Pantanal deve enfrentar nova seca extrema
após chuvas abaixo da média e aumento do fogo
Lourenço Pereira Leite
nasceu e cresceu no Pantanal. São 53 anos de vida na maior planície alagável do
planeta. Foi nela que ele aprendeu a pescar e se tornou parte da terceira
geração de pescadores da sua família, constituída por indígenas Guató e negros
escravizados que trabalhavam em fazendas em Cáceres, em Mato Grosso, a mais de
200 km de Cuiabá, capital do estado. O aprendizado dos seus antepassados levou
o pescador a entender qual é o canto dos pássaros que avisa que a chuva estava
chegando, um som que ele tem escutado cada vez menos desde 2020, quando o
Pantanal passou seguidamente a enfrentar secas severas.
“A nossa previsão do
tempo vem dos animais. E eles estão quietos. Não escuto mais na mesma
frequência o canto do [pássaro] chapéu-velho [Mesembrinibis cayanensis].
São os animais que anunciam a chuva. É no som do jacaré e do bugio que a gente
tem ideia da água que vai cair. Porém tá tudo diferente. O cupim mesmo não voa
mais para sinalizar que tem muita chuva, por exemplo. E tudo isso sinaliza que
vamos enfrentar muita seca aqui no Pantanal”, afirma Lourenço.
A “previsão dos
animais” encontra amparo na ciência. A estimativa da meteorologia é que o
Pantanal deve voltar a enfrentar neste ano uma seca intensa e perigosa. Em
abril, os níveis dos rios do Pantanal já ficaram muito abaixo do mínimo
esperado para esta época do ano, indicativo de menor ocupação da planície
pantaneira pelas águas, com consequente aumento de áreas secas. Dados do
MapBiomas Água indicam que o Pantanal é o bioma com a maior tendência de
redução da superfície de água no Brasil, com uma retração de 81,7% entre 1985 e
2022.
As chuvas são as
principais responsáveis pelo transbordamento dos rios no Pantanal. Em novembro
e dezembro é quando costumam ocorrer as primeiras chuvas. É o período em que se
inicia a cheia e as águas inundam e cobrem a planície até abril. Entre maio e junho,
começa a vazante, ocasião em que os rios e lagoas permanentes começam a
retornar aos seus limites. Já nos meses de julho a outubro, a planície volta a
ficar seca.
Na temporada de cheia
deste ano, porém, choveu bem menos que o esperado, com acúmulos de precipitação
em algumas regiões somente em março e abril, o que não foi o bastante para
mudar o cenário. Devido à intensa estiagem, o solo absorveu boa parte da água,
e o que restou não foi suficiente para promover o pulso d’água para inundar o
bioma.
<><> Por
que isso importa?
- Maior planície alagada do mundo já sofreu uma retração de
81,7% da superfície de água entre 1985 e 2022 e enfrenta dificuldade em se
recuperar; pesca e agricultura estão sendo prejudicadas.
- Apesar de este ser o período chuvoso no bioma, precipitação
e níveis dos rios são os mais baixos desde 2020; queimadas nos primeiros
quatro meses do ano cresceram 1.033% em relação ao mesmo período do ano
passado.
Um marco dessa
situação é o nível do rio Paraguai na região de Fuerte Olimpo, no sul do
Pantanal, já no Paraguai, onde as águas caminham para deixar a planície. É um
dos mais baixos dos registros. No dia 15 de abril deste ano estava em 2,83
metros, ante 5,44 metros um ano atrás. Mesmo em 2020, que registrou a pior seca
dos últimos 60 anos, o nível do rio nesta época do ano no local era de 3,37
metros, ou seja, 54 centímetros acima do observado neste ano, segundo dados da
Dirección de Meteorología e Hidrología do Paraguai.
Na régua que fica em
Ladário (MS), a mais antiga das réguas de medição do rio Paraguai, com cem anos
de existência, os níveis da água também estão inferiores aos níveis de 2020.
Entre 31 de janeiro e 30 de abril deste ano, o nível do rio subiu de apenas 60
centímetros para 1,43 metro. Em 2020, no mesmo período, o nível passou de 1,18
metro para 1,82 metro.
De acordo com Serviço
Geológico Brasileiro (SGB), que opera o sistema de alerta hidrológico no rio
Paraguai desde 1994, estão sendo registrados déficits de precipitações da ordem
de 300 mm no período chuvoso de 2023/2024, que teve início em outubro do ano
passado. Foram observadas apenas 60% das chuvas esperadas para esses meses. O
SGB aponta que essa condição tem potencial de provocar uma estiagem bastante
severa neste ano, especialmente no segundo semestre, quando ocorre o período
seco.
“É importante olhar o
conjunto de processos em andamento [a seca que segue se agravando, os fogos
intensos que ocorrem desde 2019 e que fogem do ciclo natural do Pantanal e o
aumento de temperatura por conta da crise climática] e a pouca quantidade de água
na planície”, pontua o biólogo Alcides Faria, fundador e diretor institucional
da ONG Ecologia e Ação (Ecoa), que promove ações para a preservação do meio
ambiente no Pantanal, no Cerrado e na bacia do rio da Prata.
