panambi-Lagoa Rica ocorreu na madrugada
entre 13 e 14 de julho, como reação a uma tentativa de ocupação de uma das
porções do território demarcado – a antiga aldeia de Jaguay’guague. Segundo
relatos dos Guarani Kaiowá, a reocupação foi prontamente repelida por
produtores rurais, que cercaram os indígenas com carros e os fizeram fugir a
pé, ameaçando retornar e destruir aldeias mais antigas, como Gua’a Roka, Guyra
Kambi’y, Ita’y Ka’aguyrusu e Tajasu Ygua.
Logo
no domingo à tarde um novo ataque aconteceu, em Guyra Kambi’y, deixando um
homem baleado na perna. “Foi muito tenso para cá, muitos tiros”, contou Ava
Poty Ju*, que vive na área desde a infância. “O fazendeiro veio aqui perto do
vizinho e começou a atirar”, denunciou o jovem, contando que, nos dias
seguintes, outras três aldeias foram reocupadas pelos indígenas – Yvyajere,
Pikyxiyn e Kurupa’yty – e que o cerco dos ruralistas ampliou-se, levando a
novos ataques e a uma tensão.
“Começou
a chegar um monte de caminhonete e montaram um acampamento de carros”, relatou
a liderança, que conta que os indígenas chegaram a ser impedidos de cantar e
rezar na aldeia Yvyajere. “Os carros vêm e acendem aquela luz alta pra cima de
nós. Eles estão montando tendas e os indígenas estão resistindo, para retomar a
terra”, informou. No mesmo período, a Aty Guasu denunciou também um ataque ao
tekoha Kunumi Vera, na TI Dourados Amambaipegua I, em Caarapó (MS). Tekoha
designa uma área de ocupação tradicional e significa “ “lugar em que se realiza
o modo de ser” em Guarani.
Daniela
Alarcon, coordenadora-geral no Departamento de Mediação e Conciliação de
Conflitos Fundiários Indígenas no MPI, disse que o órgão só conseguiu agir com
celeridade porque já havia instalado, em 2023, um Gabinete de Crise para
acompanhar a situação dos Guarani Kaiowá no estado. A instância vem atuando
para garantir a segurança dos indígenas nas áreas atacadas. Uma das ações foi a
pressão junto ao Ministério da Justiça para que a Força Nacional fosse
novamente deslocada para a área, visto que a portaria de atuação havia vencido
em 10 de julho, dias antes dos ataques começarem.
A
escuta dos indígenas e o acompanhamento in loco permitiu ao departamento
identificar o modus operandi dos ataques e alguns de seus principais atores,
detalhou Alarcon. “Tem uma dinâmica desses ataques, que se dão com o uso de
rojões, armas de fogo, uso de munição menos letal, possivelmente trazida do
Paraguai – porque, de acordo com uma análise preliminar da Força Nacional e da
PM, é uma munição que não é de uso das forças de segurança do Estado
brasileiro. O que acende pra gente o alerta também quanto à formação dessas
milícias no campo”, explica.
Mesmo
com a presença da Força Nacional e o acompanhamento da situação pelas
autoridades, 15 dias depois, na tarde do dia 3 de agosto, houve um ataque ainda
mais violento aos indígenas, deixando pelo menos dez pessoas gravemente
feridas, tanto por balas de borracha quanto por munições letais. Um jovem foi
baleado na cabeça e ficou hospitalizado.
Segundo
Teodora Souza, que é coordenadora regional da Funai em Dourados, o órgão tem
visitado as comunidades atacadas diariamente e acompanhado a situação das
vítimas. “O clima desde o começo está bastante tenso”, afirma. Ela conta que,
após esse último ataque, o efetivo da Força Nacional saltou de duas para 20
viaturas, com a presença de 65 agentes.
Um
dos principais problemas no momento, segundo ela, é o acesso à alimentação. As
cestas básicas distribuídas pela Funai e pelo governo do estado são
insuficientes e os indígenas têm enfrentado racismo e hostilidade ao tentar
comprar alimentos nos municípios próximos e estão dependendo de doações.
Souza
lembra que a área já foi reconhecida como TI há mais de dez anos e que a
comunidade teme por uma espera ainda maior para ter a posse efetiva da terra:
“Eles não aguentam mais esperar”.
• Impactos
do “marco temporal”
Para
os Guarani Kaiowá, a terra não é apenas um espaço físico; é parte fundamental
de seu ñandereko, seu modo de existência. “A terra não é para vender, porque a
terra é nosso corpo. A terra é nossa vida, a terra é nossa alimentação, porque
é daí que sai arroz, feijão, milho, cria gado, cria tudo”, explicou Tito
Vilhalva, relembrando sua luta pelo reconhecimento da TI Guyraroká, um dos
maiores símbolos do ataque aos direitos territoriais indígenas no Brasil.
