sexta-feira, 3 de maio de 2024

O que espera a UE, 20 anos após "big bang" para o leste

Bloco europeu ganhou dez novos membros de uma só vez em maio de 2004. Mas possíveis adesões da Ucrânia e de países dos Bálcãs Ocidentais prometem ser mais complicadas. ”Big bang” é o nome usado no jargão da União Europeia (UE) para a ampliação do bloco em dez países ocorrida em 1º de maio de 2004. O número de Estados-membros aumentou de 15 para 25 da noite para o dia. O continente foi reunificado 15 anos após a queda do Muro de Berlim e o fim da dominação soviética na Europa Oriental. Da Estônia, no norte, até a Eslovênia, no sul, as comemorações de 20 anos atrás foram caracterizadas por festivais folclóricos e fogos de artifício, discursos cerimoniais e o rompimento de barreiras. As ilhas mediterrâneas de Malta e Chipre também foram incluídas.

“Esse foi um forte sinal para a Rússia, mas não só isso. Mostrou a capacidade da UE de tomar decisões fortes, de expandir e de cumprir condições. Foi positivo assim porque as condições políticas na UE e nos países que aderiram ao bloco eram mais favoráveis do que são hoje”, diz Kefta Kelmendi, do think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores, sediado em Bruxelas.

·        Sem alternativa

“O alargamento foi bom tanto para a UE quanto para os dez países aderentes”, diz Kelmendi, especialista em UE, em entrevista à DW. O crescimento econômico nos países aderentes se acelerou no mercado único europeu. De acordo com estudos da Fundação Bertelsmann, instituto alemão de pesquisa sociopolítica, a medida fortaleceu a democracia, o Estado de direito e a liberdade de mídia.

Mas Hungria e Polônia são exceções. Os governos desses países se afastaram dos valores europeus. Na Polônia, a tendência só foi revertida após uma mudança de governo no ano passado. De acordo com o Índice de Transformação da Fundação Bertelmann, os Estados Bálticos, a República Tcheca, a Eslovênia e a Eslováquia alcançaram a classificação máxima de “democracia em consolidação”. Já a Polônia e a Hungria são rotuladas como “democracias defeituosas”.

Não havia alternativa para a ampliação da UE em 2004 e para a adesão tardia da Bulgária (2007), Romênia (2007) e Croácia (2013), de acordo com o especialista em UE Hans Kribbe, do Brussels Institute for Geopolitics (BIG). “Era inevitável que isso fosse feito em resposta às convulsões históricas e ao colapso da União Soviética e do Bloco de Leste”, diz Kribbe.

·        Duas novas ondas

“É claro que a Comissão Europeia está desempenhando seu papel de apoiadora entusiasmada da ampliação”, diz Hans Kribbe, do BIG. Internamente, no entanto, a Comissão está ciente de que é preciso tirar lições para o futuro a partir da grande onda de ampliação. Acima de tudo, a UE teve que aprender que deve se tornar mais receptiva e simplificar seus procedimentos e processos. Até o momento, porém, não há nenhum plano para tal reforma da atual União Europeia.

Entretanto, as próximas ampliações são iminentes. Seis países dos Bálcãs Ocidentais, da Bósnia-Herzegovina à Albânia, deverão ser admitidos. Ucrânia, Moldávia e Geórgia são os mais recentes candidatos à adesão, que poderiam comprar uma passagem expressa para a UE, principalmente devido à ameaça representada pela Rússia.

Os países dos Bálcãs Ocidentais receberam promessas de adesão repetidas vezes. Pré-adesão, negociações, ajustes – tudo isso levou décadas após as guerras civis na antiga Iugoslávia. O chanceler federal alemão, Olaf Scholz, gosta de repetir que agora é o momento de finalmente agir.

“Não acho que haverá outro big bang, isso não funcionaria”, diz Tefta Kelmendi, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. Os seis países são muito diferentes em termos de desenvolvimento e capacidade de adesão. “Eles serão admitidos um após o outro”, ela supõe. Primeiro a Albânia, a Macedônia do Norte e Montenegro. A Sérvia e Kosovo teriam que resolver sua disputa sobre a condição de Estado e as minorias.

De qualquer forma, não se poderia esperar até que os conflitos bilaterais entre a Sérvia e Kosovo sejam resolvidos. Isso significaria tornar os outros países reféns desse conflito. “A maneira como a UE tentou usar a perspectiva de ampliação para resolver problemas bilaterais não ajudou a região. Ela está muito focada na estabilização e não tanto no desenvolvimento econômico.”