“Pouca água significa
mais ‘combustível’ e território para o fogo. Nos últimos anos, várias
‘normalidades’ foram quebradas no Pantanal. Um exemplo recente foi o fogo no
mês de novembro de 2023, que nunca havia acontecido”, complementa.
De acordo com dados do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do início de janeiro até esta
segunda-feira (29), o Pantanal, que se espalha no Brasil entre Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul, registrou 646 focos de calor – alta de 1.033% em relação ao
total registrado nos primeiros quatro meses do ano passado, que tiveram 57
focos no bioma.
A situação não era tão
ruim para o quadrimestre desde 2020, quando o período teve 1.815 focos. Em
2019, ano que também teve seca, houve 674 focos no período.
Faria explica que a
preocupação aumenta porque a partir de junho está prevista a ocorrência do La
Niña, fenômeno climático oposto ao El Niño e que se caracteriza pelo
resfriamento das águas do Pacífico. As consequências para o Centro-Oeste
costumam variar, mas ele foi associado à forte seca de quatro anos atrás no
Pantanal.
“Em 2020, quando
ocorreu um dos grandes incêndios, também prevalecia o La Niña. Segundo o NOAA
[organização do governo norte-americano para oceanos e atmosfera], nada impacta
mais o clima global do que os fenômenos La Niña e El Niño. É necessário atenção.
Prevenção é a palavra da hora para o Pantanal”, afirma.
A reportagem procurou
as secretarias de Meio Ambiente de Mato Grosso e Mato Grosso Sul para saber
quais ações estão sendo planejadas e/ou executadas para mitigar os impactos
socioambientais da seca no Pantanal, reduzir os riscos de incêndios e dar
suporte às comunidades afetadas, mas não obteve respostas até a publicação
desta reportagem.
No dia 18 de abril, o
Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima promoveu um seminário com os
dois estados para abrir os trabalhos de construção do Plano de Prevenção e
Controle do Desmatamento (PPCD) do bioma, previsto para ser lançado ainda neste
ano.
Na ocasião, os
governadores Eduardo Riedel (MS) e Mauro Mendes (MT) assinaram um acordo de
cooperação técnica a fim de uniformizar legislações sobre o uso de recursos do
bioma nos dois estados. O acordo, com prazo inicial de 60 meses, inclui
também ações de monitoramento da fauna silvestre, o fomento do turismo e da
produção sustentável e a elaboração do Plano Integrado de Prevenção,
Preparação, Resposta e Responsabilização a Incêndios Florestais para o bioma
Pantanal brasileiro.
·
Sem água, sem pesca,
sem futuro
O pescador Lourenço
Pereira Leite conta que navegar pelo rio Paraguai e seus afluentes se tornou
desafiador e caro. Com a seca, a piracema não aconteceu, os peixes não subiram
os rios. Com isso, os pescadores, sem a possibilidade de atalhos devido à falta
de água, têm feito percursos de 18 horas ou mais para chegar a regiões onde
ainda é possível pescar algo. Mas a quantidade de peixes também diminuiu, e o
que se pesca, por vezes, não paga nem o combustível do barco. Muito menos as
despesas do mês.
“A água é nosso braço,
perna e mão. É vida para nós. A seca impacta tudo. Nossa locomoção está cada
vez mais difícil. Pegar peixe, pior. Eu já cheguei a ir mais de 200 km da minha
casa para tentar pescar e garantir o sustento da minha família”, conta. A aflição
de Lourenço o leva às lágrimas ao lembrar que é da pesca que ele garante os
estudos das filhas que cursam direito e biologia. Ambas se dedicam no intuito
de ajudar a comunidade ribeirinha onde o pai vive, à beira do rio Sepotuba, um
importante afluente da bacia do alto rio Paraguai. “Eu estou muito abalado. Eu
luto para que minhas filhas consigam estudar, mas parece que minha luta [a
pesca] não vai ter futuro. É muito difícil.”
Em Mato Grosso do Sul
a situação é a mesma. É o que conta a ribeirinha Nilza Bandeira, de 59 anos.
Pescadora e apicultora em Miranda, cidade a cerca de três horas da capital,
Campo Grande, ela vive o drama de ter seus dois trabalhos impactados pela falta
de água. “O impacto é em tudo, né? A chuva para nós é essencial aqui no
Pantanal. Porque, quando não tem chuva, não tem peixe. O rio não enche, os
peixes não sobem para desovar. Se não chove, não tem florada. Sem ela, não tem
fruto nativo. Tanto para alimentar a gente, os peixes e os outros animais”,
afirma Nilza. “Na época da cheia, a gente sai para pescar por remessa e chega a
pegar até 400 kg de peixes. Neste ano, na Semana Santa, meu cunhado saiu para
pescar, passou 20 dias no rio, voltou só com 30 kg”, lamenta.
