Yanomami:
por que governo Lula não cumpriu promessa de resolver crise e o que planeja
fazer agora
"Vamos
tomar todas as atitudes para tirar os garimpeiros ilegais e
cuidar dos yanomamis."
A frase
foi dita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 30 de janeiro de 2023.
Na época,
imagens de indígenas yanomami
desnutridos e de garimpeiros invadindo suas
terras na Amazônia causavam comoção nacional e internacional.
O governo
anunciou então a criação de um comitê de crise e declarou estado de emergência em saúde pública.
Praticamente
um ano depois, em janeiro deste ano, Lula voltou a abordar o assunto diante de
evidências de que a crise, afinal, não tinha sido debelada como prometido.
"A
gente vai decidir tratar a questão de Roraima, a questão indígena, dos
yanomami, como uma questão de Estado. A gente vai ter que fazer um esforço
ainda maior [...] porque não é possível que a gente possa perder uma guerra
para garimpo ilegal", disse o presidente em uma reunião ministerial.
Apesar das
repetidas promessas presidenciais, documentos, relatos e imagens vêm apontando
que a situação continua alarmante.
Lideranças indígenas ouvidas pela BBC
News Brasil usam termos como "fracasso" e "frustração" para
definir como percebem o resultado das ações do governo federal.
"Isso,
com certeza, foi um fracasso", diz o vice-presidente da Hutukara
Associação Yanomami, Dario
Kopenawa.
Isso
porque, conforme apontam estas lideranças e também especialistas, o garimpo
ilegal persiste na região e o número de mortes entre os yanomami ainda é
elevado.
Os
entrevistados reconhecem que houve melhorias em algumas áreas, especialmente na
comparação com a
gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Mas
avaliam que houve uma desarticulação de ações do atual governo e que algumas
pastas, como o Ministério da Defesa, não teriam atuado de forma satisfatória em
áreas como o controle do espaço aéreo e no suporte logístico a ações como a
distribuição de cestas básicas aos yanomami.
A
Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) disse em nota à
BBC News Brasil que o governo federal investiu R$ 1 bilhão em ações voltadas ao
povo yanomami em 2023.
A pasta
acrescentou que esse valor deverá subir para R$ 1,2 bilhão em 2024 e que o
governo planeja ações "estruturantes" para a crise.
Procurada
novamente antes da publicação desta reportagem para se manifestar em relação
aos termos usados por lideranças indígenas e especialistas sobre a situação na
terra yanomami, a Secom não se manifestou.
A BBC News
Brasil também questionou os ministérios do Meio Ambiente (MMA), da Defesa e da
Saúde sobre as alegações feitas pelas lideranças e pelos especialistas.
O MMA não
se manifestou sobre as declarações. Os ministérios da Saúde e da Defesa
responderam ao pedido sem tratar diretamente das alegações e citaram dados
enviados anteriormente sobre as ações executadas pela pasta para lidar com a
crise.
·
Dados apontam melhora,
mas crise persiste
Dados
produzidos pelo próprio governo federal dão a dimensão da crise
atual no povo yanomami.
Segundo o
Ministério da Saúde, em 2023, foram registradas 308 mortes entre os yanomami. O
número é 10% menor do que os 343 óbitos registrados em 2022.
Também de
acordo com a Saúde, houve uma queda de 35% no número de crianças
yanomami mortas por desnutrição em
relação a 2022.
Ainda
assim, 29 crianças da etnia morreram por algum tipo de desnutrição em 2023. No
ano retrasado, foram 44.
O geógrafo
Estevão Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental, atua há 10 anos no
território yanomami.
Ele diz
que, apesar da queda no número de mortes, as causas dos mais de 300 óbitos de
2023 ainda são relacionadas à falta
de assistência.
"Além
da quantidade, a gente precisa analisar também quais são as causas dessas
mortes. A gente vê que há uma predominância de causas associadas à
desassistência. São doenças do aparelho respiratório e doenças
infecto-contagiosas que estão levando os yanomami à morte. E são doenças que
poderiam ser evitadas", disse Senra à BBC News Brasil.
Em 2023,
por exemplo, a BBC News Brasil mostrou que, entre 2019 e 2022, as mortes por desnutrição entre os yanomami subiram 331%.
Senra
aponta que apesar dos esforços anunciados pelo governo, ainda há áreas da Terra
Indígena Yanomami que não contam com o atendimento em saúde devido.
