sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Moisés Mendes: Os argentinos diante dos ensaios de um ditador

Os argentinos, viciados em tragédias políticas, construíram o roteiro de mais um dilema com o projeto autoritário de Javier Milei. São evidentes os sinais de que o sujeito se sente acossado e poderá radicalizar com reações previsíveis.

Se não conseguir preservar o núcleo do seu pacote de leis contra o povo, Milei não dirá simplesmente que desiste por ter sido sabotado pelo Congresso, pelos sindicatos e pelo Judiciário.

E se conseguir vencer as resistências e impor seus planos via plebiscito ou decretaço, como pretende, poderá destruir o país e, se tudo der certo para ele e conquistar apoio popular, virar um ditador.

A primeira hipótese, de confirmação da derrota no Congresso, que rejeitou suas leis essa semana na Câmara, combinada com a imposição do poder sindical, de movimentos sociais e piqueteiros, pode gerar o mesmo desfecho: o surgimento de um ditador eleito.

A Argentina dificilmente escapará da arapuca criada pela eleição do fascista. Se pagarem para ver do que Milei é capaz, permitindo a afirmação dos seus planos, os argentinos embarcarão numa viagem de difícil retorno.

Fracassando ou tendo êxito, Milei tentará ser um déspota com voto. A disposição para o enfrentamento ficou clara quando da votação do conjunto da Lei Ônibus na semana passada.

Milei mandou dizer pela internet que os deputados contrários estariam destruindo o país e ao lado das castas e dos corruptos. Venceu, mas apenas parcialmente.

Depois, derrotado na terça-feira, quando do começo da votação de artigos específicos, fez uma lista com nomes e fotos de deputados que considera traidores e delinquentes.

Milei desqualifica o seu centrão, de parlamentares que não eram necessariamente da sua base, mas que prometeram aderir aos seus desatinos. Na hora da verdade, saltaram fora, com o respaldo de 10 governadores de direita.

Agora, passa a afrontar o Congresso, os governadores, o Judiciário e principalmente os sindicatos e os movimentos sociais que já o desafiaram com quatro manifestações de rua desde que assumiu, incluindo uma paralisação.

Traidores e delinquentes dificilmente retornarão à sua base temporária, depois que a Lei Ônibus passar de novo pelas comissões da Câmara, na hipótese cada vez mais improvável de que retorne, toda lanhada, para uma nova tentativa de votação em plenário.

A próxima etapa pode ser tão arriscada quanto o plano fracassado de impor o pacote de leis sem respaldo do Congresso. Milei já mandou avisar de Jerusalém, onde foi rezar e chorar, que está disposto a convocar um plebiscito.

Pretende que a população diga aos parlamentares que deseja as mudanças, principalmente as duas medidas mais atacadas pelos congressistas, as privatizações em massa e a reforma administrativa que pode destruir todas as estruturas de Estado.

Se voltarem às ruas, diante da fragilização do presidente após a derrota de terça-feira-feira, os contingentes de oposição poderão tentar enfraquecê-lo ainda mais ou derrubá-lo, ou produzir um efeito contrário.

Se for cercado ostensivamente pela oposição, se apresentará como vítima de uma sabotagem, no início do governo. Os movimentos correriam o risco da acusação de arrogância. E Milei diria para o resto da vida que a Argentina continua em crise porque ele não conseguiu testar suas crueldades.

A ex-deputada Elisa Carrió, líder da Coalisão Cívica, deu o tom do que já se especula, depois da reação de Milei. Disse, e conseguiu chamada de capa no jornal Clarín, que muitos dos aliados do indivíduo poderão parar na cadeia. Elisa, direitista, é voz forte ligada ao ex-presidente Mauricio Macri, aliado de Milei, mas é também crítica do governo de extrema direita.

Milei não tem limites. Um meme que circula nas redes sociais sugere que os kirchneristas corromperam os radicais (da União Cívica Radical) com sacolas de dinheiro para que votassem contra a Lei Ônibus.

O meme foi compartilhado por Milei, que ataca o kirchnerismo, o que é previsível, mas implode o apoio de parte dos radicais. A UCR emitiu uma nota pedindo que ele se comporte como presidente da República e sugerindo que não conte mais com o partido.

No meio da confusão, considerando-se o que pode ser o ensaio de um governo autoritário, ressurge a pergunta: e como ficam os militares, que pareciam irremediavelmente desmoralizados desde a derrota nas Malvinas e dos julgamentos de 1985, que levaram os generais para a cadeia?

