sexta-feira, 23 de agosto de 2024

De Gaza à Ucrânia: o papel do Catar na mediação de conflitos

Representantes dos governos de Rússia e Ucrânia não se reúnem desde os primeiros meses do início da guerra entre os dois países, em fevereiro 2022, quando as tropas russas invadiram a Ucrânia. Mas no fim de semana surgiram notícias de possíveis negociações a serem mediadas pelo Catar, país do Oriente Médio.

As reuniões teriam sido canceladas devido ao movimento das tropas ucranianas em Kursk, na Rússia. Mas a notícia em si poderia ser vista como um novo triunfo para o pequeno Estado do Golfo rico em gás.

Essa não seria a primeira vez em que o Catar se envolve em conflitos fora do Oriente Médio. O país ajudou a fechar acordos para libertar americanos presos no Irã, no Afeganistão e na Venezuela, além de devolver crianças ucranianas às suas famílias depois de terem sido levadas para a Rússia. O Catar também presidiu avanços diplomáticos entre o Sudão e o Chade, a Eritreia e o Djibuti, assim como um acordo de paz em Darfur em 2011.

Em 2020, o Catar ajudou a negociar com o grupo extremista Talibã a retirada dos EUA do Afeganistão. E, em novembro de 2023, os negociadores do Catar ajudaram a restabelecer o cessar-fogo temporário no conflito de Gaza.

<><> Negociador indispensável

"O surgimento do Catar como um mediador importante elevou sua posição diplomática, transformando-o de um outlier regional em um ator crítico no cenário mundial", diz à DW Burcu Ozcelik, pesquisador sênior do think tank britânico Royal United Services Institute. "Esse novo papel aumenta a influência de Doha, posicionando o país como um 'parceiro para a paz' indispensável na comunidade global."

As razões pelas quais o Catar se estabeleceu como mediador do mundo foram bem documentadas. Ao superar seu peso em termos diplomáticos, o Catar quer estabelecer de forma independente sua própria segurança em uma região instável, segundo os analistas.

Forjar sua própria política externa – por exemplo, abrigando dissidentes e auxiliando grupos revolucionários e militantes – é também uma forma de competir com seu rival tradicional, os Emirados Árabes Unidos, e de se recusar a receber ordens da vizinha Arábia Saudita, que é muito maior, de acordo com o pesquisador Ali Abo Rezeg, em um artigo de 2021 publicado na revista acadêmica Insight Turkey.

<><> Aposta em boas relações

Relacionamentos são fundamentais, e o Catar é conhecido por sua ampla e variada rede de contatos, tendo apoiado vários grupos muito diversos através do fornecimento de uma base, armas ou financiamento. Isso inclui o Talibã, a Irmandade Muçulmana no Egito, milícias líbias e revolucionários antigoverno na Síria, Tunísia e Iêmen durante a chamada "Primavera Árabe".

Em 2012, o governo dos EUA, liderado por Barack Obama, pediu ao Catar que hospedasse a ala política do grupo militante Hamas, em vez de vê-la mudar-se da Síria para o Irã, onde teria sido muito menos acessível.

O Catar também mantém melhores relações – incluindo laços econômicos – com o Irã do que seus vizinhos, muitos dos quais consideram os iranianos como inimigos.

E o Catar tem hospedado os EUA na Base Aérea de al-Udeiddesde 2001. Atualmente, essa é a maior base dos EUA no Oriente Médio, com cerca de 10 mil soldados.

"O Catar definitivamente se beneficia disso, porque os governos do Ocidente e do Oriente, até certo ponto, o consideram um amigo muito útil", explica Cinzia Bianco, especialista em países do Golfo no think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores.

Por exemplo: no início de 2022, o presidente dos EUA, Joe Biden, nomeou o Catar como um "importante aliado não pertencente à Otan", em parte devido ao seu papel na negociação da retirada do Afeganistão.

Ser capaz de ter empatia com todas as partes também ajuda. Os analistas dizem que, mesmo trabalhando em estreita colaboração com os americanos, os catarianos também têm sido mais pragmáticos em relação às organizações islâmicas na região, vendo-as como parte de movimentos políticos populares que não podem ser apagados ou evitados. Em alguns casos, isso tem ajudado. Aparentemente, membros do Talibã disseram que se sentiam mais confortáveis no Catar, que, segundo eles, entende todos os lados.

<><> Neutralidade é prioridade

Os negociadores do Catar não têm necessariamente habilidades especiais, segundo Bianco. Eles também treinam para o trabalho. "Mas eu não diria que fazem mais do que os diplomatas que trabalham para outros governos, inclusive na Europa", afirma. "Acho que se trata mais de uma atitude de tentar ser o mais neutro possível. Para eles, é de fundamental importância desempenhar esse papel [como mediadores], e isso significa que eles o colocam acima de qualquer outra coisa, inclusive da política interna e regional."