·        Adesão da Ucrânia é desafio

Em comparação com os países dos Bálcãs, a Ucrânia seria realmente um “big bang” para a União Europeia. Mais de 40 milhões de pessoas, um enorme país agrícola, o mais pobre da Europa, gravemente abalado pela guerra imposta pela Rússia. As negociações de adesão devem começar em breve com uma conferência intergovernamental.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem certeza de que a Ucrânia pertence ao clube europeu. “A Ucrânia fez sua escolha europeia. E eles sabem o que isso significa. Nós fizemos nossa escolha ucraniana. Assim como decidimos, há muitos anos, trazer tantos países para a nossa União”, disse von der Leyen no Parlamento Europeu.

“A admissão da Ucrânia na UE é tão inevitável quanto a admissão dos dez Estados há 20 anos”, diz o especialista em UE Hans Kribbe, observando que o país também está defendendo a Europa contra a Rússia. “A Ucrânia está fazendo todo o trabalho”, mas, no final, a população dos antigos países da UE deve ser convencida a concordar com a ampliação. Isso exigirá unanimidade entre os cerca de 30 países. Será necessário realizar referendos em alguns deles.

No momento, de acordo com Hans Kribbe, os problemas reais dessa ampliação não estão sendo abordados para não assustar os europeus. “Essa é uma estratégia arriscada. Em algum momento, teremos que enfrentar a realidade.” Pois a admissão da Ucrânia exigiria uma reorganização total do orçamento da UE. Os atuais recebedores líquidos de subsídios e fundos, como a Polônia ou a Hungria, provavelmente se tornariam pagadores líquidos que teriam que doar para a Ucrânia e outros países mais pobres.

·        Não parar de sonhar

“É difícil prever quando ocorrerão as próximas adesões, mas devemos permanecer otimistas”, diz Jerzy Buzek. O polonês é membro do Parlamento Europeu desde 2004, quando seu país aderiu à UE. Antes disso, ele foi chefe de governo até 2001 e ajudou a preparar a adesão. “Quando éramos jovens, isso não parecia real, mas (a adesão) se tornou um fato. Isso significa que devemos sonhar e nos apegar aos nossos sonhos”, disse Buzek no Parlamento, se referindo aos próximos candidatos à adesão.

É improvável que a Turquia, que está negociando a adesão a UE desde 2005, venha a aderir. O Estado autocrático está se afastando cada vez mais dos valores europeus. “Esse é um caso perdido quando se trata de adesão”, diz o especialista em UE Hans Krippe, do Brussels Institute for Geopolitics. Ele acrescenta, no entanto, que a UE deve se esforçar para manter relações bilaterais estreitas com o país, uma parceria privilegiada, porque a Turquia ocupa uma posição geopolítica importante no que diz respeito à defesa contra a Rússia e às questões de migração.

¨      Massacre de Odessa, 10 anos depois: como radicais afogaram cidade em sangue para subjugar Ucrânia

Esta quinta-feira (2) marca o 10º aniversário do massacre na Casa dos Sindicatos em Odessa, em 2014, no qual 48 ativistas anti-Maidan foram queimados vivos por bandidos neonazistas. A Sputnik conversou sobre o episódio com Vasily Polischuk que dedicou anos investigando o fato e testemunhou a violência de Kiev para se manter no poder.

O clima quente da primavera de 2014, no Hemisfério Norte, foi acompanhado pelos ventos de fervor revolucionários em todo o sudeste da Ucrânia, com ativistas de Carcóvia, Donbass, Zaporozhie, Dnepropetrovsk, Kherson, Nikolaev e Odessa se levantando em oposição ao golpe Euromaidan em Kiev que tinha ocorrido em fevereiro.

A insurreição patrocinada pelos EUA e pela União Europeia (UE) na capital ucraniana, que culminou com a derrubada do governo democraticamente eleito do presidente Viktor Yanukovich e a sua substituição por forças radicais pró-EUA e ultranacionalistas que procuram prejudicar as relações com a Rússia em favor de laços mais estreitos com o Ocidente, foi recebida com raiva por muitos residentes no sudeste da Ucrânia.

Dando valor aos séculos de laços históricos, culturais, linguísticos, familiares, econômicos e outros comuns com a Rússia, os residentes das regiões do sudeste favoreceram a entrada da Ucrânia na União Eurasiática e expressaram oposição ao rumo pró-UE e pró-OTAN das novas autoridades em Kiev.

