Quando a crise do capitalismo é narrada
como crise “de valores”
As forças políticas de
ultradireita avançam em todo o mundo. Após a pandemia, notou-se uma manifesta
ordem controladora em grande parte do mundo, chegaram duas guerras altamente
visibilizadas e midiatizadas: Ucrânia-Rússia e Palestina-Israel, embora esta
última tenha características de genocídio por parte de Israel.
Independentemente de
onde estejamos geopoliticamente localizados, por meio de dispositivos
eletrônicos, as ameaças, o terror, o discurso de ódio e a aproximação da ideia
de catástrofe global impactam diretamente em nossas vidas e saúde mental.
Nuria Alabao
(Valência, Espanha, 1976), jornalista e pesquisadora-ativista, doutora em
Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Barcelona e pertencente a
um veículo de comunicação que surge dos movimentos sociais de Madrid, chamado
Zona de Estratégia (zonaestraegia.net.), vem pesquisando o tratamento dado
pelas novas extremas-direitas às questões de gênero, em suas intersecções com a
raça e as migrações.
“As direitas, além de
defenderem a ordem de gênero tradicional, servem para sustentar o atual regime
capitalista de desigualdade, que é atravessado por hierarquias de raça, gênero
e classe, enquanto falam de “estilos de vida” ou de questões morais. Portanto,
possuem esta dupla dimensão: por um lado, impactam em um dos pilares da ordem
de gênero, ou seja, da estrutura social, por outro, operam como poderosos
motores políticos e identitários capazes de catalisar a energia militante em
tempos de crise, descontentamento e rejeição da política representativa”.
<><> Eis a
entrevista.
• Como você caracteriza as novas direitas
e o que elas têm em comum?
Em geral, devemos
vê-las como uma constelação de atores que fornecem uma resposta radical e
violenta a um contexto generalizado de crise. Em algumas coisas, assemelham-se
aos fascismos históricos, mas em outras exibem respostas inovadoras, adaptadas
aos novos tempos.
Ainda que seja difícil
definir um único marco onde todas se encaixem, está claro que se reconhecem, se
apoiam e compartilham argumentos e recursos de todos os tipos, então, podem ser
vistas como um ecossistema próprio. Alguns de seus traços gerais que podemos
citar são o etnonacionalismo muito acentuado, o racismo e a xenofobia
explícitos e sua dureza contra a imigração, sobretudo na Europa.
Na América Latina,
expressa-se mais através do racismo interno contra os povos originários. Em
muitas delas, encontramos traços antiliberais, que se evidenciam em traços
autoritários. Hoje, utilizam as ferramentas e as liberdades fornecidas pelos
sistemas democráticos para chegar às instituições e miná-las por dentro.
Além disso, são
verdadeiras máquinas de agitação que, através das guerras culturais, conseguem
criar suas próprias bases políticas. Estas, mesmo quando são minoritárias,
estão altamente mobilizadas e fazem muito barulho. As questões de gênero são
muito úteis para lançar estas campanhas.
Podemos dizer que a
sua política sexual é ultraconservadora, embora tenham que modulá-la muito, de
acordo com as regiões e contextos. Talvez seja o caso de acrescentar outro
traço acerca da idealização do passado e a sua projeção interessada no presente
para legitimar as suas propostas em tempos de futuros colapsados.
• Do que falamos quando se abordam as
guerras de gênero? Temos razão quando dizemos que o avanço dos feminismos fez
as extremas-direitas reagirem?
As guerras de gênero
fazem referência aos conflitos políticos e culturais focados em questões de
gênero e sexualidade, com temas como os direitos das mulheres e as dissidências
sexuais, o aborto, a educação sexual e a violência de gênero, entre outros. Estas
batalhas são funcionais à luta pelo poder político, não são meras cortinas de
fumaça.
