sábado, 10 de fevereiro de 2024

Jeferson Miola: O primeiro degrau da responsabilização dos militares

O 8 de fevereiro de 2024 é um dia muito significativo; representa um marco histórico para se avançar na apuração do envolvimento central e estratégico das cúpulas militares com os atentados contra a democracia.

Não é nada trivial 16 oficiais das Forças Armadas, dentre eles quatro generais do Exército e um almirante da Marinha, serem processados criminalmente por integrarem a organização criminosa que atacou as instituições da República, o sistema eleitoral e promoveu tentativas de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado de Direito.

A operação da PF significa um avanço relevante, mas ainda é preciso subir mais degraus da escada para alcançar, também, as cúpulas militares e a institucionalidade militar comprovadamente implicadas com os movimentos golpistas.

A interpretação dicotômica que divide os militares entre os linha-dura/liberais e os conspiradores/legalistas desconsidera as hegemonias e poderes internos na corporação, e leva à conclusão equivocada de que “militares legalistas” salvaram a democracia do golpe “preparado por Bolsonaro” – e não por eles próprios –, e que seria executado com apoio de alguns “militares malvados”.

Sabe-se hoje que as cúpulas só não avançaram o plano golpista porque o governo dos EUA mandou abortarem o golpe.

Autoridades de diversos órgãos da Administração Biden –Pentágono, CIA, Departamentos de Estado e da Defesa– aterrissaram em Brasília em 2022 na “missão meia-volta volver”.

Isso rompeu o consenso – ou a unanimidade, ou a hegemonia – pró-golpe então existente no âmbito do Alto Comando, o que causou divisão e desencorajou parcelas do generalato para a continuidade da empreitada golpista.

Não houve, portanto, uma vitória de militares legalistas sobre conspiradores, mas sim o recuo tático de setores castrenses mais atentos às ordens estadunidenses. Tais setores não agiram por apego a princípios legais e constitucionais, mas por conveniência tática e conjuntural.

O general Tomás Paiva como atual comandante do Exército é uma evidência cabal desse mimetismo político dos militares, experts em camuflagem.

Depois de estar no comando da AMAN no dia que Bolsonaro fez comício para cadetes [29/11/2014] como candidato antecipado à presidente para a eleição de 2018, o general Tomás atuou como chefe de gabinete do general-conspirador Villas Bôas na época do famoso tweet pelo qual o Alto Comando obrigou o STF a prender ilegalmente Lula, e depois ele integrou o Alto Comando no período de ameaças graves às instituições, como no comunicado à Nação de 11/11/2022.

As cúpulas militares estão na gênese do processo que levou o Brasil ao precipício – desde a conspiração para derrubar a presidente Dilma, passando pela concepção da candidatura Bolsonaro, a prisão ilegal do presidente Lula e a dinâmica golpista que culminou no 8 de janeiro.

Os militares estiveram na linha de frente de todos ataques à democracia.

O envolvimento orgânico-institucional com os atentados de 8 de janeiro ficou comprovado na trincheira levantada pelo Alto Comando do Exército com soldados e blindados para resistir à ordem do STF de prisão de kids pretos [Forças Especiais], sub-oficiais, oficiais, integrantes da família militar e demais criminosos que participaram das depredações das sedes dos três Poderes e se amotinaram no QG do Exército.

A condescendência criminosa [artigo 320 do Código Penal Civil e 322 do CP Militar] não pode continuar sendo uma política institucional, transmitida de um comando a outro das Forças.

A impunidade do general Eduardo Pazuello, que na ativa participou de motociata seguida de comício do Bolsonaro, é um péssimo exemplo disso.

Do mesmo modo que outros tantos desvios, como do general André Luiz Ribeiro Allão, que no comando da 10ª Região Militar do Exército garantiu aos acampados no quartel total impunidade, mesmo “que existam ordens de outros poderes no caminho contrário”.

São exemplos que naturalizam a prática de ilícitos. A impunidade estimula militares a cometerem crimes, como o general Hamilton Mourão, que rasgou o juramento à Constituição que prestou quando foi diplomado Senador, e incitou a insubordinação dos comandos militares contra a atuação da justiça civil.

Os acampamentos nos quartéis foram estimulados, autorizados e protegidos pelo Comando do Exército.

A investigação mostrou que oficiais e comandantes participaram de reuniões conspirativas e conversavam por WhatsApp sobre o plano do golpe e os decretos e atos inconstitucionais.

Mas, ao invés desses oficiais e comandantes denunciarem o crime em flagrante que presenciavam, eles foram condescendentes, porque cúmplices do plano em curso.

Um exemplo de postura profissional e legalista deu o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, que denunciou a preparação do golpe pelo presidente Donald Trump.

Ele ameaçou renunciar para não ter de cumprir ordens “ilegais, perigosas ou imprudentes” de Trump.

O indiciamento dos militares é um avanço importante, mas a investigação ainda precisa abarcar outros implicados que, ainda que possam ter tido uma atuação discreta, foram igualmente relevantes na engrenagem golpista.

Não faltam indícios, provas e nexos para se chegar a esse resultado – estão disponíveis em fartura na forma de áudios, vídeos, textos, prints … A impunidade, mesmo que parcial, é um convite à repetição.

O governo tem diante de si uma oportunidade valiosa para realizar a reforma militar urgente e necessária, que profissionalize as Forças Armadas para atuarem na Defesa Nacional, e que afaste definitivamente o delírio dos militares como Poder Moderador.