Milei poderá ser um arremedo de ditador sem suporte dos militares? Generais têm condições de tutelá-lo, como tentaram fazer com Bolsonaro no Brasil?

A Argentina viveria de novo sob uma ditadura, mesmo que seja uma ditadura meia-boca? O Judiciário macrista, que persegue Cristina Kirchner, se submeteria resignado ao comando do chorão? Logo teremos respostas.

 

Ø  Milei não aceita derrota e ‘persegue’ opositores. Por Marcia Carmo

 

Em suas redes sociais, o presidente argentino postou os nomes dos que votaram contra e a favor da agora ex-Lei Ônibus, que já vinha sendo chamada de ‘Lei Táxi’ ou ‘Lei Kombi’. Os chamou de ‘delinquentes’ e ‘traidores da pátria’.

O governo de Javier Milei completa dois meses daqui a três dias, no dia dez de fevereiro. E já registra a primeira derrota no Congresso Nacional. Na terça-feira (6), ao perceber que não teria respaldo à sua Lei Ônibus (Ley Omnibus), Milei determinou, de seu quarto de hotel em Jerusalém, em Israel, que o projeto fosse retirado da votação no plenário e voltasse para a etapa inicial, nas comissões da Câmara dos Deputados. Originalmente, o texto tinha 660 artigos, mas o governo recuou e o projeto encolheu até ficar com pouco mais de 300 itens. Ainda assim, a rejeição às propostas de Milei de privatizar cerca de 27 empresas públicas e de requisitar ao parlamento as chamadas ‘faculdades extraordinárias’ (autonomia) para governar determinados tópicos, por um ano, sem aval dos parlamentares, encontrou o voto negativo de vários deputados. Parlamentares experientes, como o deputado Miguel Ángel Pichetto, peronista de raiz, que já foi macrista, e que vinha apoiando as propostas de Milei disse: “Não sabem fazer política. Política é diálogo. Não pode ser imposição”.

Em sua conta no X (ex-Twitter), Milei postou os nomes dos parlamentares que votaram contra e a favor da Lei Ônibus. E chamou de “delinquentes” aqueles deputados que quiseram modificar a proposta do Executivo. “Hoje é um dia muito interessante para falar sobre a Argentina porque ontem (terça-feira), na Câmara dos Deputados, a casta política, que é como chamamos esse conjunto de delinquentes que querem uma Argentina pior, que não estão dispostos a desistir de seus privilégios, começaram a mutilar nossa lei”, disse diante de empresários em Jerusalém. Ele ainda responsabilizou os governadores pela falta de apoio. A atitude de Milei foi criticada pelos deputados que foram acusados por ele de “traidores” e “inimigos da Argentina". O deputado Nicolás Massot, do partido PRO (macrismo), disse que divulgar a lista dos nomes dos que votaram contra a lei “é uma metodologia que nos remete às épocas mais tristes da história contemporânea”.  

Num comunicado, nesta quarta-feira (7), o partido União Cívica Radical (UCR) pediu que Milei pare de estimular a violência contra os que não pensam como ele. “O presidente passou a liderar uma operação para desqualificar deputados e deputadas que não respaldaram alguns dos artigos da Lei Ônibus. E ainda os chamou de delinquentes. Existe uma incitação generalizada à violência contra os que pensam diferente e essa atitude deve acabar”, diz o texto. A UCR foi o partido do ex-presidente Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito após a ditadura na Argentina (1976-1983). Ele pregava o diálogo como artigo número um em uma democracia. O momento político argentino exibe, agora, um presidente eleito com quase 56% dos votos – a maior votação nos 40 anos da democracia argentina –, mas com a imagem positiva em queda, de acordo com as últimas pesquisas de opinião. Ao mesmo tempo, ele é o presidente mais fraco em termos legislativos na história democrática argentina. Na Câmara, dos 257 votos, seu partido, A Liberdade Avança (LLA) tem 38 e no Senado apenas sete das 72 cadeiras. Na semana passada, o governo tinha conseguido uma virtual vitória com 144 a 109 votos na votação geral da Lei Ônibus. Mas na hora dos detalhes do pacote, nesta terça-feira, os votos contrários ganhavam, o que provocou a atitude de Milei. Até aqueles que queriam a eleição de Milei, por aversão ao kirchnerismo, dizem agora que o presidente “despreza” a política e o diálogo – ferramentas necessárias para que a Argentina possa sair da sua crise. 

 

Fonte: Brasil 247

 

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