Retornados: comunidade na África mantém
tradições brasileiras e resiste até os dias atuais
Na junção entre o Togo
e Benin, onde as fronteiras se confundem em uma rica tapeçaria cultural, reside
uma comunidade singular, os retornados do Brasil. Em diversos outros países
africanos, esses indivíduos — que após a Lei Áurea retornaram à África — também
são presentes.
Doutoranda na Escola
de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, Anice Lawson explica que o
grupo preservou aspectos da cultura brasileira em suas vidas cotidianas.
"A gente identifica essa comunidade pelo sobrenome que eles possuem, De
Almeida, Da Silveira, Da Silva. Esses sobrenomes que eles guardaram depois de
terem retornado do Brasil", exemplifica.
Em entrevista aos
jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, da Sputnik
Brasil, ela relata que nasceu no Togo, mas passou parte significativa de sua
vida em Benin.
Segundo Lawson, há
várias comunidades de retornados nesses dois países, além de Gana, Nigéria,
Senegal e nações da África Austral e África do Leste.
Ela narra que essa
comunidade carrega consigo laços históricos profundos entre os continentes
africano e sul-americano. Destaca-se a festa do Bonfim, por exemplo, uma
celebração que ecoa tradições festivas da Bahia, onde participantes se vestem e
se alimentam em homenagem à sua herança brasileira, retomadas no Togo.
Segundo ela, a maioria
fala as línguas respectivas de cada país, de acordo com a nação europeia que o
colonizou, mas muitos tentam incorporar e manter vivo o português. "Eu
estudo um pouco essa comunidade, pela minha curiosidade e por ter também afinidade."
A comida,
especialmente a feijoada, é um vínculo emocional com o Brasil, uma maneira de
"matar a saudade" e reafirmar suas identidades. "Eles costumam
comer na mesa, com faca e garfo. Eles trouxeram também as comidas brasileiras,
por exemplo a feijoada, que é um prato brasileiro e que as pessoas costumam
comer aqui para festejar e lembrar do Brasil."
No entanto ela aborda
questões delicadas, como a dinâmica social dentro das comunidades de
retornados, que acabam por reproduzir padrões de opressão que testemunharam no
Brasil. "É um assunto muito sensível para falar dos retornados em aspecto
político."
Em pesquisas e
diálogos com pessoas da região, ela soube que alguns grupos, quando retornaram
ao Togo, mantinham relações de trabalho com outras pessoas. "A comunidade
brasileira escravizou, de certa forma, essa comunidade do interior. Mas não no
sentido de escravizar brasileiro ou das Américas."
O que a deixou
surpresa foi que em alguns casos retornados formaram uma elite social, com
influência política e econômica. "Eles têm alguém para cuidar da casa,
alguém que cuide de tudo. Acho que, de certa forma, essas pessoas que
retornaram se tornaram uma comunidade que se construiu a ponto de virar uma
elite da sociedade."
"Acho que
inconscientemente eles reproduziram o que viveram no Brasil durante a
escravidão. Eu não sei, eu estou falando inconscientemente, porque se for
conscientemente, eu acho que eles não fariam isso. […] Tudo o que eles sofreram
no Brasil eles não queriam mais sofrer aqui, e eles têm, eu acho que eles dão
valor a essa liberdade que eles ganharam."
Lawson já morou no Rio
de Janeiro durante pesquisas de língua portuguesa e cursou ciências sociais na
cidade, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ela, o
Brasil, com sua história intrínseca à África, também possui problemas raciais enraizados.
"O que eu percebi
no Brasil, infelizmente, e eu fico triste quando eu falo dessas questões, é que
ainda hoje o negro e o preto ainda são considerados uma pessoa que não é um ser
humano."
Apesar de ter se
encantado pelo Brasil durante os cinco anos em que viveu em território
brasileiro, ela entende que há progressos a serem feitos. "A gente queira
ou não, a África e o Brasil têm uma história que nunca se apagou. E isso não
começou ontem."
"A gente tem que
reconhecer esse passado escravagista para tentar avançar. Enquanto a gente não
conhecer nossa própria história, fica difícil se localizar na vida pessoal e
social, e construir um presente e se projetar no futuro. O Brasil e a África
são lugares distantes, porque o oceano Atlântico nos separa, mas eu acho que a
gente é o mesmo povo. São só as distâncias que nos separam."
A professora e
pesquisadora de história da África pela UFRJ Monica Lima e Souza destaca a
trajetória dos retornados, que uma vez libertos, após a Lei Áurea, buscaram
retornar ao continente africano. "A história dessas pessoas me fascina há
bastante tempo."
"Era duríssimo,
dificílimo. Era muito, muito trabalhoso e envolvia uma série de questões na
vida dessas pessoas. Mas houve aqueles que conseguiram fazer parte desse grupo
[retornados]. […] A maioria que eu encontrei saía de portos, de cidades, portanto
do Brasil escravista nesse período, no século XIX, quando houve, repito, um
número mais intenso de retornos. E até onde eu pude investigar, eram pessoas
envolvidas no trabalho urbano, eram artesãos, eram pequenos comerciantes que
viviam na cidade e que faziam nossas cidades terem suas atividades."
·
Quantos escravos houve no Brasil?
Entre meados dos
séculos XVI e XIX, vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças
negras, o equivalente a mais de um terço de todo o comércio negreiro mundial,
apenas para o território brasileiro.
