segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Eduardo Doege Mello: ‘Perspectivas sobre a instrumentalização da educação’

A natureza da educação é, sem dúvidas, política. Pensar a educação como desatrelada da política é descolar-se da realidade, é impossibilitar qualquer exame sóbrio sobre o ensino. Ao menos no meio acadêmico (e cada vez mais fora dele), a concepção de uma educação neutra entrou em profunda decadência e desuso, por mais que ainda persistam pequenos círculos que defendam este entendimento. Como já colocava Paulo Freire, a meu ver o maior educador da história do Brasil, a política está impressa na forma como se pensa e se constrói a educação, tornando evidente a inevitável parcialidade de todas as dimensões de uma escola ou do próprio ensino.

Mas percebo que, necessariamente, surge desta acepção uma consequência que não deve ter sua importância minimizada, a de que, portanto, a educação pode ser instrumentalizada. Quando falo em instrumentalização, me refiro a operacionalização da educação em favor de certos interesses correspondentes a um determinado grupo. Tendo posto isso, cabe a seguinte pergunta: a quem interessa instrumentalizar a educação brasileira a serviço de projetos como o Novo Ensino Médio?

Em um tenebroso documento de nove páginas publicado no segundo semestre de 2024, o movimento Todos Pela Educação (TPE) faz um balanço sobre a aprovação do Projeto de Lei do Novo Ensino Médio no Congresso Nacional, destacando suas "perspectivas promissoras para o Ensino Médio brasileiro". Esta organização atuante há quase 20 anos é mantida e composta por empresas e entidades como a Fundação Lemann, Itaú, Bradesco, iFood e Vale. Mas quais os seus interesses para a educação brasileira? Seria tolo pensar que se preocupam com a formação completa da juventude ao passo que, sem pudor algum, sufocam o povo com juros altíssimos, no caso dos bancos; oferecem trabalho altamente precarizado, no caso do iFood; são responsáveis por catástrofes humanitárias e ambientais por negligência, no caso da Vale; sem falar nos demais associados.

Não é a primeira vez que esta entidade entra em evidência no cenário nacional, visto que ganharam notoriedade em 2019 após uma fala esdrúxula de sua presidente executiva, Priscilla Cruz, afirmando que não era necessário gastar mais de R$ 5 mil anualmente por aluno para se garantir a qualidade do ensino.

<><> Instrumentalização da educação

Para se ter noção da influência nociva do TPE, suas propostas de redução de mais de 20% de gastos anuais por aluno foram incorporadas pelo Ministério da Educação sob gestão de Abraham Weintraub – o ministro conhecido pelo "contingenciamento" (sic) de 30% de recursos destinados às universidades federais e por ter alegado que nestes locais haveria plantações ostensivas de maconha e a produção de metanfetaminas. Ademais, segundo relatório publicado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2023, o Brasil, entre outros 42 países, investe menos da metade da média, que é de 10 mil dólares. É uma barbaridade levar em consideração a diminuição de orçamento destinado a manutenção de estudantes quando, na realidade, deveríamos claramente discutir sua ampliação.

É a partir de um discurso delicadamente afável que esses lobos em pele de cordeiro instrumentalizam a educação para servir a seus próprios interesses políticos, ideológicos e econômicos. Falam abstratamente em aumentar os investimentos em favor de uma educação de qualidade enquanto defendem a retirada de mais de R$ 1 bilhão de escolas estaduais e municipais no Nordeste. Desde sempre estiveram em correspondência com o MEC do governo que eles insinuavam ser catastrófico para a educação, o governo Bolsonaro, escancarando que não há diferenças ideológicas, mas apenas fazem questão de fingir neutralidade.

Como dito anteriormente, a educação é instrumental por se tratar de um meio para se atingir a um determinado fim, mas qual fim? Para o TPE e Banco Mundial (que defende projetos privatistas para a educação brasileira), trata-se de sustentar seus interesses e nada mais. Coloco que é necessário reassumir um projeto de educação que não esteja em acordo com os objetivos imediatos do mercado financeiro, e sim alinhado com os interesses nacionais, que assegure a formação completa de cidadãos politicamente atuantes e capazes de incorporar as virtudes das atividades intelectuais e práticas.

Projetos como o Novo Ensino Médio aprofundam a polarização do conhecimento científico e do saber prático, reduzindo a educação a um ambiente fabril e tecnicista voltado à produção de mão de obra. É preciso resgatar Paulo Freire e Anísio Teixeira no lugar de Todos pela Educação, Banco Mundial e companhia.

 

¨      Estudante tem responsabilidade no sistema educacional? Por Vinicius de Andrade

Muitos dizem que escola precisa se tornar mais atraente. Desigualdade brasileira, porém, se reflete no sistema educacional. Diante deste contexto, qual é a responsabilidade do estudante no próprio processo educacional?

Há alguns meses viralizou o vídeo de uma professora do ensino fundamental dando instruções básicas para os estudantes e recebendo inúmeras perguntas dos alunos sobre o que havia acabado de explicar. O vídeo mostrava o tamanho da desatenção e a dificuldade dos professores em passar informações básicas. Na legenda, havia algo como "culpa do vício no celular".