Em
2014, com base no “marco temporal”, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal
(STF) anulou a portaria declaratória da área, ignorando o longo processo de
esbulho sofrido pelos indígenas. No ano passado, o STF considerou
inconstitucional a tese ruralista. Pouco depois, o Congresso aprovou uma nova
lei (14.701/2023), incluindo-o na legislação.
“Já
veio antropólogo, engenheiro, já medimos tudo, eu fiz tudo. O papel, o
relatório tá na mão do [ministro do STF] Gilmar Mendes, mas parece que o Gilmar
Mendes jogou no lixo”, reclama o rezador centenário. “Sempre eu fico pensando,
porque se vai demorar a demarcação de Guyraroká, daqui dez, 15, 20 anos, aí eu
já não vou participar mais, porque minha idade está avançando, estou com 106
anos que estou vivendo aqui”, lamenta.
O
cone sul de Mato Grosso do Sul concentra uma das maiores populações indígenas
no Brasil – cerca de 65 mil pessoas dos povos Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva,
em 26 TIs com processos de demarcação iniciados, mas que não avançam para as
próximas etapas. Entre elas, há 15 áreas cujos estudos de identificação sequer
foram publicados.
Foi
em 2016 a última vez que a Funai reconheceu terras dos Guarani Kaiowá e Guarani
Ñandeva: as TIs Dourados Amambaipegua I, em Caarapó, e Ypo’i/Triunfo, em
Paranhos. A última área homologada pela Presidência da República foi a TI
Arroio Korá, em 2009. Mas mesmo em áreas que chegaram a esse último estágio do
processo demarcatório, os indígenas muitas vezes não estão em posse de suas
terras, em razão de ações judiciais e despejos.
• Esforços
pelas demarcações
Os
esforços de vários atores e instituições para fazer avançar as demarcações não
são recentes: após intensa mobilização dos indígenas, em 2007 foi firmado um
Compromisso de Ajustamento de Conduta (CAC) entre o MPF e a Funai, para obrigar
o órgão indigenista a realizar os estudos de identificação e delimitação de 12
áreas até o ano de 2010. Até o momento, apenas três relatórios foram
publicados.
De
acordo com o procurador Marco Antonio Delfino de Almeida, a aplicação da Lei
14.701/2023 às demarcações não é adequada. Para ele, uma vez que os processos
foram iniciados e tiveram seus relatórios aprovados, a nova lei não deveria ser
razão para paralisá-los. “É uma questão jurídica: a Constituição fala que a lei
não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada”, explicou.
É
na mesma direção que argumenta uma nota técnica publicada pelo ISA, em outubro
de 2023, antes da aprovação da lei. “As fases do processo de demarcação que se
encerram sob a legislação vigente são acobertadas pela preclusão
administrativa, de modo que Lei nova não tem o condão de retroagir para fases
anteriores dos processos administrativos que já se consumaram e se
estabilizaram sob leis e decretos vigentes à época de sua realização”, aponta o
documento.
São
263 processos de demarcação em andamento na Funai hoje. O impacto desses
artifícios utilizados para travar as demarcações é também um dos alertas
trazidos na nota. “Retroagir Lei nova a processos de demarcação que já demoram
10, 20 e até 30 anos para serem finalizados configurará inadmissível mora do
Estado brasileiro com os povos indígenas, que estão sob ameaça e em grave
vulnerabilidade física e social”, continua o documento.
A
advogada do ISA Juliana de Paula Batista lembra que a aplicação do ‘marco
temporal’ sem maiores análises pode, inclusive, desconsiderar o histórico de
violência e expulsões forçadas dos povos originários. “Em algumas situações, as
expulsões foram realizadas pelas próprias forças de segurança do Estado, em
conluio arbitrário com ocupantes não indígenas. Essas formas de violência foram
proibidas pela Constituição brasileira, que veda a transferência forçada dos
indígenas de suas terras e classifica os direitos territoriais como originários
e imprescritíveis”, destaca.
• “Essa
terra pertence a nós”
A
região onde ocorreu a escalada de violência é conhecida pelos Guarani Kaiowá
como Ka’aguyrusu, que em sua língua significa “mata grande”. Hoje desmatada e
dominada por lavouras de cana, soja, milho e outras monoculturas, a área é o
que os indígenas chamam de tekoha guasu, um grande território, e guarda
inúmeras histórias de expulsões e tentativas de confinamento em diminutas
porções de terra. Histórias que estão vivas não só na memória dos anciãos, como
na dos jovens.
