sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Luís Nassif: ‘A imprudência de estimular a expansão dos cassinos online’

Não há outra explicação: o país enlouqueceu. Quem se supunha racional, tornou-se terraplanista do austericídio, permitindo a expansão do mais nefasto vício desde a industrialização dos cigarros: as bets, os sites de aposta. E quem era acusado de terraplanismo – os evangélicos – se tornou a única voz da razão contra o vício, por saberem o que essa loucura provoca no povo.

O governo contabiliza apenas o que vai arrecadar com as outorgas – cerca de R$ 3 bilhões. E fecha os olhos para todas as contraindicações.

No período em que casas de bingo foram autorizadas em grandes centros, foi possível ver o estrago que provocavam em famílias: endividamento, desestruturação familiar, depressão, isolamento, afetando a estabilidade familiar e as relações sociais. E, adicionalmente, um enorme estímulo ao crime organizado, por ser ferramenta óbvia para lavagem de dinheiro.

Também tem impactos na desigualdade social, por afetar mais indivíduos de baixa renda.

Em 12 de julho passado, os professores Scott R. Naker, Justin Balthrop, Mark Johnason, Jason Kotter e Kevin Pisciottay produziram um trabalho acadêmico, “Estabilidade no jogo fora de casa: o impacto das apostas esportivas em Famílias Vulneráveis”. O trabalho foi apresentado em um seminário da Universidade Brigham Young, no Arkansas.

Em 2018, o extraordinário lobby dos cassinos conseguiu arrancar da Suprema Corte dos Estados Unidos, a legalização dos esportes presenciais e online de apostas. Somente em 2023, este mercado gerou mais de US$ 120 bilhões no total de apostas e US$ 11 bilhões em receitas. De 2018 a setembro de 2023, 25 estados e Washington aprovaram legislações legalizando o jogo.

O estudo levantou dados de transações financeiras de um enorme contingente de americanos, analisando compras, investimentos e transferências para sites de jogos de azar online.

A conclusão, óbvia, foi de diminuição da disponibilidade de crédito, aumento da dívida de cartão de crédito e uma maior taxa de incidência de saque a descoberto nas contas bancárias.

O trabalho constatou que os gastos com cassinos tiveram um aumento nos depósitos médios de apostas em família em cerca de US$ 25 por trimestre. Pior: o trabalho constatou que quanto maior as restrições financeiras das famílias, maior a fração do rendimento nas apostas.

Os investimentos líquidos no mercado de capitais caíram 14%. Constatou-se que famílias com menor renda passaram a reduzir a poupança e aumentar os gastos em complementos ao jogo, levando a uma deterioração duradoura em sua saúde financeira a longo prazo.

Não é necessária uma tese acadêmica para avaliar os estragos que as bets já estão provocando no país. Jovens com menos de 30 anos representam mais de um terço dos pacientes atendidos por dependência em apostas no Hospital das Clínicas de São Paulo. O quadro piora entre rapazes de 20 anos, que já chegam altamente endividados.

Segundo as notícias, o governo pretende que parte dos recursos seja utilizado em casas de tratamento dos viciados, um contrassenso que não fica nada a dever aos defensores da cloroquina.

Ontem, foi anunciada a associação da MGM Resorts com as Organizações Globo.

O cappo da MGM, Bill Hornbuckle saudou a negociação em sua conta no Linkedin:

“Hoje anunciamos uma nova aliança estratégica com o Grupo Globo, o maior grupo de mídia da América Latina, para buscar uma licença de apostas esportivas e iGaming no Brasil, um dos mercados de jogos regulamentados mais novos e de crescimento mais rápido do mundo.

Estamos entusiasmados com as possibilidades de apostas esportivas responsáveis e iGaming no Brasil – um mercado com mais de 20 milhões de apostadores ativos, representando um tamanho de mercado de mais de US$ 3 bilhões e crescendo. Ao nos unirmos ao Grupo Globo, podemos entrar no mercado rapidamente e em escala com nossa comprovada tecnologia e marca BetMGM, estabelecendo uma posição inicial como uma operadora líder e uma fornecedora do melhor produto e experiência para clientes em todo o Brasil”.