Recentemente, assisti ao vídeo de um professor tiktoker comentando o episódio. Ele basicamente argumentou que a culpa não é do celular e nem dos estudantes, mas sim das escolas que são arcaicas e não dialogam com a realidade dos alunos. Para ele, o celular de hoje foi a rádio de um dia, a televisão de outro e o videogame de recentemente – instrumentos que sempre maquiavam o problema e culminaram na culpabilização do estudante, mas a culpa sempre foi da escola que nunca mudou.

Eu particularmente conheço esse professor e admiro o trabalho que faz, mas discordo do seu posicionamento em alguns pontos e quero dedicar esta coluna para essa discussão.

<><> Estudante tem ou não responsabilidade?

Não acho que o celular seja o único culpado pela desatenção dos estudantes. Acredito também que a escola precisa se modernizar e se tornar mais coesa com a realidade do público discente. Não podemos ser ingênuos ou simplistas e acreditar que é o problema tem só um culpado. Não é nem um pouco eficiente tirar a culpa de um para colocar no outro.

Me incomoda quando os argumentos caminham para uma excessiva culpabilização do estudante, como também não me agrada nem um pouco quando caminham para integralmente o isentar das próprias responsabilidades.

Na verdade, temo ser uma moda de hoje. Eu vejo como uma extrapolação negativa das correntes de defesa de alguns grupos. Entendo o incômodo com discursos meritocráticos, mas o extremo oposto de isentar as pessoas sobre qualquer responsabilidade não é o caminho.

Trabalho com educação há oito anos e lido com jovens da rede pública de todo o país. Minha postura pessoal é fazer todo o possível para lhes acolher e oferecer um suporte de incrível qualidade, ainda que gratuito, mas eu sempre sou firme quando friso a importância de entenderem a responsabilidade que têm no próprio processo.

A escola não é a ideal, o sistema é injusto e o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Tudo isso, infelizmente, está dado e são fatos. Então, dado o contexto, o jovem será isento dos próprios compromissos? Não tem responsabilidade alguma sobre nada?

Já perdi a conta de quantas salas de aula que visitei nas quais alunos estavam com o fone de ouvido prestando zero atenção no professor. Ainda que assumamos a extrema hipótese de que, em todos os casos, se tratava de professores ruins, mas e o jovem? Não está nenhum pouco errado? Sério?

<><> O celular não tem culpa? É apenas um bode expiratório?

Já deixei minha opinião bem pontuada em outros textos da coluna: sou do time que teme os efeitos do celular e que não vê com bons olhos o uso em sala de aula, mas não quero focar nisso agora.

Não sou ingênuo e nem extremista. Sei que ele não é o único culpado por toda a desatenção e pela perda do hábito da leitura. Mas daí para afirmar com toda convicção ele não tem culpa alguma na falta de atenção e nos problemas de aprendizagem dos estudantes é um salto muito grande e não muito justo.

Alinhado a isso, comparar o celular com o rádio, a tv e o videogame também não é muito justo. A maior razão, e a mais simples também, é que ele engloba todos os outros e o carregamos no próprio bolso. Não são a mesma coisa.

Mas então, o celular atrapalha ou não a aprendizagem? Ele diminui ou não a atenção dos estudantes? Ou, talvez, ele não tem efeito nenhum negativo e a problemática é apenas uma escola arcaica e ruim?

Acredito que o celular tem sim efeito negativo e há inúmeros estudos que mostram isso. Assisti à palestra de um médico brasileiro, professor em uma universidade americana, que contou o caso de uma professora do MIT. Ela sempre foi time tecnologia e celular, aplicados na sala de aula, e nos últimos anos mudou drasticamente de posicionamento.

<><> Quem devemos culpar?

É claro que a escola pode melhorar e deve mudar, e é fato que muitos estudantes simplesmente não se enxergam nela. Eu tenho exemplos na própria família. Um dos meus sobrinhos está no 2° ano do ensino médio e não há Cristo que faça ele entender o valor da escola. Por ele, sem exagero, largaria se pudesse. Ele já trabalha e não visualiza como a escola pode ajudar na vida futura.

Ele não está sozinho e, sem exagero algum, milhões de jovens sentem o mesmo. Isso é um fato e um relevante problema, mas o que faremos até a escola mudar? Decretamos que a instituição está à deriva, em caminho de falência, e, portanto, nenhum estudante deve prestar atenção, estudar ou respeitar os professores? Sério que isso é a solução?

Estamos diante de uma problemática complexa, e não há apenas um agente culpado. A solução, em medida alguma, não deve passar pela total isenção do estudante sobre as próprias responsabilidades. Há sim falta de atenção e também, infelizmente, desrespeito com os professores em muitos casos. Nessas situações, a culpa não é apenas do sistema ou do modelo de escola.

Culpar o estudante por tudo não é a solução, mas uma excessiva permissividade e isenção das próprias responsabilidades também está longe de ser.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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