Quanto o
Brasil esteve perto de um golpe militar em 2022?
A operação
da Polícia Federal (PF) desta quinta-feira (8/2) contra pessoas acusadas de uma
"tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito" jogou luz
sobre membros da cúpula das Forças Armadas e sobre o risco de um golpe militar
no Brasil na virada de 2022 para 2023.
Entre os
investigados na operação estão o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira e o
almirante da reserva Almir Garnier Santos -— eles foram, respectivamente,
comandante do Exército e comandante-geral da Marinha no governo Bolsonaro.
Ambos
foram alvos de mandados de busca e apreensão nesta quinta.
A PF diz
que as pessoas investigadas na operação, batizada de Tempus Veritatis e
autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes,
buscavam "a manutenção do então presidente da República (Bolsonaro) no
poder".
Outros
aliados e ex-ministros de Bolsonaro também foram alvo da operação, entre os
quais o general da reserva Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI), e o general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro da
Defesa e da Casa Civil.
Outro
general, que em 2022 era o Comandante de Operações Terrestres do Exército,
Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, é citado como tendo concordado com
uma suposta sublevação. Quatro militares ainda da ativa, de diversas patentes,
também estão entre os implicados nas investigações.
Em
entrevista à CNN após a operação, Jair Bolsonaro disse que não articulou um
golpe de Estado. Antes, afirmou à Folha de S. Paulo que está sendo alvo de uma
perseguição implacável (veja aqui o que disseram outros acusados).
"Ninguém
entende essa 'tentativa de golpe'. Não se movimentou um soldado em Brasília
para dar golpe em ninguém", disse Bolsonaro.
Aliados do
ex-presidente também criticaram a operação e a associaram ao retorno de
Bolsonaro a eventos públicos (leia mais abaixo).
Um dos
documentos que embasaram a operação, segundo a PF, foi uma minuta que decretava
a prisão de autoridades e determinava a convocação de novas eleições. O texto
teria sido apresentado a Bolsonaro em novembro de 2022 por seu então assessor
Filipe Martins, que foi preso nesta quinta.
Segundo o
tenente coronel Mauro Cid, que foi ajudante de ordens de Bolsonaro e se tornou
depois colaborador das investigações, o texto que propunha a ruptura da ordem
democrática chegou a ser debatido pela alta cúpula militar.
Se todos
as informações forem comprovadas, isso significa que o Brasil esteve próximo de
ser palco de um golpe de Estado quase 60 anos depois da última ruptura, em
1964?
Para dois
historiadores ouvidos pela BBC News Brasil, sim, houve risco, ainda que o
suposto movimento investigado aparenta não ter tido força para convencer um
órgão central na hierarquia militar, o Alto Comando do Exército.
A
instância é composta por 16 generais de quatro estrelas da força terrestre,
tradicionalmente a mais influente das Forças Armadas.
• 'Muito perto de um golpe'
Para João
Roberto Martins, professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São
Carlos (Ufscar) e pesquisador de temas militares, os fatos divulgados até
agora, se comprovados, indicam que "estivemos muito perto de um
golpe".
Para ele,
já havia indícios de participação de autoridades em discussões sobre um golpe
de Estado mesmo antes desta última operação.
"O
que talvez não se acreditasse é que iria ser feita uma investigação tão
profunda e detalhada como esta", afirma.
Martins
diz que a suposta presença de comandantes das Forças Armadas em uma reunião que
teria tratado de um possível golpe sugere que o tema chegou à alta cúpula
militar. "É impossível chegar mais alto do que isso."
Ele diz
acreditar que só não houve um golpe porque o Alto Comando do Exército teria
rejeitado a iniciativa.
Martins
avalia que um golpe de Estado teria de ser necessariamente aprovado por essa
instância formada por 16 generais do topo de carreira -— afinal, a entidade
controla a mais poderosa das três forças brasileiras.
Ele diz
acreditar que o comandante do Exército -— que é um dos membros do Alto Comando
-— levou o tema para o órgão, mas que não houve apoio majoritário à causa.
Martins
embasa essa opinião no fato de que, após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva
na eleição, apoiadores de Bolsonaro que defendiam uma intervenção militar
passaram a divulgar nomes de generais que seriam "traidores" do
movimento.
Ainda
assim, o pesquisador rejeita a noção de que o "Exército agiu em defesa da
democracia".
"Não,
o Exército impediu uma aventura que era defendida por um grupo muito
comprometido com Bolsonaro e que recebeu um apoio assustador no seio militar,
mas isso não foi suficiente para convencer a alta cúpula do Exército."
"Um
grupo de generais percebeu que, numa aventura dessas, você sabe como entra, mas
não sabe como sai", prossegue, afirmando que as condições para um golpe em
2022 eram muito mais adversas do que em 1964, última ocasião em que as Forças
Armadas tomaram o poder no Brasil.
Em 1964,
diz Martins, o golpe era apoiado por uma grande potência, os Estados Unidos. Já
em 2022, a vitória de Lula foi saudada por muitos líderes estrangeiros, e os
EUA sinalizaram que não aceitariam uma ruptura democrática no Brasil, diz o
professor.
• 'Quadrilha contra Estado de Direito'
"Acho
que o risco (de um golpe militar) foi muito grande", diz Francisco
Teixeira da Silva, professor aposentado de História Moderna e Contemporânea da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para
Silva, a operação desta quinta-feira expôs "um caso claro de formação de
quadrilha contra o Estado de Direito Democrático no Brasil".
Segundo o
professor, de acordo com o relato da PF, se tramou em 2022 um dos "famosos
auto-golpes latino-americanos", nos quais governantes agem para se manter
no poder ao arrepio da lei.