•        Preparando para o furacão das apostas online

A legalização dos cassinos online é uma temeridade, que não foi adequadamente analisada pelo governo. Hoje em dia, as máquinas caça níquel estão espalhadas por todo o país, muitas vezes controlada por policiais. Há cassinos clandestinos por toda São Paulo. Seria fácil para a polícia reprimi-los.

A lógica é que já existe a exploração ilegal de cassinos. Formalizando a atividade, esvazia-se a exploração pela contravenção e colocam-se as rédeas na economia formal.

De fato, ao longo do século máfias de vários países exploraram o jogo clandestino, a Cosa Nostra, da Sicília, a Chicago Outfit, de Al Capone, a Yazuka, do Japão, a Tríades chinesa, a Ndrangheta, da Calábria.

A regulamentação do jogo abriu espaço para o lado mais barra pesada das empresas formais. Isso porque, por ser uma atividade que depende fundamentalmente de regulação, criou um embeiçamento feroz com a política. É só analisar a atuação de Sheldon Adelzon, recentemente falecido, que financiava a campanha da ultradireita dos Estados Unidos e Israel, e aproximou-se da família Bolsonaro, a ponto de estimulá-los a transformar Angra dos Reis na Cancun brasileira. Um dos lobistas da GTech foi um candidato a vice-presidente dos Estados Unidos. No Brasil, ela se envolveu em propinas para Bugatti, homem da república de Ribeirão, e se associou a Carlinhos Cachoeira.

A regulação tem um conjunto enorme de contra-indicações.

1.       A lavagem de dinheiro vai explodir no país.

Historicamente, cassinos servem para lavagem de dinheiro. É só lembrar os anões do orçamento, o deputado que justificava o aumento de patrimônio alegando ter ganhado dezenas de vezes na Loteria Esportiva.

Só se lava dinheiro quando o cassino é legalizado. O deputado jamais alegaria que o aumento de riqueza foi por ganhos em um cassino clandestino. Como dois e dois são quatro, as organizações criminosas utilizarão essa legalização para lavagem de dinheiro. A Receita pode regular o CPF de quem joga. Mas não terá controle sobre os algoritmos do jogo. Uma coisa é uma loteria controlada pela Caixa Econômica Federal. Outra, é o controle difuso por mais de uma centena de bets.

2.       A explosão da doença social.

A legalização permite a entrada de outros grupos. Mas, enquanto os cassinos ilegais se movem nas sombras, os cassinos legais recorrem à chamada publicidade opressiva.

Aliás, mesmo antes da legalização, as bets já expunham o país a uma publicidade massacrante.

Os primeiros bets que apareceram no Brasil passaram a anunciar imediatamente na home de O Globo, no Jornal Nacional, e ainda levaram, de gorjeta, um artigo assinado por Nelson Motta, colocando-se na categoria de conventos beneditinos, como os locais mais vigiados e mais corretos da economia.

A busca desesperada de novos modelos de negócios, está levando os grandes grupos de comunicação – como a Globo – a se associar a gigantes.

<><> A regulamentação da propaganda

E aí se entra no ponto central: a regulamentação da propaganda de bets.

Desde 2019, a Itália impôs uma proibição quase total sobre a publicidade de jogos de azar, incluindo sites de apostas. Conhecida como o “Decreto Dignidade”, essa lei proíbe a publicidade em todos os meios de comunicação, incluindo televisão, rádio, internet, e eventos esportivos. Exceções são feitas apenas para a loteria nacional.

A Bélgica proibe publicidade de jogos de azar na TV antes das 20 horas e proibe completamente dureante eventos esportivos ao vivo e em programas infantis. No ano passado, o país restringiu a publicidade online e em redes nacionais.

O Reino Unido proibe publicidade antes das 21 horas, exceto durante eventos esportivos ao vivo. E desde outubro de 2021 proibe influenciadores e celebridades que possam atrair menores de idade.

Na Espanha, a publicidade em TV e rádio é permitida apenas entre 1h e 5h da manhã. Em Portugal, a publicidade deve incluir mensagens de jogo responsável e não pode ser direcionada a menores de idade. É o mesmo padrão na França.

Já a Noruega mantém o monopólio estatal sobre jogos de azar.