A riqueza do Catar também tem um papel nisso, acrescenta Bianco. Seus recursos permitem que eles recebam participantes e trabalhem em várias crises ao mesmo tempo.

Isso também pode estar relacionado a uma cadeia de comando mais curta. "A capacidade do Ministério das Relações Exteriores [do Catar] de tomar decisões sem ser questionado ou examinado pelo público faz com que possam agir de forma decisiva", disse Sultan Barakat, professor de políticas públicas da Universidade Hamad Bin Khalifa, no Catar, em texto de fevereiro para a Accord, publicação que analisa regularmente iniciativas internacionais de paz.

<><> Ato de equilíbrio perigoso

No entanto, o fato de ser um negociador tão solicitado internacionalmente também pode ser desconfortável. Observadores apontam que as atuais negociações entre Hamas e Israel nas quais o Catar está envolvido são algumas das tratativas de "maior risco" já realizadas.

Políticos israelenses acusaram o Catar de ser um "lobo em pele de cordeiro" que financia o terrorismo. Políticos americanos pediram uma "reavaliação" do relacionamento com o Catar, caso o país não pressionasse mais o Hamas; em abril, apresentaram um projeto de lei que poderia cancelar o status do Catar como um importante aliado não pertencente à Otan.

Os catarianos rejeitaram todas as acusações, dizendo que não têm poder sobre o Hamas.

"Quando você interage com milícias armadas não-estatais que fazem coisas ruins, obviamente corre o risco de ter o dedo apontado para você e as pessoas dizerem que, de certa forma, você está validando esses grupos e lhes deu mais legitimidade ou acesso a recursos", observa Bianco.

Ela diz que o argumento do Catar é: "Sim, nós temos esses laços, mas os usamos para o bem".

Por mais imperfeito que seja o país, os especialistas argumentam que no momento o mundo precisa do Catar nesse papel.

"A humanidade pagou um preço alto por não ter se sentado e conversado entre si antes, durante as duas guerras mundiais", diz à DW Rabih El-Haddad, diretor da divisão de diplomacia multilateral do Instituto de Treinamento e Pesquisa das Nações Unidas na Suíça.

"Hoje precisamos de partes que permitam que aqueles que estão em conflito conversem entre si e resolvam suas diferenças por meio de negociação, diplomacia e de acordo com o direito internacional", frisa.

 

¨      Rohingyas de Mianmar em meio ao fogo cruzado da guerra civil

Com a guerra civil em Mianmar se tornando cada vez mais complexa, vários grupos religiosos do país estão se vendo em meio ao fogo cruzado das facções beligerantes, que buscam explorar divisões étnicas para promover seus próprios objetivos.

É o que ocorre no estado de Rakhine, onde os combates já duram meses, concentrando-se nas localidades de Maungdaw e Buthidaung. A maioria da população desses locais é muçulmana, sobretudo da etnia rohingya, mas também há budistas rakhines na área.

Os rohingyas são a minoria muçulmana que Mianmar não reconhece como cidadãos. Em 2017, cerca de 750 mil rohingyas foram expulsos para Bangladesh pelos militares de Mianmar.

Testemunhas afirmam que até 200 pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram mortas num ataque com drones e artilharia nas proximidades do rio fronteiriço Naf, em 5 de agosto. Essa informação não pôde ser verificada de forma independente.

Na semana passada, a organização de ajuda humanitária Médicos Sem Fronteiras declarou que suas equipes nos campos de refugiados de Cox's Bazar, em Bangladesh, haviam tratado um número excepcionalmente grande de rohingyas com ferimentos de guerra que haviam fugido de Mianmar para Bangladesh após o ataque de 5 de agosto.

A MSF atua nos campos de refugiados rohingyas de Cox's Bazar, em Bangladesh, que acolhem mais de 1 milhão de refugiados rohingyas oriundos de Mianmar.

Com a ajuda da ONG alemã Asia House Foundation, a DW conseguiu falar com três rohingyas que vivem na Alemanha e mantêm contato com seus parentes na área afetada. São eles Umar Farok, Muhamad Husein e Zainul Mustafá. Os entrevistados não integram nenhuma organização e deram relatos pessoais.

Farok relatou que perdeu 17 parentes nos combates entre 4 e 6 de agosto e que dois sobreviventes conseguiram chegar a Bangladesh.

Husein listou os principais problemas que afetam os rohingyas em Rahkine: recrutamento forçado, sequestros e a falta de suprimentos exacerbada pelo bloqueio de todos os envios de ajuda humanitária.

"As pessoas estão vivendo nas ruas. Não podem entrar em suas próprias casas, ou essas casas foram destruídas. A fome aflige toda a comunidade. A maioria dos rohingyas não consegue fazer uma refeição que seja por dia: eles estão comendo folhas de bananeira e outras coisas para sobreviver", disse Husein à DW.

Farok, Husein e Mustafá disseram acreditar que o Exército Arakan (AA) é responsável pelo ataque de 5 de agosto e pela situação catastrófica em geral.