“Nossos
avós foram expulsos do seu território e agora os Kaiowá querem que seja
demarcado, que seja homologado, porque pertence aos Guarani Kaiowá”, explica
Ava Poty Ju sobre as ações de retomada. “Já faz 20 anos que não demarcam nosso
território. As crianças que estavam em 2005 cresceram hoje. Nós mesmos vamos
fazer a autodemarcação, porque esse território pertence a nós”, afirmou o
jovem, mencionando e traduzindo um canto kotyhu de seu povo, que remete ao
retorno dos Guarani Kaiowá a seus tekoha:
Ko
yvy ore mba’e [Essa terra é nossa]
Ko
yvy nhande mba’e [Essa terra pertence a nós]
Tupã
xeru ome’e va’ekue [Essa terra foi deixada por Tupã]
Ko
tekoha re xe avy’a [Nesse território eu me alegro]
Ambohyapu
xe mbaraka [Aqui eu canto e faço meu chocalho soar]
Nos
anos 1940, quando o governo de Getúlio Vargas promoveu uma política de
incentivo à colonização do Centro-Oeste, a região de Ka’aguyrusu foi impactada
pela criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (Cand) – que abriria
caminho para a fundação dos municípios de Douradina, Dourados, Rio Brilhante,
entre outros. As áreas ocupadas tradicionalmente pelos Guarani Kaiowá e
Nhandeva foram transformadas em lotes da colônia e cedidas a não indígenas, o
que consolidou o esbulho das terras.
“A
partir daí os grandes grupos se dividiram muito. Tinha um grupo que ia pra
região de Panambizinho, um grupo que foi para Dourados, um grupo que permanecia
por aqui e um grupo que vivia circulando e chegou o momento que não dava mais
pra circular”, rememora o pesquisador indígena Kaiowá Puku*, que também é
originário de Ka’aguyrusu e estudou a história da região.
“Quando
foi criada a Cand, no início da década de 1940, muitos indígenas ainda estavam
em suas localidades em várias regiões – inclusive na região de Ivinhema,
Vicentina, Fátima do Sul e vivia de caça e pesca. E já existiam fazendeiros
naquele tempo, que vinham do estado de São Paulo. Muitas famílias foram levadas
para a Reserva Indígena de Dourados, mas o pessoal retornava, ia e voltava”,
complementou.
Mesmo
não sendo originário de Ka’aguyrusu, o centenário Tito Vilhalva também tem
memórias desse processo e da ocupação tradicional dos Guarani Kaiowá na região:
“Eu nasci em 1920, já tô com 106 anos, conheço tudo aqui no Mato Grosso.
Caarapó não era cidade, Santa Luzia não era cidade, Dourados não era cidade.
Não tinha estrada, a condução era só o cavalo, carreta”.
Ao
longo do século XX, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e depois a Funai,
trabalharam sistematicamente para expulsar, remover e confinar os indígenas das
vastas áreas que tradicionalmente ocupavam em pequenas reservas criadas pelo
estado. As terras, antes habitadas por eles, foram vendidas e alienadas como
propriedades privadas para fazendeiros e colonos, cuja posse foi legitimada por
títulos de propriedade emitidos pelo próprio Estado.
Ainda
em 1946, lideranças das aldeias do Panambi procuraram o SPI para mediar
situações de conflito que ocorriam a partir da ocupação de suas terras pelos
colonos. Nos anos 1950, a administração da Colônia Agrícola prometeu uma área
de 2.037 hectares para as comunidades Guarani Kaiowá da região. A transação
nunca chegou a ser oficializada em cartório.
Entre
os documentos que comprovam esse histórico está um relatório enviado pela
antropóloga Joana Fernandes à Funai nos anos 1980, dando conta de que, embora
tenham sido reservados aos indígenas e demarcados fisicamente pela Funai em
1971, os 2.037 hectares não estavam em posse dos indígenas e eles viviam então
confinados em uma pequena área da Colônia Agrícola.
Um
documento de 1984 da 9ª Delegacia Regional da Funai comprova que o órgão tinha
conhecimento da situação. Nele, servidores da Funai e do Incra informam que os
indígenas estavam vivendo em apenas 400 hectares, ainda não demarcados, e que a
área então reivindicada coincidia com 46 lotes da Colônia, “totalmente
desmatada e sendo cultivada mecanicamente todos os anos”. Na época, os
servidores já pediam urgência para a regularização da área.
