O caminho
que levará Bolsonaro à prisão
Em 3 de
maio de 2023 o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair
Bolsonaro, foi preso preventivamente e conduzido para prestar depoimento à
Polícia Federal. A decisão que autorizou a prisão foi assinada pelo ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, por se tratar de um fato
relacionado ao inquérito das milícias digitais, sob relatoria do magistrado.
A acusação
contra Cid dizia respeito à inclusão de dados falsos sobre vacinação contra a
covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde. O objetivo era fraudar cartões de
vacina dele, de sua esposa, das três filhas do casal e de Bolsonaro e sua
filha. Na mesma operação, o ex-presidente e a ex-primeira-dama, Michelle,
também foram alvos de buscas e apreensões, com os agentes levando o celular de
Bolsonaro.
À época,
Mauro Cid deixou em alerta o entorno bolsonarista, inclusive do próprio
ex-chefe. Não à toa. Tratava-se de uma pessoa muito próxima a Bolsonaro, cujas
tarefas iam muito além daquelas reservadas a um ajudante de ordens. Em março de
2021, reportagem de O Globo o chamava de “conselheiro-geral”
do ex-presidente, apontando que a proximidade entre ambos despertava ciúmes de
outros colaboradores.
Outra
matéria, do Estadão,
de setembro de 2020, pontuava que Cid “sempre teve livre acesso ao gabinete
presidencial, ao Palácio da Alvorada e até mesmo ao quarto ocupado pelo chefe
do Executivo nos hospitais, após cirurgias às quais ele se submeteu no ano
passado”.
Filho do
general Lorena Cid, que estudou com Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas
Negras, ele também gozava de prestígio dentro do Exército. Tanto que foi o pivô
da saída do comandante da força, Júlio César Arruda, no início do governo Lula.
O general, que havia sido promovido ao cargo pelo critério de antiguidade,
insistiu em manter a efetivação de Cid como chefe do 1º Batalhão de Ações e
Comandos, o que gerou sua demissão do cargo.
Outra
prova do prestígio de Mauro Cid na caserna se deu em suas idas à CPI na Câmara
Legislativa do Distrito Federal e na CPMI que investigou os atos golpistas do 8
de janeiro. Em ambas as ocasiões ele apareceu fardado, relembrando sua ligação
com o Exército, obviamente, com a autorização da instituição.
A mesma
sorte não teve o coronel do Exército Jean Lawand Junior, que teve que ir à CPMI
justamente por mensagens trocadas com Cid.. Mesmo sendo militar da ativa, foi
de terno ao depoimento, orientado pelo próprio Exército, para não
relacionar as mensagens golpistas captadas no celular do ex-ajudante de ordens
de Bolsonaro aos quartéis.
·
Homem-bomba
Bem
relacionado, Mauro Cid recebeu a atenção de seus pares. Logo na primeira semana
após ter sido preso, trocou de advogado, substituindo Rodrigo Roca por Bernardo
Fenelon, tido como especialista em crimes do colarinho branco e colaboração
premiada. Mas, em agosto do mesmo ano, Fenelon deixou a defesa apos documentos
levantados pela CPMI terem mostrado que o ex-ajudante de ordens participou da
negociação de um Rolex presenteado ao governo brasileiro pela Arábia Saudita,
trazendo nova complicação jurídica que também atingiu Bolsonaro. O advogado
Cezar Bittencourt assumiu o caso, dizendo-se contra delações premiadas, mas
mandando recados pela imprensa de que o ex-presidente poderia ser implicado em
depoimentos de seu ex-assessor.
Àquela
altura, em junho de 2023 a PF já havia encontrado no celular de Mauro Cid
mensagens e documentos relativos ao planejamento
de um golpe de Estado. Mas ainda faltava um conjunto de provas mais robusto
para atestar não só a intenção de promover uma ruptura institucional, já que os
dados e as relações do ex-ajudante de ordens evidenciavam isso, mas sim que o
plano já estava em execução.
Acuado com
diversas acusações e indícios de mais de um crime contra si, em setembro do ano
passado Mauro Cid teve homologado o seu acordo de colaboração pelo Supremo.
Como mostra um texto
anterior sobre o tema, a Polícia Federal não seguiu os ditames consagrados
pela Lava Jato e não se contentou com aquilo que dizia o colaborador de
Bolsonaro. Precisou cruzar informações, a partir de seu depoimento mas também
de todos os dados apreendidos em celulares e computadores dele e de outros
investigados para aprofundar linhas de apuração. Assim, a PF chegou a
seis núcleos operacionais de preparação do golpe, descritos na
decisão de Alexandre de Moraes que autorizou os mandados da Operação Tempus
Veritatis.
·
O andamento do golpe
Dos seis
núcleos relatados pela Polícia Federal, Mauro Cid fazia parte de quatro,
segundo as investigações. E não era mero participante: atuava como coordenador
e dava ordens em diversas ocasiões.
A prisão
do major Rafael Martins de Oliveira, por exemplo, integrante de um dos seis
núcleos – o de “Apoio às Ações Golpistas”, conforme denominação do relatório –
é fundamentada nos atos que ele promove por meio da interlocução com o então
ajudante de ordens de Bolsonaro “na coordenação de diversas estratégias
adotadas pelos investigados para execução do Golpe de Estado”.