Mas não é apenas a publicidade. Nos últimos anos, enquanto os gastos com apostas explodiram no Brasil, em outros países houve redução, graças a um conjunto de medidas.

No Reino Unido houve limites para apostas em terminais de jogo de probabilidades fixas. O limite máximo de apostas foi reduzido de 100 para 2 libras por rodada. O mesmo procedimento foi adotado pela Suécia.

Muitos estados na Austrália proibiram o uso de cartões de crédito para jogos de azar, tanto em cassinos físicos como em plataformas online. O mesmo ocorreu no Reino Unido.

A redução dos gastos com apostas em diversos países tem sido alcançada por meio de uma combinação de medidas regulatórias, educativas e tecnológicas. Essas medidas visam proteger os consumidores, prevenir o vício em jogos de azar e limitar os impactos negativos do jogo na sociedade. Aqui estão algumas das principais estratégias adotadas:

O Reino Unido também implementou o programa de autoexclusão “gamstop” que permite ao jogador bloquear seu acesso da todos os sites de jogos de azar licenciados.

Já na Suécia, há uma autoridade para jogos de azar que utiliza ferramentas de monitoramento para identificar comportamentos compulsivos. Esse mesmo sistema é adotado pela Noruega.

A Espanha e a Suécia proibiram bônus de boas-vindas.

 

•        Jornalismo e cassino não cabem na mesma empresa. Por Cecília Oliveira, no The Intercept

As empresas de mídia mais poderosas do Brasil estão correndo para entrar em um novo negócio bilionário. Até aí, tudo dentro da normalidade.

Mas e se eu te contar que esse negócio causa vício, endividamento, depressão e até suicídio? Pois é. 

Outro dia li a notícia de que a Globo, SBT e Band estão se articulando para lançar suas próprias casas de apostas esportivas, entrando em um mercado que movimenta "só" R$ 50 bilhões por ano — muitas vezes, às custas da destruição de famílias, especialmente as mais pobres.

A regulamentação dessas bets mal saiu do papel. Aconteceu em maio deste ano e começa a valer em janeiro do ano que vem (desde 2018, as apostas esportivas têm operado em uma área cinzenta legal dominada por empresas offshore). Até lá, as empresas interessadas em explorar este mercado já estão se cadastrando no Ministério da Fazenda.

O problema da Globo, Band e SBT estarem dentre as mais de 100 cadastradas é que esses canais também são uns dos maiores veículos de imprensa do país. Como é que ficará a tal da "isenção jornalística" para falar deste assunto e outros relacionados? E não que eu acredite que esta isenção exista — mas elas dizem que sim, né?

Aposto que não veremos denúncias às bets nessas emissoras ou investigações sobre clubes esportivos ou as implicações para a saúde pública, como estávamos vendo...

Na real, não vai ter qualquer coisa que coloque em risco seus lucros. É assim que funciona o jogo.

Esse é mais um exemplo gritante de como a necessidade de um jornalismo realmente independente nunca foi tão grande.

Aqui no Intercept Brasil, no entanto, temos feito uma cobertura crítica desses movimentos desde 2017. É evidente que precisaremos dobrar a aposta e fazer ainda mais apurações agora. Porque aqui nosso único negócio é o jornalismo investigativo que prioriza o interesse público. Não temos sócios com jogadas comerciais secretas, nem anunciantes nos pressionando.

Se hoje a divulgação das bets por meio dos influenciadores já está causando tanto estrago, imagine só como a situação ficará quando os peixes grandes da mídia entrarem com força na jogada.

Não só os apostadores entrarão em falência, mas toda a integridade do jornalismo e da mídia esportiva, não apenas na televisão. E não estou nem exagerando — nos EUA já começou, e aqueles que se beneficiam das apostas esportivas não são os mesmos que estão noticiando os escândalos.

Aqui será ainda mais descarado.

E quando começar a dar errado, se o Congresso tentar regulamentar a atividade de canais de TV nas bets, como você acha que serão as matérias jornalísticas sobre o assunto? Contra ou a favor de mais regras que protegem o telespectador?

Alguém tem que ficar de olho nisso, e esse alguém é o jornalismo independente. Pois, como você pode ver, na mídia empresarial terá cada vez mais espaço para caça-níqueis e menos espaço para caça-fatos.