Almeida
ressalta que, no caso dos Guarani Kaiowá em Panambi-Lagoa Rica, mesmo com as
expulsões e o processo de confinamento, a comunidade nunca se afastou de seu
território. “A comunidade nunca saiu, há uma vasta documentação sobre isso. O
processo de demarcação que ocorreu em 1971, a tentativa de demarcação, ela
sepulta qualquer alegação de que haveria possibilidade do ‘marco temporal’ ali.
Eles nunca deixaram a Terra Indígena constitucionalmente prevista”, detalha.
Na
avaliação do procurador, nesse caso e de outras TIs, foram agentes do Estado os
principais responsáveis pelas remoções dos indígenas e pela titulação de suas
terras a particulares, o que ele classifica como um “erro histórico”. “Cabe ao
governo federal dentro do próprio conceito de Justiça de Transição, a devolução
do território, mas igualmente a correção desse erro histórico, que foi a
titulação dessas pessoas”, defende.
Em
busca de memória, verdade, justiça e reparação pelas violências sofridas pelos
Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva é que Almeida, a pedido das comunidades
indígenas, tem atuado junto à Comissão de Anistia, do Ministério de Direitos
Humanos (MDHC), e demandado seu reconhecimento como anistiados políticos
coletivos. A primeira comunidade anistiada pela Comissão foi a de Guyraroká, em
abril, e a segunda foi a da TI Sucuriy, em julho.
Falando
em língua Guarani, a liderança da área Jety Jagua Guasu lembrou que as
violações que sofreram não só foram documentadas à época, mas testemunhadas
pessoalmente pelos indígenas. “Fomos levados de caminhão, como lixo, como gado,
como nunca um ser humano deve ser tratado e nem mesmo animal. Se eu ia mostrar
vocês nossas casas queimando, nossas roças sendo queimadas pelos fazendeiros e
que a gente só testemunhou a olho nu. Hoje eles estão matando nossos irmãos nas
retomadas, sem dó, sem piedade”, criticou.
A
cerimônia em que o Estado brasileiro voltou a pedir desculpas aos Guarani
Kaiowá em Sucuriy por despejos, remoção forçada, violência psicológica, entre
os anos de 1984 e 1987, acontecia no mesmo dia em que a Justiça Federal decidiu
favoravelmente a uma ação de reintegração de posse contra uma das retomadas na
TI Panambi-Lagoa Rica. No início da audiência, a relatora do caso de Sucuriy,
Maíra Pankararu, lembrou que, assim como Panambi-Lagoa Rica, essa terra também
faz parte do amplo território tradicional de Ka’aguyrusu.
Em
seu discurso, o procurador Marco Antônio também conectou as situações das duas
terras, lembrando que os indígenas nunca saíram daquele local e que tiveram
sistematicamente seu direito de permanência negado pelo próprio Estado. “Temos
ido sistematicamente a Douradina e ouvido pessoas que estão lá. Por ocasião do
processo de implantação da Cand, casas foram queimadas porque elas estavam
exatamente nos locais onde haveria a delimitação dos lotes. E essa história
deverá ser contada, para que essa reparação seja feita, para que essa reparação
possa ser feita não apenas a essa comunidade, mas a também outras comunidades
que sofreram e sofrem essa mesma violência”.
Para
Genito Gomes, liderança da retomada Guaiviry, em Aral Moreira, que está fazendo
um filme sobre a história da Aty Guasu, é uma injustiça que os indígenas que
lutam para retornar a seus territórios sejam tratados como invasores, quando
suas terras é que foram invadidas e expropriadas no passado.
“Todo
mundo fala de retomada, mas, na verdade, quando o governo vendeu pros
fazendeiros, o indígena não sabia português, tinha medo dos brancos, tinha medo
do cavalo, tinha medo do revólver e saiu pelo seu território. Saiu na marra
mesmo, expulso mesmo, que expulsaram. Assim o indígena correu tudo. Não é que a
gente retomou das pessoas, porque nós, povo indígena não vendeu a terra, não
negociou o nosso território. Nós fomos expulsos”, conta.
O
retorno de Genito e seus parentes à retomada de Guaiviry aconteceu em 2011, sob
a liderança de seu pai Nísio Gomes, assassinado a tiros, em uma tentativa de
expulsão naquele ano.
As
investigações levaram à prisão preventiva de pessoas envolvidas no ataque e à
denúncia de 19 delas pela morte do cacique.
Numa
espiral de injustiças, mais de dez anos depois do ataque, os estudos para a
delimitação do território pela Funai ainda não avançaram – e o corpo do rezador
Nísio Gomes, morto na luta pela demarcação de sua terra, segue, ainda hoje,
desaparecido e insepulto.
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Fonte:
Por Tatiane Klein, Carolina Fasolo, Mariana Soares e Luiza Barros, no ISA
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