<><> Conflito entre grupos étnicos no norte de Mianmar

O Exército Arakan (AA) é um grupo rebelde que luta contra a junta militar no poder em Mianmar. Ele atua como braço militar da Liga Unida de Arakan (ULA), a organização política da população budista de Rakhine.

O objetivo declarado do AA e da ULA é criar uma região autônoma no estado de Rakhine que inclua a população muçulmana ao lado dos rakhines budistas. Arakan é o antigo nome de Rakhine.

Numa declaração divulgada em 7 de agosto, o AA rejeitou qualquer responsabilidade pelo ataque de 5 de agosto. Em vez disso, atribuiu a culpa aos militares de Mianmar e a "grupos muçulmanos extremistas armados" que, segundo ele, lutam contra o AA e também impediram que civis fugissem das zonas de combate.

A declaração nomeou milícias rohingyas como o Exército de Salvação dos Rohingyas de Arakan (ARSA), a Organização de Solidariedade Rohingya (RSO) e o Exército Rohingya de Arakan (ARA), formado em 2020.

As milícias rohingyas têm recebido armas e apoio financeiro das agências de inteligência de Bangladesh e de outras partes interessadas há vários anos, de acordo com um relatório do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) de dezembro de 2023.

O relatório afirma que Bangladesh quer que esses grupos ajudem a forçar a repatriação dos rohingyas para Mianmar. Os três homens que falaram com a DW disseram que esses grupos armados não representam os rohingyas.

Enquanto isso, os grupos armados rohingyas passaram a cooperar com a junta governante de Mianmar, o Conselho de Administração do Estado (SAC), para levar de volta refugiados rohingyas que estão em Bangladesh.

Recentemente, um relatório abrangente da ONG humanitária Human Rights Watch documentou que os grupos rohingyas recrutaram à força até 1.800 rohingyas em campos de refugiados em Bangladesh e os levaram para Mianmar para lutar pelo SAC contra o AA.

<><> "Dividir para governar"

O SAC é a terceira parte no conflito no estado de Rakhine. Ele mergulhou Mianmar numa nova fase da guerra civil com o golpe militar de 2021.

Desde outubro de 2023, o SAC está perdendo terreno em várias partes do país. O AA, que atua não apenas em Rakhine, mas em todo o norte de Mianmar, é um dos seus oponentes mais fortes e bem conectados.

Como o SAC está na defensiva contra o AA, ele está confiando na estratégia de "dividir para governar", que os militares têm usado "desde 1948 para manter os grupos étnicos em conflito uns com os outros a fim de governá-los", como explica o historiador da École française d'Extrême-Orient (EFEO) Jacques Leider.

Ele acrescentou que a junta está recrutando rohingyas à força, com a ajuda de milícias rohingyas, e os colocando para lutar contra o AA para insuflar o conflito.

O especialista Paul Greenings, ex-coordenador da Organização Internacional para as Migrações (OIM) em Rakhine, alertou, num artigo de opinião para o jornal no exílio Irrawaddy, em março de 2023, que o "regime militar está novamente jogando a carta étnica no estado de Rakhine, e muitos rakhines e rohingyas estão caindo nessa novamente".

Greenings também escreveu, em junho de 2024: "É importante lembrar que a maioria dos rakhines e rohingyas vive e interage pacificamente". Porém, num conflito marcado por dificuldades e décadas de desconfiança, declarações desse tipo costumam ser descartadas como manipulação.

O comandante do AA, Twan Mrat Naing, declarou em maio que "nossos dedicados soldados de Arakan estão empenhados em proteger e servir a todos, independentemente de sua origem religiosa ou étnica".

Mas como o comandante do AA frequentemente usa o termo "bengalis" para se referir aos rohingyas, muitos rohingyas veem nisso uma indicação de que o AA está buscando um objetivo diferente. Os rohingyas consideram que qualquer pessoa que use a designação "bengalis" está negando que os rohingyas pertençam ao estado de Rakhine.

Mustafá, que é da etnia rohingya, disse à DW que as palavras divergem das ações do AA. "Sua atitude em relação aos rohingyas é a mesma que a dos militares de Mianmar, ou até pior. Seu objetivo é exterminar completamente os rohingyas de Rakhine e transformá-lo em seu próprio país Rakhine."

Leider, entretanto, discorda dessa avaliação. Ele diz que, em outras partes do estado de Rakhine sob controle do AA, os rohingyas e outras minorias muçulmanas vivem ao lado dos rakhines. "O que está acontecendo em Maungdaw e Buthidaung é principalmente o resultado de uma situação confusa de guerra", afirma.

Isso explica, mas é claro que não justifica, a violência contra a população civil.

No entanto, Leider alerta contra elevar o já forte etnonacionalismo budista e muçulmano por meio de especulações e acusações mútuas, afirmando que isso acaba reforçando a estratégia de "dividir para governar" do SAC.

 

Fonte: Deutsche Welle

 

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