Em
mensagens registradas no celular de Cid em 11 de novembro, quando os
acampamentos começavam a se intensificar, Oliveira, conhecido como “Joe”,
solicita “orientações” ao auxiliar do presidente quanto aos locais para
realização das manifestações, questionando se as Forças Armadas garantiriam a
permanência das pessoas no local. Ele recebe resposta positiva e, no dia 12, o
ajudante de ordens de Bolsonaro pede a ele uma estimativa de custos com
hospedagem, material e alimentação, calculados por Oliveira como aproximados R$
100 mil.
O trecho é
relevante não só para a responsabilização do major, como também por apontar o
contato com possíveis financiadores, uma linha de apuração fundamental para
saber quem tramou contra o arranjo democrático brasileiro.
Junto a
outros elementos de informação, de acordo com a PF, a investigação atestou que
Oliveira “atuou diretamente, direcionando os manifestantes para os alvos de
interesse dos investigados, como STF e Congresso Nacional, além de realizar a
coordenação financeira e operacional para dar suporte aos atos
antidemocráticos”.
Outro
militar que teve cumprido mandado de prisão nesta quinta-feira (8) também tem
sua participação na organização do golpe apurada a partir de sua relação com
Mauro Cid. Trata-se do coronel do Exército Marcelo Câmara, acusado de ser
“responsável por um núcleo de inteligência não oficial do Presidente da
República, atuando na coleta de informações sensíveis e estratégicas para a
tomada de decisão de Jair Bolsonaro”, conforme o relatório,
Uma troca
de mensagens entre os dois, também captada no aparelho móvel do ex-ajudante de
ordens, aponta que Câmara estaria a par das movimentações e deslocamentos do
ministro Alexandre de Moraes. Para a PF, a conversa “demonstra que o grupo
criminoso tinha intenções reais de consumar a subversão do regime democrático,
procedendo a eventual captura e detenção do Chefe do Poder Judiciário
Eleitoral”.
Também o
coronel do Exército Bernardo Romão Correa, apontado como integrante do que é
descrito como Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas, é investigado a
partir de diálogos travados com o ex-auxiliar de Bolsonaro. Ele teria tido
participação ativa em um encontro “com a presença dos oficiais, com formação em
forças especiais, assistentes dos Generais supostamente aliados na execução do
golpe”. As conversas encontradas no celular de Cid mostram que o coronel
“intermediou o convite para reunião e selecionou apenas os militares formados
no curso de Forças Especiais (os chamados “Kids Pretos”), o que demonstra
planejamento minucioso para utilizar, contra o próprio Estado brasileiro, as
técnicas militares para consumação do Golpe de Estado”, segundo a PF.
Se a
prisão dos outros três tem como base material apreendido com Mauro Cid, a do
quarto, o ex-assessor especial para Assuntos Internacionais Filipe Martins, é a
única em que fica explícita, segundo a Polícia Federal, a relação direta com a
delação premiada do ex-ajudante de ordens, como descreve o relatório: “Os
elementos fornecidos pelo acordo de colaboração demonstram que FILIPE MARTINS
levou ao então Presidente JAIR BOLSONARO, no mês de novembro de 2022, um
documento que detalhava diversos ‘considerandos’ (fundamentos dos atos a serem
implementados) quanto a supostas interferências do Poder Judiciário no Poder
Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades’. Trata-se da
minuta do golpe, apresentada por Martins junto com o advogado Amauri Fers Saad
e que depois teria sido ajustada por Bolsonaro.
O vídeo da
reunião ministerial de 5 de julho de 2022 que, como ressalta o relatório,
“revela o arranjo de dinâmica golpista, no âmbito da alta cúpula do governo”,
também foi encontrado em um computador de Mauro Cid.
É provável
que, a partir dos resultados da coleta de dados derivados dos mandados de busca
e apreensão executados na quinta-feira, a Polícia Federal descubra novos
envolvidos ou mais elementos probatórios que deem mais robustez ao que já se
revela como um golpe em andamento. Mas Mauro Cid deve prestar um novo
depoimento às autoridades policiais em virtude dos novos dados. Caso minta ou
omita fatos, pode até mesmo perder o benefício de sua colaboração.
O
ex-auxiliar segue como um homem-chave para desbaratar uma organização criminosa
que buscou atentar contra as instituições e o Estado Democrático de Direito.
Pelo nível de relações que mantinha, pode citar nomes não só do entorno
político e militar do ex-presidente, mas também apontar quem seriam os grandes
financiadores, por exemplo, dos acampamentos golpistas. Mas, à medida que as
apurações avançam, aquilo que sabe pode perder valor de face.
PS: o
vídeo da reunião de Bolsonaro com seus ministros tem falas abertamente
golpistas e autodenúncias de ilegalidades pretendidas ou cometidas. Os outros
integrantes daquele encontro, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, serão
questionados pela mídia comercial a respeito?
Fonte: Por
Glauco Faria, em Outras Palavras
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