As tensões intensificaram-se após a vitória das forças golpistas em fevereiro de 2014 e apesar de a situação ter se agravado em março e abril, foi em maio que ela se deteriorou.

A Sputnik documentou extensivamente os acontecimentos de 2 de maio de 2014 ao longo dos últimos dez anos, conversando com testemunhas oculares e jornalistas, e acompanhando os esforços das autoridades ucranianas para caçar e prender as vítimas, e não os autores da violência extrema que ocorreu naquele dia que matou ao menos 48 ativistas anti-Maidan asfixiados pela fumaça, queimados vivos ou assassinados e fez mais de 200 feridos.

·        Um movimento contra opositores

Dez anos depois, apesar dos protestos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, os perpetradores do Massacre na Casa dos Sindicatos de Odessa continuam livres, com as autoridades políticas, judiciais e de segurança mostrando, através da inação, que não estão interessados em processar o caso.

O Massacre de Odessa foi um crime premeditado e destinado a reprimir os protestos anti-Maidan não apenas na cidade, mas em toda a Ucrânia, diz Vasily Polischuk, uma testemunha ocular dos acontecimentos e ex-legislador do Conselho Municipal de Odessa que dedicou dez anos de sua vida para investigar o incidente.

"Eles procuravam intimidar as pessoas – não apenas para dispersá-las, mas para intimidá-las. E não só os residentes de Odessa, mas de toda a Ucrânia, deixando claro que é isso que acontece" aos opositores do novo regime, disse Polischuk à Sputnik.

Veterano da guerra soviética no Afeganistão e antigo legislador do Partido Comunista da Ucrânia, Polischuk foi forçado a deixar a sua cidade natal, Odessa, na sequência dos acontecimentos de 2 de maio de 2014, enfrentando perseguição e violência física contra o seu filho em meio a sua investigação sobre o incêndio na Casa dos Sindicatos.

Polischuk diz que os acontecimentos daquele dia custaram a vida de 51 pessoas, não de 48 como se pensa, e provavelmente mais.

Os ativistas anti-Maidan de Odessa eram "99,9%" locais, lembrou Polischuk, desmentindo as alegações das autoridades ucranianas e dos meios de comunicação ocidentais de que os protestos na cidade tinham sido organizados por cidadãos russos ou mesmo pelos serviços de inteligência da Rússia.

"Havia tantos tipos diferentes de pessoas entre eles: havia muitas mulheres, tanto religiosas como ateias. Grosso modo, havia dois de cada criatura, e um clima pacífico geralmente prevalecia entre eles. O dia anterior foi 1º de maio [Dia Internacional do Trabalhador], e isso sempre foi feriado para nós. A propósito, naquele dia, em um comício festivo, adotamos uma resolução – não houve uma palavra sobre a secessão da Ucrânia, apenas exigências pacíficas."

Polischuk está convencido de que a violenta operação para dispersar as forças anti-Maidan na Kulikovo Pole foi preparada com bastante antecedência – cerca de um mês e meio antes — e contou com "bandidos" armados e treinados pelas novas autoridades ucranianas ocupando centros recreativos, apartamentos e os antigos sanatórios com "pelos menos 1.500 pessoas nestas 'bases' que passaram pelo Maidan de Kiev".

·        Uma crise premeditada pelas autoridades locais

Estas forças estavam bem organizadas, enfatizou o investigador, salientando que foram criados cinco postos de controle em torno de Odessa comandados por ativistas da Euromaidan, que se encarregaram de inspecionar os veículos que entravam e saíam da cidade, ignorando a polícia e até mesmo ordens de funcionários do governo para que os postos fossem desmantelados, e a partida de futebol Chernomorets-Metalist tornou-se uma oportunidade perfeita.

"No final, sob o pretexto de um jogo de futebol, organizaram uma 'marcha pela unidade da Ucrânia' pela cidade e, sob o seu pretexto, destruíram o chamado acampamento da [praça] Kulikovo Pole. Isso é o primeiro. Em segundo lugar, o seu objetivo era intimidar não só os residentes da Ucrânia, mas todos na Ucrânia. Porque a Kulikovo Pole era como um espinho no sapato deles."