A seca no Pantanal é
motivada por diversos fatores: mudanças climáticas, degradação de nascentes,
desmatamentos dentro e fora do bioma. A ecóloga Solange Ikeda, do Instituto Gaia e professora da Universidade do Estado de Mato Grosso
(Unemat), campus de Cáceres, lembra que o Pantanal é uma planície dentro de uma
bacia hidrográfica, a bacia do Paraguai, e que essa planície depende de muitas
conexões.
“Se as nascentes são
degradadas, se a parte alta dessa bacia é degradada, os sedimentos descem
para os rios, o que leva à perda de uma grande quantidade de águas que
inundaria essa planície alagável”, explica. “Então, um dos fatores desta seca é
a degradação dos territórios, se também levarmos em conta a relação direta com
águas que vêm de outros lugares, como da Amazônia, a partir dos rios voadores,
e as nascentes no Cerrado”, diz.
Ikeda aponta ainda que
tudo isso somado às mudanças climáticas torna a situação ainda mais difícil. “A
gente vive uma seca extrema, e, ao mesmo tempo, ocorrem chuvas torrenciais que
não são suficientes para o bioma. No mês de março, a média do nível da água no
rio Paraguai [na região de Cáceres] nos últimos 60 anos ficava acima de 4
metros. Neste ano, o rio Paraguai oscilou entre 2 e 3 metros. Então, 50% do que
era a altura da régua não subiu. É significativamente preocupante”, enfatiza a
pesquisadora.
“Não existe a
possibilidade de até a temporada de seca essa régua subir. Teria de chover
praticamente todos os dias durante muito tempo”, complementa.
·
Onze pantanais
diferentes, cada um com um comportamento
Além de sentirem o
impacto sobre a pesca, as comunidades tradicionais do Pantanal já vivem perdas
em seus cultivos agrícolas. Na aldeia Brejão, do povo Terena, em Nioaque (MS),
a falta de água matou as plantações dos indígenas, que já contam com ajuda de
cestas básicas do governo.
Alvino de Souza, um
dos líderes Terena, que atua como brigadista, afirma que teme que a seca
culmine em incêndios como os que ocorreram em 2019 e 2020, quando a intensidade
do fogo ameaçou até mesmo a casa dos indígenas. Segundo ele, em alguns dias
neste ano a sensação térmica superou os 40 ºC.
“Temos ido nas
comunidades e escolas para orientar as pessoas e pedir que não coloquem fogo. E
ficamos à disposição para ajudar em queimadas controladas. A gente vai lá e
participa junto para não deixar o fogo se espalhar”, diz Souza. “A gente produz
milho, arroz e feijão, mas o que a gente plantou a gente perdeu com a seca e o
sol quente. Então, por assim dizer, não produzimos nada esse ano”, lamenta. Se
as queimadas se intensificarem, o medo é que se percam até os coqueiros e
algumas mangueiras que restam em pé.
As sucessivas crises
enfrentadas nos últimos anos pelo Pantanal, que não é um ambiente homogêneo –
estudos da Embrapa Pantanal identificaram 11 fisionomias diferentes no bioma –,
geram desafios para sua recuperação. Para o biólogo André Luiz Siqueira, diretor-geral
de programas e projetos da Ecoa, é necessário quebrar a narrativa de que o
Pantanal é resiliente e se recupera fácil, visto que cada ecossistema dentro do
bioma tem diferentes relações com o fogo.
“Diante dos eventos
climáticos extremos, o período de seca tem se alargado e piorado a frequência
dos incêndios. No ano passado, ocorreram queimadas até dezembro, o que
historicamente não era possível [pois seria o período de chuvas e cheia]. Este
ano, tivemos incêndios em pleno janeiro na serra do Amolar [Corumbá, MS],
região habituada a uma permanente inundação. O impacto disso é incalculável”,
afirma Siqueira.
“Se formos falar de
polinizadores, por exemplo, a gente não tem nem como calcular quantos deles
foram extintos ou a quantidade de aves migratórias afetadas. É difícil
mensurar, os danos são enormes para diferentes regiões”, lamenta.
Para ele, o problema
antecede os incêndios e está na falta de prevenção. “Há uma dificuldade enorme
entre os [poderes] executivos, os órgãos oficiais de combate e demais
instituições envolvidas em de fato falar sobre trabalhar a prevenção. O
trabalho de comunicação, sensibilização e de controle precisa ser muito mais
intenso do que realmente é. Precisamos falar sobre os incêndios durante todo o
ano, não apenas em um determinado período ou quando eles acontecem”, defende.
“Os estados precisam
superar as questões burocráticas e orçamentárias em relação à contratação de
brigadistas e fazê-la antes do pico da temporada do fogo. Além disso, tem que
haver uma resposta imediata a todos aqueles que de forma criminal provocam os incêndios.”
Fonte: Por Leandro
Barbosa, em Agência Pública
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