 

Ø  Kennedy Alencar: Os ‘legalistas’ da cúpula militar ficaram na moita, dando tempo para que Bolsonaro e seus fascistas consumassem o golpe

 

Volta a circular na praça a tese de que o golpe de Bolsonaro não se consumou devido à recusa de parte da cúpula das Forças Armadas. É mentira.

Convidados e pressionados a dar um golpe, os “legalistas” do Alto Comando do Exército não deram voz de prisão aos golpistas nem denunciaram a tramoia. Ficaram na moita. Aguardando exatamente o quê?

Na verdade, traíram a Constituição naquele momento, dando tempo para que Bolsonaro e seus fascistas civis e militares tentassem consumar o golpe.

Ao mesmo tempo, protegeram e toleraram acampamentos golpistas até 08/01/22, apesar do resultado cristalino do segundo turno em 30/10/22.

Que o Brasil não se engane. O golpismo continua vivo nas Forças Armadas.

Lula erra ao bancar a estratégia acomodatícia de Múcio. No momento, tentam vender como um “avanço” a ordem do comandante do Exército, Tomás Paiva, para que o golpe de 64 não seja celebrado nos quartéis. Ora, celebrar um golpe contra a democracia seria crime.

Nos 60 anos do golpe de 64, o governo Lula deveria cobrar uma autocrítica e um pedido de desculpas dos militares. A operação da PF de hoje aproxima Bolsonaro e seus golpistas da cadeia. As provas estão sendo fortalecidas para mandar todos eles para o xadrez. Isso é ótimo.

A democracia não pode tolerar quem ameaça destruí-la. O Genocida tem de ir para a cadeia para que nunca mais um presidente, usando todos os instrumentos do seu cargo, trame contra a democracia. Por último, nada de passada de pano para os militares.

O golpe não aconteceu porque não havia condições objetivas.

O Brasil de 2022 não aceitaria. Tampouco havia apoio internacional, como em 64.

Logo, a vitória da democracia não foi uma concessão de supostos legalistas, pois estes se comportaram com covardia e omissão.

 

Ø  A PRESERVAÇÃO DAS CORPORAÇÕES. Por Manuel Domingos Neto

 

As operações de busca e apreensão na residência de generais próximos de Bolsonaro e a prisão de dois oficiais superiores deixou confiantes os que prezam a democracia.

Quem grita, “sem anistia”, sentiu-se contemplado. Muitos salientaram tratar-se de momento histórico sem precedentes e aplaudem a coragem do ministro Alexandre de Moraes.

A maioria aceita a ideia de que a democracia venceu. Nestes tempos obscuros, é bom demais ter algo de relevante a comemorar.

Mas, caberia pensar… ao acatar decisões judiciais desta monta, as corporações, profundamente envolvidas em manobras antidemocráticas nos últimos anos, não passam a falsa noção de que, repentinamente, em lance histórico inédito, assumem seriamente a institucionalidade do jogo democrático?

Uma ação da Justiça, por contundente que seja, teria o condão de alterar a velha tendência castrense de interferir no jogo político?

Mais sensato seria imaginar que a postura dos comandantes revela a satisfação diante da prevalência dos desígnios das fileiras.

O atual governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade.

O militar continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume com todas as letras sua condição de “representante” das Forças, abdicando da condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.

Como se sabe, a condução da política de Defesa guarda implicações diretas com os mais variados domínios da atuação do Estado, em particular com as relações externas, a Segurança Pública, o desenvolvimento técnico-científico e industrial.

A política de Defesa é uma peça-chave da integração sul-americana. Ao ditar a Política de Defesa o militar se imiscui como quer nas entranhas do Estado e da sociedade. Em outras palavras, persiste exercendo a tutela configurada ao longo do regime republicano.

O atual governo assegura a continuidade de práticas corporativas ancestrais que garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro.

O Brasil continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa.

As Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono.

Vitoriosos no embate político principal, os comandos militares acatam o sacrifício de alguns dos seus em troca da preservação da capacidade de ingerir nos negócios públicos e na vida social.

Hoje, em essência, ao tempo em que a institucionalidade democrática mostra vigor, foi dado um passo importante para conter a corrosão da imagem das Forças Armadas.

Talvez seja esse o significado mais relevante da operação comandada pelo Polícia Federal: o acatamento da decisão judicial ocorre como ato de proteção corporativa.

Os comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em que se meteram ao apadrinhar Bolsonaro e respaldar seus desmandos.

Afinal, atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das corporações.

O preço a pagar pela preservação das instituições militares seria o sacrifício de alguns camaradas, os mais notoriamente associados ao ex-presidente.

Mas nada garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa.

Os oficiais hoje investigados se comportarão altivamente na defesa de suas corporações?

Aceitarão ser punidos solitariamente preservando a imagem das fileiras?

Eis uma hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu elementos preciosos aos investigadores.

Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere. Mais fácil é imaginá-los atirando, inclusive em seus desafetos fardados. A caserna cultiva camaradagem e desafeições.

Quanto ao ex-presidente, pior ainda. Quem aposta no padrão moral de Bolsonaro?

Na cadeia, esse homem, com arrobas de crimes nas costas, poderá bater com a língua nos dentes e desmontar o imaginário coletivo tão cultivado pelas fileiras. Não seria surpresa caso seja silenciado.

Qualquer que seja o rumo dos acontecimentos, o fato é que estamos longe do final de um triste e trágico capítulo da história brasileira.

 

Fonte: Viomundo

 

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