Polischuk especula o envolvimento direto do Serviço de Segurança ucraniano na repressão à agitação anti-Maidan, apontando para o fato de a agência se gabar, após o Massacre de Odessa, de que as operações realizadas em Carcóvia, Nikolaev e Odessa para desmantelar as forças anti-Maidan foram bem-sucedidas e que "os oponentes foram derrotados".

"Outra prova de que estes eventos foram planejados com antecedência é que, em 29 de abril, [o então secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia, Andrei] Paruby veio a Odessa. Como eu disse, havia cinco postos de controle pela cidade. Havia também um posto próximo ao Mercado do Sétimo Quilômetro, que ele visitou, levando coletes à prova de balas para os manifestantes de Maidan", contou.

De acordo com Polischuk, Paruby "realizou uma reunião na Administração Regional de Odessa. Acredito que ele veio rever os preparativos, para verificar se estava tudo pronto para a operação, que já estava marcada para o dia 2 de maio, a pretexto da partida de futebol [...]. Ele estava em Odessa no dia 2 de maio? Eu não posso dizer. Eu não acho que ele estivesse. Mas entre os que cometeram os crimes daquele dia, alguns estiveram em contato com ele", afirmou o investigador.

Polischuk destacou também que no dia 2 de maio, horas antes dos confrontos na Kulikovo Pole, o procurador-geral adjunto ucraniano Nikolai Banchuk chegou a Odessa, reunindo membros das forças de segurança e funcionários do gabinete do procurador regional.

"Ele ordenou que os celulares fossem desligados durante uma reunião dedicada à 'luta contra o separatismo'. Por que razão? Para que a polícia, que deveria garantir a proteção da ordem pública, não interferisse na condução da "missão especial". Ele lhes forneceu um álibi", aponta o investigador.

O antigo legislador, que esteve na Kulikovo Pole e testemunhou em primeira mão os acontecimentos à medida que se desenrolavam, recordou os seus esforços desesperados para fazer com que os ativistas anti-Maidan abandonassem a área depois de perceberem a relação de forças.

"A proporção era de cerca de 1.500-2.000 apoiadores do Maidan contra 150-200 ativistas anti-Maidan. Ficou imediatamente claro para mim como isso terminaria. Eu disse a eles 'saiam daqui, vão embora'. 'Não, não vamos sair, não vamos sair', responderam eles. As forças Euromaidan tinham muitas armas. Naturalmente, o horror se seguiu", lembrou Polischuk.

·        Uma tragédia criminosa de muitas faces

Polischuk viu o ex-legislador do Conselho Regional de Odessa, Vyacheslav Markin se jogar do edifício em chamas diante de seus olhos e contou que "antes disso, ouvi o grito de uma mulher 'socorro, gente, socorro!'. Eles gritaram da rua em resposta 'Cale sua boca!'. De repente a mulher ficou em silêncio e um homem apareceu na janela com a bandeira da Ucrânia gritando 'Glória à Ucrânia!' e da rua eles gritaram 'Glória aos Heróis!'. Não tenho certeza, mas acredito que mataram Irina Yakovenko – a mulher que foi repetidamente mostrada em reportagens televisivas morta em uma posição nada natural sobre a mesa na Casa dos Sindicatos. Ela foi estrangulada com um arame."

Polischuk está "100%" certo sobre os nomes de pelo menos 51 pessoas mortas e cerca de 230 feridas. "Somente uma investigação honesta revelará o número exato", disse ele.

"Estou convencido de que Paruby esteve envolvido nisso, assim como [Valentin] Nalivaichenko, que se tornou chefe do SBU. [Ex-Ministro do Interior, Arsen] Avakov também está envolvido. [Oligarca ucraniano Igor] Kolomoisky forneceu financiamento. E [Vladimir] Nemirovsky, o chefe da administração regional, que executou os desejos de Kolomoisky", disse Polischuk.

Infelizmente, observou o ex-legislador, as autoridades ucranianas não estão interessadas em tal investigação, porque realizá-la apenas "os incriminaria".

Quando questionado sobre como os residentes de Odessa hoje se sentem sobre os acontecimentos na Kulikovo Pole há uma década, Polischuk lamentou que provavelmente seja com sentimentos contraditórios. "A informação e o processamento psicológico estão fazendo o seu trabalho. Chamo a situação na Ucrânia em geral, incluindo em Odessa, de campo de concentração, só que sem arame farpado e crematório", concluiu.

 

Fonte: IstoÉ/Sputnik Brasil

 

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