São muito úteis para
alcançar ou sustentar governos, gerar coalizões – entre religião e política ou
entre diferentes religiões – e articular movimentos sociais de caráter
reacionário. Pelas formas como são produzidas: catalisando emoções através de
pânicos morais, polarizando o espectro político e por meio de fake news e
teorias da conspiração, geram forte mobilização e adesão aos seus projetos.
As guerras de gênero
funcionam como ferramenta de agitação porque através destas questões traduzem
medos e mal-estares muito diferentes – também econômicos – em termos culturais.
Se você não consegue chegar ao fim do mês, é levado a considerar que as leis de
gênero “discriminam os homens”, em um mecanismo parecido a: “os imigrantes
tiram o seu trabalho”.
• Como as direitas midiáticas atuam em
relação aos direitos das mulheres e da comunidade LGTBIQ? Que exemplo
poderíamos citar? Quais são suas consequências materiais?
Os meios de
comunicação social são uma tribuna imprescindível para a promoção das guerras
de gênero, sobretudo as redes sociais e os aplicativos de mensagens móveis. Os
agentes antidireitos possuem os seus próprios meios de comunicação e suas
alianças com conglomerados midiáticos que, ao defenderem um projeto
ultraconservador, estão defendendo suas posições sociais, seu poder e suas
propriedades. Além disso, os temas que polarizam ou geram indignação são os
melhores para se obter audiência.
O mesmo acontece na
internet, na qual os algoritmos das redes sociais são desenhados justamente
para multiplicar as propostas mais extremas, quanto mais radicais melhor,
porque produzem indignação, provocam mais reações do público, ou seja, mais
interações, que é o que as plataformas monetizam. Contudo, nos lugares onde os
meios de comunicação mais importantes não os acompanham, confiam na comunicação
direta que as redes sociais e os aplicativos de mensagens móveis permitem.
Hoje, não há política
sem meios de comunicação, embora nunca atuem sozinhos, mas se juntam a outros
agentes. Um exemplo pode ser a Polônia, onde em 2019 foi lançada uma campanha
para promover uma iniciativa legislativa popular contra o já escasso direito ao
aborto. Embora a proposta de lei não tenha sido aprovada, uma vez criado o
cenário e a agitação midiática, o Tribunal Constitucional – de maioria
ultraconservadora – declarou inconstitucional a única circunstância em que era
legal: em casos de malformação fetal.
• Por que a direita está avançando
mundialmente?
Hoje, a ascensão das
extremas-direitas está relacionada com o fato de uma parte das elites enxergar
nelas a possibilidade de gerir o descontentamento da população, em um
capitalismo global em crise. Ao mesmo tempo em que estão dispostas a impor um
controle mais coercivo, suas formas e discursos se conectam bem com esses
segmentos da população que têm sido progressivamente relegados ou têm medo de
ruir - no caso das classes médias - e que formam as suas bases.
Por sua parte, as
esquerdas no governo enfrentam o fato de seu campo de atuação na globalização –
a possibilidade de redistribuir – ser cada vez mais reduzido, de modo que
decepcionam a seus eleitores e afastam os que deveriam ser as suas bases. Na
Europa, os pobres não votam. Estes são alguns dos fatores, mas, sem dúvida, há
mais.
• Por que as novas direitas reforçam a
família tradicional?
Com a defesa da
família “tradicional”, os conservadores se opuseram à revolução sexual e de
costumes que envolveram as revoltas feministas e das dissidências sexuais, nas
lutas dos anos 1970. Esta defesa também esteve relacionada à ascensão do
neoliberalismo, como explica Melinda Cooper, em seu livro Los valores de la
familia.
Não se consegue
desmantelar o estado de bem-estar sem uma estrutura que sustente as pessoas ou
se encarregue dessas tarefas de reprodução social que o estado deixa de prover.
O papel das mulheres é fundamental nisto. Ou seja, há uma questão material muito
clara: menos impostos, menos bem-estar, é igual a mais família, forçada.
Além disso, a família
é a forma como a riqueza privada se reproduz ao longo do tempo, por meio da
herança, e desempenha um papel fundamental no capitalismo. A família reproduz
pessoas, mas também as enquadra em determinadas relações de classe.