"Houve
uma recuperação de alguns postos de saúde, mas ainda existe um déficit de
recursos humanos para ocupar os postos de saúde e dar a atenção à saúde como
poderia ser realizada", diz o especialista.
"Há
regiões que são atendidas de maneira esporádica e sem infraestrutura
adequada."
A
tentativa de melhorar a estrutura de saúde aos yanomami foi um dos pontos mais
alardeados pelo governo federal em 2023.
Mas o
próprio Ministério da Saúde afirmou, em nota à BBC News Brasil, que não
conseguiu instalar todas as bases inicialmente planejadas.
A pasta
disse que reabriu sete polos-base de saúde ao longo do ano passado, mas pontuou
que a permanência dos garimpeiros na região levou ao fechamento de uma unidade e ao funcionamento
parcial de outras três.
"Com
a reabertura dos sete polos-base, que estavam fechados por ações criminosas,
totalizamos 68 estabelecimentos de saúde com atendimento em terra
yanomami", diz um trecho da nota.
"Um
pólo-base, de kayanaú, permanece fechado em decorrência das atividades do
garimpo ilegal no local. Outros três funcionam parcialmente, durante o dia,
pela insegurança causada pelo garimpo aos profissionais de saúde."
·
Controle ainda é
gargalo
Na
repressão ao garimpo
ilegal, os dados também apontam para uma melhora
na terra indígena, mas lideranças e especialistas denunciam que essa atividade
voltou a crescer.
Dados do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que houve uma queda de
95% na área desmatada na
Terra Indígena Yanomami em 2023 na comparação com 2022.
No ano
passado, foi desmatado 1,1 quilômetro quadrado dentro da região. Em 2022, foram
22,8 quilômetros quadrados.
Parte
desse resultado vem sendo atribuído às operações de combate ao garimpo
conduzidas pela Polícia Federal (PF) e pelo Instituto Brasileiro de Meio
Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), vinculado ao MMA.
Segundo a
pasta, foram realizadas mais de 300 operações na região desde fevereiro de
2023, que resultaram na destruição ou apreensão de 34 aeronaves supostamente
usadas por garimpeiros ilegais.
Apesar
disso, lideranças indígenas apontam que houve um retorno gradativo dos
garimpeiros à região à medida que agentes do Ibama e da PF foram deslocados
da terra yanomami para
outras regiões.
Eles
também afirmam que os garimpeiros passaram a adotar novas estratégias, como
usar pistas de pouso clandestinas em território venezuelano.
"O
garimpo continua. A gente vê os aviões passando sobre nossas aldeias, e não tem
controle. O garimpo continua livremente na terra yanomami", diz Dario
Kopenawa.
Especialistas
como Estevão Senra pontuam que, após o início das operações de repressão aos
garimpos ilegais na terra yanomami, a partir de fevereiro de 2023, houve uma
redução significativa da atividade na região.
O problema
é que, no segundo semestre do ano passado, parte dessa mobilização estatal foi
reduzida, abrindo espaço para o retorno dos garimpeiros, segundo Senra.
O
coordenador de operações de fiscalização do Ibama, Hugo Loss, diz à BBC News
Brasil que as limitações de equipamentos e pessoal do órgão levaram à redução
de efetivo na região.
"O
órgão chegou ao limite de sua capacidade operacional quando surgiram outras
demandas emergenciais, como os incêndios florestais, sendo necessário concluir
a reestruturação do órgão", disse Loss.
Servidores
do Ibama iniciaram uma mobilização no início deste ano para cobrar reajustes
salariais e melhorias para as carreiras do órgão.
Dados do
órgão apontam que haveria apenas 782 fiscais para atuar em todo o Brasil.
Parte
deles precisa ser deslocada a cada emergência ambiental ou para ações
específicas.
Apesar
disso, as operações de combate ao garimpo ilegal na terra yanomami ainda não
foram afetadas.
·
Espaço aberto nos céus
Dario
Kopenawa, Hugo Loss e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o
retorno do garimpo ilegal não teria sido possível ou seria menos intenso se
houvesse um maior controle do espaço aéreo brasileiro, que fica a cargo da
Força Aérea Brasileira (FAB), vinculada ao Ministério da Defesa.
Em janeiro
de 2023, Lula assinou um decreto que autorizou a FAB a criar uma Zona de
Identificação de Defesa Aérea (Zida) sobre a terra yanomami.