Mas não aqui. Já revelamos, antes da primeira onda de apostas, como o "homem da mala do Friboi" e outros empresários ricos estavam se estabelecendo em ilhas com leis bancárias sigilosas, como Malta, de olho no mercado de jogos digitais.

Também explicamos como os mafiosos estavam manipulando jogos de futebol e mergulhamos na história obscura da Pixbet, hoje uma das maiores empresas do setor.

No Intercept, caçar fatos é o vício dos nossos jornalistas investigativos — um vício que, ao contrário das bets, vale a pena apostar seu dinheiro. Porque, apesar de sermos pequenos, o impacto do nosso trabalho é enorme.

O único risco que você corre ao se tornar doador do Intercept, é de ver uma matéria que você ajudou a financiar mudando a vida das pessoas e os rumos do país, o que acontece todo mês por aqui.

 

•        Liberação dos jogos de azar pode aumentar lavagem de dinheiro e influência de mafiosos nas eleições, diz cientista político

O projeto de lei que trata dos jogos de azar,  acendeu a discussão sobre benefícios e possíveis consequências da legalização de bingos, cassinos e o jogo do bicho. A proposta passou na última quarta-feira (19) com votação apertada: 14 votos a favor e 12 contrários. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou nesta sexta (21) que sancionará a proposta caso ela avance no Congresso.

As diferentes visões dos parlamentares sobre o tema são ressaltadas por Paulo Niccoli Ramirez, cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). “Há uma visão mais econômica que vai dizer que a existência dos cassinos, o retorno dos bingos e mesmo a legalização do jogo do bicho, poderiam aumentar a arrecadação do governo. Então há senadores que olham por esse prisma”, explica.

“Por outro lado, a grande crítica que se faz é que é um jogo viciante. Muitas famílias são destruídas por dívidas com jogo principalmente nos cassinos e bingos, o que geraria um problema maior. Por isso, a bancada evangélica, que é contra qualquer tipo de vício, se mostrou contra”, expõe o especialista, acrescentando que existe uma divisão de opiniões sobre o assunto dentro dos próprios partidos de esquerda.

O texto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados e, depois da aprovação na CCJ, precisa ser apreciado pelo plenário do Senado. Pela ideia, em média, cada estado poderia ter pelo menos um cassino, a depender da quantidade de habitantes. São Paulo contaria com até três.

Embora os chamados jogos de azar possam ajudar a economia brasileira, eles também representam risco de aumento da lavagem de dinheiro, pontua Niccoli, que defende uma revisão do projeto.

“Vai ser uma demanda totalmente elitista. Não se pensou, por exemplo, em levar cassinos a lugares mais pobres, regiões mais distantes, periféricas. Porque, se assim fosse feito, isso dinamizaria bastante a economia de lugares mais pobres. Mas nada disso foi pensado”, pontua. “Então, o que a gente vai ter, na verdade, são mafiosos se transformando em empresários e com uma grande abertura para lavagem de dinheiro. Vamos ver uma corja de milionários e bilionários enriquecendo ainda mais a partir dessa atividade. Se pensou muito pouco na população.”

“Não adianta liberar por liberar. Se não houver um respaldo em termos de projetos sociais para redução da desigualdade e pensar na saúde física e mental dos brasileiros, esse projeto só vai atender a uma elite”, opinou o especialista.

Além disso, a decisão influenciaria a vida política e o processo eleitoral, segundo o cientista político. “A liberação dos jogos é a porta aberta do inferno, exatamente para que mafiosos se transformem em empresários e, de empresários, passem a influenciar ainda mais a vida política. E isso é um problema grave que a gente tem aqui. É um problema também que pode trazer questões de segurança pública. Quem vai, de fato, ter esse direito de ter o cassino?”, questiona.

“Isso pode influenciar eleições e a maneira como a segurança pública age, até mesmo fazendo vista grossa, principalmente a área de investigação, em relação à lavagem de dinheiro”, detalha. “É preciso ter uma regulamentação muito mais rígida, uma cobrança de impostos muito maior sobre as atividades de jogos, exatamente para financiar outras atividades do governo, desde a segurança, saúde pública e, principalmente, a redução da desigualdade social.”

 

Fonte: Jornal GGN

 

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