Silva
também diz acreditar que a iniciativa fracassou por ter sido rejeitada pela
maioria dos membros do Alto Comando do Exército.
Foi então,
que, segundo o professor, defensores de uma intervenção militar teriam mudado
de estratégia: em vez de promover um golpe "pelo alto", passaram a
apostar numa "via por baixo", na qual uma mobilização popular
impediria Lula de governar e forçaria os militares a entrar em ação.
Ele diz
acreditar que os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023
foram uma tentativa de pôr esse plano B em prática.
Silva
critica os que, ao argumentar que "as instituições estavam
funcionando", minimizavam os riscos de uma ruptura no Brasil.
"Numa
democracia que funciona, quem perde eleições vai pra casa, e não trama um golpe
de Estado", diz.
"Nossa
democracia não está assegurada enquanto não houver exemplo muito claro de
punição de qualquer tentativa golpista", completa.
• 'Último suspiro de grupos delirantes'
Não é
unânime, no entanto, a opinião de que a democracia brasileira correu sérios
riscos na virada de 2022 para 2023.
Em dois
artigos publicados em janeiro no jornal O Estado de São Paulo -—antes,
portanto, da operação desta quinta -—, Carlos Pereira, professor de Ciência
Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que não houve chance real de
ruptura ou mesmo fragilização da democracia no governo Bolsonaro.
Ele não
atribui essa resiliência à suposta não adesão do Alto Comando do Exército a uma
eventual proposta golpista ou a ação de Alexandre Moraes no Supremo.
Segundo
ele, a estrutura do sistema político brasileiro, composta por órgãos
independentes e que impõem limites uns aos outros, é que desencoraja
"saídas extremas e radicais", conforme escreveu em 8 de janeiro.
Para
Pereira, "Bolsonaro ficou sem alternativas e terminou sendo domesticado,
forçado a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão em busca de um escudo
protetor, ainda que minoritário, no Legislativo".
Em outro
artigo, de 17 de janeiro, Pereira associou os ataques em Brasília ao
"ultimo suspiro de grupos delirantes e saudosistas da ditadura" e
rejeitou a ideia de que um eventual golpe não aconteceu pela atuação de
"heróis" individualmente.
"Ou
seja, significaram o ocaso ou o esgotamento das esperanças de um projeto
autoritário que não tinha as mínimas condições de vingar em uma democracia
sofisticada e consolidada como a brasileira."
• Próximos passos
Se
militares forem condenados por envolvimento em uma tentativa de golpe, o que
ocorrerá com eles?
Militares
são julgados pela Justiça Militar quando as acusações tratam de crimes
militares.
Mas isso
não impede que também sejam julgados pela Justiça comum quando são acusados de
crimes não militares. É o caso das investigações em curso, que apuram, entre
outros pontos, a violação do artigo 359 do Código Penal ("tentar depor,
por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente
constituído").
O crime
tem pena de reclusão de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência.
Para
Carlos Fico, professor titular de História da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), se a Justiça comum condenar os militares a mais de dois anos de
reclusão, a Justiça Militar terá o dever de cassar suas patentes, conforme
previsto na Constituição.
"O
STM (Superior Tribunal Militar) teria de declarar a indignidade ou a
incompatibilidade desses oficiais com o oficialato, sendo obrigatória a
cassação do posto e da patente", o professor afirmou em sua conta no X
(antigo Twitter).
Segundo
Fico, no entanto, esse processo demoraria, pois só seria consumado com uma
sentença definitiva da Justiça Militar.
"Seria
mais ou menos inédito (militares golpistas sendo punidos), mas é previsível em
função da quantidade de crimes cometidos, dos inúmeros vestígios que deixaram e
do empoderamento do STF desde 1988", diz o professor.
"Duro
é termos de 'celebrar' que o Alto Comando do Exército não tenha optado pelo
golpe, o que significa que havia a alternativa", afirma Fico.
• 'Perseguição' e pedido de ação dos
militares
A operação
desta quinta-feira foi criticada por aliados de Bolsonaro. Um dos protestos
mais veementes veio do senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), general da
reserva que foi vice-presidente no governo Bolsonaro.
Mourão
disse que estava havendo uma "supressão da oposição política no país"
e que "nenhuma suposta ameaça ao Estado Democrático de Direito justifica
tal devassa persecutória".
O senador
disse ainda que havia uma "condução arbitrária" de processos que
investigam generais da ativa e cobrou que as Forças Armadas não se omitam.
"Não
podemos nos omitir, nem as Forças Armadas, nem a Justiça Militar, sobre esse
fenômeno de desmando desenfreado que persegue adversários e que pode acarretar
instabilidade no país", disse Mourão.
Os
deputados federais Helio Lopes (PSL-RJ) e Carla Zambelli (PSL-SP) citaram o
fato de que a operação ocorreu um dia após Bolsonaro participar de evento com
centenas de apoiadores em São Sebastião (SP).
"Ações
contra a direita sempre depois de um grande evento… coincidência ou
perseguição?", escreveu Lopes no X.
"24h
após uma linda demonstração de apoio popular, Bolsonaro e aliados são alvo de
mandados", disse Zambelli, na mesma plataforma.
Para o
líder do PL no Senado, Carlos Portinho (PL-RJ), o "regime" instalado
no país "acua, persegue, silencia e aplaca a oposição no Brasil querendo
exterminar politicamente os seus opositores com a mão de ferro do Judiciário e
a Polícia do Estado".
Fonte: BBC
News Brasil
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