Pelo
decreto, as aeronaves que não se identificarem ao controle do espaço aéreo
estão sujeitas a medidas como interceptação e tiros de detenção (abate).
"Um
dos principais gargalos é o controle do espaço aéreo e da faixa de
fronteira", diz Loss.
"Hoje,
a gente vê que tem uma operação aérea a partir da Venezuela atuando
ali."
O diretor
de Amazônia e Meio Ambiente da PF, Humberto Freire, também aponta o controle do
espaço aéreo como um gargalo que não foi resolvido.
"Temos
registrado voos clandestinos. A logística do minério ilegal tem chegado à terra
yanomami por via aérea. Estamos registrando isso em uma quantidade
grande", afirma Freire à BBC News Brasil.
"Na
nossa última operação na região, já em 2024, destruímos dois aviões. Se o avião
estava lá dentro da terra indígena, significa que o voo ilegal ocorreu."
Freire diz
ainda que a FAB não estaria compartilhando dados sobre identificação dos voos
clandestinos monitorados pela instituição.
Com estas
informações, a PF poderia, segundo Freire, aprofundar investigações sobre a
estrutura logística dos garimpos clandestinos.
"O
compartilhamento de dados sobre os voos clandestinos, possível identificação de
pilotos ainda é uma demanda que a gente apresentou e não recebeu
informação", afirma Freire.
A FAB
afirmou em nota enviada à reportagem que houve redução "drástica" de
voos ilegais, mas não forneceu a quantidade exata de voos detectados.
"Ocorreu
uma drástica redução dos voos ilegais, tendo havido uma diminuição de cerca de
90% em relação ao número de aeronaves detectadas antes do início da
operação", disse em um trecho da nota.
"Sendo
que, em nenhum momento, houve a desativação da Zida, ou seja, até a presente
data, ocorrem missões de policiamento do espaço aéreo na região."
A FAB
disse ainda que não se negou a fornecer dados sobre voos clandestinos à PF e
reforçou seu "comprometimento com a segurança das operações, a
transparência e a missão de manter a soberania do espaço aéreo e integrar o
território nacional".
·
Problemas de logística
Os
especialistas e lideranças ouvidos pela BBC News Brasil apontam outra falha na
atuação das Forças Armadas.
Segundo
eles, os militares teriam dificultado ações logísticas como a distribuição de
cestas básicas aos yanomami.
Essa
queixa está presente, por exemplo, em um ofício encaminhado da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a diversos ministérios.
"A
desmobilização gradual do Ministério da Defesa, com a retirada das estruturas
de armazenagem e abastecimento de combustível para aeronaves, inviabilizou
todas as atividades previstas para o final deste ano", diz um trecho do
ofício obtido pela BBC News Brasil.
Em outro
trecho, a Funai diz que essa "desmobilização" teve impactos sobre
a segurança alimentar do
povo yanomami.
"A
consequência desse gargalo estrutural tem sido, sobretudo, o acúmulo de cestas
de alimentos destinadas aos yanomami na unidade armazenadora da Conab
[Companhia Nacional de Abastecimento] em Boa Vista, além de outros insumos
necessários ao fortalecimento da segurança alimentar ao povo yanomami",
aponta o documento.
O
Ministério da Defesa não respondeu à BBC News Brasil sobre as alegações feitas
pela Funai e nem justificou o encalhe de cestas básicas.
Em nota, o
órgão disse apenas que entregou 36,6 mil cestas básicas e que as ações da pasta
em torno da terra indígena yanomami mobilizaram "1,4 mil militares da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica" e que "o esforço aéreo somou
cerca de 7,4 mil horas de voo".
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O que o governo
promete agora?
Em janeiro
deste ano, o governo anunciou uma série de medidas como forma de tentar
resolver a crise na terra yanomami.
As medidas
foram anunciadas após uma reunião ministerial com a presença de Lula.
"Vamos
reestruturar a reocupação com a presença definitiva das forças de segurança
para que a gente consiga retirar definitivamente a presença de invasores na
região”, disse o ministro da Casa Civil, Rui Costa, na ocasião.
Entre as
medidas prometidas estão uma "Casa de Governo" em Roraima que reunirá
membros de diversos órgãos e agências federais como o Ibama, MMA, PF e Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
O governo
não informou o prazo para que a casa esteja em funcionamento.
Além
disso, o governo prometeu a instalação de três bases dentro do território
yanomami para serem ocupadas de forma permanente por membros de forças de
segurança e de saúde.