A pesquisa de Souza
revela que antes da Lei Áurea, sancionada em 1888, ao menos 3,5 mil pessoas
haviam retornado à África, entre 1830 e 1870, principalmente de áreas urbanas,
onde havia uma maior concentração de retornados. "E isso, claro, é infinitamente
pequeno se a gente olhar o número de escravizados que foram trazidos para cá,
para o Brasil, nesse período. Mas, de qualquer forma, é um número expressivo em
si."
"São histórias
que falam de pessoas que foram trazidas, sequestradas das suas terras de
origem, colocadas nos porões dos navios escravagistas, chegaram aqui no Brasil
e nas Américas, nessa situação de cativeiro, e conseguiram não apenas
conquistar a sua liberdade, como juntar recursos para voltar para o seu
continente de origem."
Artífices, pequenos
comerciantes e trabalhadores urbanos foram os protagonistas dessas histórias,
segundo ela, e contavam com dificuldades além da ausência de apoio
institucional, tais como o risco de reescravização — o que motivava até que o
destino final do retorno não fosse o local exato de origem, mas outras regiões
africanas.
"Os lugares de
onde elas haviam sido trazidas muitas vezes eram locais onde havia o perigo de
uma reescravização. […] E essas pessoas que voltaram majoritariamente buscaram
cidades-porto nas quais elas teriam chance de ter uma vida melhor e que muitas
vezes não correspondiam ao local exatamente de origem."
Ela ressalta que essas
pessoas não receberam apoio financeiro do Estado brasileiro ou de organizações
locais. Em vez disso, tiveram de trabalhar e estabelecer redes de organização
para buscar a liberdade e viabilizar o retorno.
"Em outros
lugares das Américas negras, houve grupos religiosos, até o próprio governo
local, que estimularam a volta dos libertos para a África. Nos Estados Unidos
chegou a haver uma campanha, e houve realmente um movimento chamado Back to
Africa, estimulado por lideranças religiosas. E que tinha a ver com muitos
fatores de lá, entre eles o liberto ser 'um indesejável naquela sociedade'.
Eles temiam a figura do liberto negro."
·
Como foi a escravidão do Brasil?
A pesquisadora relata
que houve diversas tentativas de resistir aos cativeiros. Sua pesquisa
baseou-se em relatos de fugas, negociações por direitos básicos e até mesmo na
articulação de greves por parte dos escravizados.
"Quando um senhor
ou uma senhora prometia liberdade a um escravizado, se ele ficasse servindo
durante tantos anos aos seus pais ou aos seus filhos, isso era o trabalho que
pagava. Aí aquele escravizado ou aquela escravizada conseguia se libertar."
Outro aspecto era a
prática da negociação por espaços de liberdade, onde tais indivíduos buscavam
garantir direitos mínimos que não possuíam, tais como o descanso semanal, o
cultivo de suas próprias roças e a celebração de suas tradições culturais.
Para Souza, é preciso
ampliar o reconhecimento e a compreensão dessas histórias, tanto na literatura
quanto no cinema. Segundo ela, há uma riqueza de narrativas ainda não
exploradas sobre esse período crucial da história brasileira.
"Aqui no Brasil
não houve nenhum tipo de apoio para essas pessoas voltarem [para a África].
Portanto essas pessoas voltaram por seu próprio trabalho e esforço.
Evidentemente, quando eu digo por seu próprio trabalho e esforço, [digo]
inclusive [do esforço] em tecer relações, estabelecer contatos, conseguir
apoios que ajudassem, muitas vezes, a elas e suas famílias a realizarem esse
percurso de volta."
¨ Portugal volta atrás e ignora inventário para devolver tesouros
às ex-colônias, incluindo Brasil
Em novembro de 2022, o
então ministro da Cultura português, Pedro Adão e Silva, anunciou que o país
faria um inventário de tesouros sob seu poder para devolvê-los às ex-colônias,
no entanto, Lisboa voltou atrás.
Na época, Adão e Silva
prometeu criar um grupo de trabalho para elaborar a lista e sublinhou que seria
um detalhado processo de levantamento realizado com ajuda de acadêmicos e
diretores de museus.
Agora, a pasta da
Cultura do governo do primeiro-ministro, Luís Montenegro (PSD), informou à
coluna Portugal Giro do jornal O Globo que "o Ministério da Cultura não
tem nada a acrescentar sobre este assunto".
Questionado pela mídia
se o inventário de bens das ex-colônias estava em andamento ou foi
interrompido, a pasta apenas enviou um comunicado no qual ressalta que "as
relações do povo português com todos os povos dos Estados que foram antigas
colônias de Portugal são verdadeiramente excelentes", ao mesmo tempo que
relata diversas iniciativas portuguesas com esses países.
No entanto, não diz
nada sobre o inventário para devolução dos tesouros e em um ponto sublinha que
"não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações
específicas com esse propósito".
A resposta sobre a
iniciativa chega dias após o presidente Marcelo Rebelo de Sousa trazer à tona o
debate em torno do pagamento dos custos da escravidão nas ex-colônias.
Montenegro ficou em
silêncio depois da declaração do presidente e se limitou a declarar que
"há um comunicado que diz tudo o que é a posição do governo" quando
indagado sobre o assunto na semana passada, relata a CNN Portugal.
Em visita oficial a
Cabo Verde, ex-colônia de Portugal, Rebelo de Sousa voltou a defender a
reparação e disse que "não podemos colocar travões [freios] a novos passos
de cooperação".
Na proposta feita pelo
então governo socialista do ex-premiê António Costa, os tesouros a serem
devolvidos seriam "obras de arte, bens culturais, objetos de culto e até
restos mortais ou ossadas retiradas das suas comunidades originais".
Fonte: Sputnik Brasil
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