Hoje a “defesa da
família natural” constitui um elemento aglutinador das extremas-direitas a
nível mundial. Serve tanto para se opor às dissidências sexuais – para eles a
família é sempre heterossexual –, quanto para confrontar a emancipação
feminina, de maneira explícita ou não.
Defender a família
neste marco supõe defender uma ordem de gênero conservadora, com papéis
diferenciados para cada um de seus membros, que reafirma a autoridade e a
divisão sexual do trabalho, e onde se atribui à mulher o dever de reproduzir a
nação: ter filhos brancos para o Estado.
• Por que seus ataques e discursos
violentos funcionam, atualmente? Quais são as suas consequências?
Como disse, os campos
do gênero, da família e das políticas sexuais estão muito carregados de medos e
afetos. Exemplos disto são as campanhas sobre a infância ameaçada pela educação
sexual, a percepção de que as pessoas trans desafiam o biológico – algo que um
setor do feminismo também compartilha – e as próprias contribuições da teoria
feminista, quando afirma que o gênero não é natural, mas uma construção social.
Tudo isso contribui
para desestabilizar ainda mais o solo de uma sociedade que perdeu os valores
transcendentes como eixo que estruturava os comportamentos. Isto provoca
respostas viscerais – do tipo: “o feminismo ou os direitos LGTBI foram longe
demais”, ou “as pessoas trans não existem”, etc. –, que são reações muito
fáceis de instrumentalizar.
Em momentos de
profunda transição histórica acerca do papel social das mulheres, não
deveríamos subestimar a ansiedade gerada por tais processos. Além disso, a
sexualidade tem a capacidade de condensar medos pessoais e sociais de todos os
tipos. Por exemplo, na Europa, as extremas-direitas tentam reforçar o seu
autoritarismo a partir de um reforço securitário e penal, para os quais
constrói a sensação de insegurança com campanhas contra os migrantes como
“agressores sexuais”.
Judith Butler
descreveu a obsessão da direita com o gênero como uma forma de substituir,
condensar e resumir as ansiedades vitais. Esses sentimentos de insegurança –
cada vez mais materiais – são reinterpretados como produzidos por uma crise dos
valores tradicionais e da família por culpa do que chamam de “ideologia de
gênero”. Assim, o reforço da família tradicional heterossexual e a fixação dos
papéis de gênero se tornam importantes suportes identitários, não só sociais e
culturais, mas também políticos.
• A extrema-direita está capitalizando a
rebelião que sempre foi da esquerda?
Em muitos lugares, o
feminismo e as lutas LGTBIQ adquiriram certo carácter de hegemonia ou,
inclusive, institucionalizaram-se. (Em outros, isto não aconteceu exatamente
assim, mas as extremas-direitas também o enunciam, assimilando estes movimentos
aos interesses das “elites globais”. É o que Pablo Stefanoni explica bem em seu
livro.) O perigo deste marco é que se o feminismo é identificado com o poder
institucional, em tempos de crescente descontentamento político, isto pode
aumentar a reação antifeminista. Na Espanha, por exemplo, para muitos jovens,
apoiar o Vox é visto como uma posição “rebelde”.
Por outro lado, em
alguns lugares, também assistimos a uma guinada conservadora de parte da
esquerda que se tornou muito moralista em sua defesa do politicamente correto e
que com a sua reação contribui para promover as guerras culturais das direitas.
Digamos que a partir de uma política emancipadora, temos o desafio de ignorar
algumas guerras culturais e redirecioná-las para os nossos objetivos
prioritários. Devemos afirmar que as nossas lutas, também a feminista, não são
por questões morais, mas, ao contrário, implicam outro projeto de sociedade
oposto ao das extremas-direitas, que busca a redistribuição do poder e da
riqueza, a justiça social para todos e todas.
Fonte: Entrevista com
Nuria Alabao para Irupé Tentorio, em Página/12 - tradução do Cepat, para IHU
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