A medida
visa impedir o retorno de garimpeiros e facilitar ações de assistência aos
indígenas.
·
Desarticulação e
frustração
Lideranças
e especialistas, no entanto, atribuem a persistência da crise yanomami no
segundo ano do governo Lula como resultado do que classificam como
"desarticulação" entre os diferentes órgãos destacados até agora para
lidar com a situação.
"Houve
desarticulação do governo. Mesmo com o presidente mandando, nem todos os
ministérios fizeram a sua parte", diz Dario Kopenawa.
Para o
coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
Márcio Terena, o governo cometeu erros na articulação dos esforços para
combater a crise.
Na sua
avaliação, as "peças" necessárias para que as ações ocorram de uma
melhor forma ainda não teriam sido mexidas.
Ele
aponta, por exemplo, que a interação entre as demandas feitas pelo Ministério de Povos Indígenas (MPI) e as forças de segurança não foi suficiente, o que teria
resultado, por exemplo, no retorno do garimpo ilegal.
"Não
foi o suficiente porque as ações do MPI, por exemplo, precisam da logística
fornecida pelas forças de segurança que não estão sob responsabilidade do
MPI", diz Terena.
"O
resultado não foi satisfatório, porque o comando do presidente (Lula) é muito
claro, mas parece que existem algumas resistências internas."
Ele avalia
que o cenário atual seria melhor que o deixado pela gestão de Jair Bolsonaro, mas
admite que o sentimento junto ao movimento indígena é de "frustração"
com o atual governo.
"A
gente vinha de quatro anos muito difíceis para os povos indígenas, e a
expectativa estava alta", diz Terena.
"Quando
a gente observa como essa máquina funciona, a gente percebe que as coisas não
caminham como o esperado."
A Secom
disse em nota que "a crise na Terra Indígena Yanomami seguirá recebendo
atenção contínua da União, cumprindo com um compromisso do presidente Lula de
garantia de dignidade aos povos originários do nosso país".
A pasta
acrescentou que, "na primeira reunião ministerial de 2024, ocorrida no dia
9 de janeiro, o presidente da República determinou a abertura de novo crédito
extraordinário, no valor de R$1,2 bilhão, que será destinado à nova etapa da
operação, focada na criação de soluções estruturantes e permanentes para a
crise".
A BBC News
Brasil também procurou o MPI, a Saúde, a Defesa e o MMA.
Em nota, o
MPI disse que, "em relação ao território yanomami, ao longo de 2023, o
governo federal mobilizou uma operação interministerial para salvar vidas,
garantir o acesso à saúde aos povos yanomami e a manutenção da integridade da
terra indígena".
Em outro
trecho, a pasta comandada por Sônia Guajajara apontou que a implantação da
"Casa de Governo" em Roraima vai reunir ações de diversos órgãos
federais e que essa ação terá caráter permanente.
A Saúde
disse em nota que retomou ações na região que haviam sido descontinuadas em
gestões anteriores, o que gerou "desassistência e abandono que causaram
graves danos à saúde da população indígena nos últimos anos".
A pasta
afirmou ainda que conta com a cooperação de forças de segurança para ampliar
sua atuação na região por conta da falta de segurança gerada pela ação de
garimpeiros ilegais.
"Para
garantir o acesso nos locais onde não há segurança, o Ministério da Saúde segue
trabalhando de forma conjunta com as Forças de Segurança Pública", disse.
O MMA
afirmou em nota que houve uma redução da atividade garimpeira na terra yanomami
nas áreas em que o Ibama atuou.
"De
fevereiro a dezembro de 2023, a área desmatada para a abertura de novos
garimpos na Terra Indígena Yanomami caiu 85% em relação ao mesmo período de
2022, segundo dados do Brasil Mais, da PF", disse a pasta.
"A
redução das áreas de mineração coincide com os locais onde o Ibama atuou para
destruir equipamentos e acampamentos de garimpeiros."
O MMA
também informou que o governo federal prometeu criar mais três bases locais na
região para apoiar ações de combate ao garimpo ilegal e dar assistência aos
indígenas.
A nota do
Ministério da Defesa, como mencionado anteriormente, citou a entrega de 36,6
mil cestas básicas e o emprego de 1,4 mil militares da Marinha, Aeronáutica e
Exército em ações na região.
Fonte: BBC
News Brasil
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