Jeferson
Miola: O primeiro degrau da responsabilização dos militares
O 8 de
fevereiro de 2024 é um dia muito significativo; representa um marco histórico
para se avançar na apuração do envolvimento central e estratégico das cúpulas
militares com os atentados contra a democracia.
Não é nada
trivial 16 oficiais das Forças Armadas, dentre eles quatro generais do Exército
e um almirante da Marinha, serem processados criminalmente por integrarem a
organização criminosa que atacou as instituições da República, o sistema
eleitoral e promoveu tentativas de golpe de Estado e de abolição violenta do
Estado de Direito.
A operação
da PF significa um avanço relevante, mas ainda é preciso subir mais degraus da
escada para alcançar, também, as cúpulas militares e a institucionalidade
militar comprovadamente implicadas com os movimentos golpistas.
A
interpretação dicotômica que divide os militares entre os linha-dura/liberais e
os conspiradores/legalistas desconsidera as hegemonias e poderes internos na
corporação, e leva à conclusão equivocada de que “militares legalistas”
salvaram a democracia do golpe “preparado por Bolsonaro” – e não por eles
próprios –, e que seria executado com apoio de alguns “militares malvados”.
Sabe-se
hoje que as cúpulas só não avançaram o plano golpista porque o governo dos EUA
mandou abortarem o golpe.
Autoridades
de diversos órgãos da Administração Biden –Pentágono, CIA, Departamentos de
Estado e da Defesa– aterrissaram em Brasília em 2022 na “missão meia-volta
volver”.
Isso
rompeu o consenso – ou a unanimidade, ou a hegemonia – pró-golpe então
existente no âmbito do Alto Comando, o que causou divisão e desencorajou
parcelas do generalato para a continuidade da empreitada golpista.
Não houve,
portanto, uma vitória de militares legalistas sobre conspiradores, mas sim o
recuo tático de setores castrenses mais atentos às ordens estadunidenses. Tais
setores não agiram por apego a princípios legais e constitucionais, mas por
conveniência tática e conjuntural.
O general
Tomás Paiva como atual comandante do Exército é uma evidência cabal desse
mimetismo político dos militares, experts em camuflagem.
Depois de
estar no comando da AMAN no dia que Bolsonaro fez comício para cadetes
[29/11/2014] como candidato antecipado à presidente para a eleição de 2018, o
general Tomás atuou como chefe de gabinete do general-conspirador Villas Bôas
na época do famoso tweet pelo qual o Alto Comando obrigou o
STF a prender ilegalmente Lula, e depois ele integrou o Alto Comando no período
de ameaças graves às instituições, como no comunicado à Nação de 11/11/2022.
As cúpulas
militares estão na gênese do processo que levou o Brasil ao precipício – desde
a conspiração para derrubar a presidente Dilma, passando pela concepção da
candidatura Bolsonaro, a prisão ilegal do presidente Lula e a dinâmica golpista
que culminou no 8 de janeiro.
Os
militares estiveram na linha de frente de todos ataques à democracia.
O
envolvimento orgânico-institucional com os atentados de 8 de janeiro ficou
comprovado na trincheira levantada pelo Alto Comando do Exército com soldados e
blindados para resistir à ordem do STF de prisão de kids pretos
[Forças Especiais], sub-oficiais, oficiais, integrantes da família militar e
demais criminosos que participaram das depredações das sedes dos três Poderes e
se amotinaram no QG do Exército.
A
condescendência criminosa [artigo 320 do Código Penal Civil e 322 do CP
Militar] não pode continuar sendo uma política institucional, transmitida de um
comando a outro das Forças.
A
impunidade do general Eduardo Pazuello, que na ativa participou de motociata
seguida de comício do Bolsonaro, é um péssimo exemplo disso.
Do mesmo
modo que outros tantos desvios, como do general André Luiz Ribeiro Allão, que
no comando da 10ª Região Militar do Exército garantiu aos acampados no quartel
total impunidade, mesmo “que existam ordens de outros poderes no caminho
contrário”.
São
exemplos que naturalizam a prática de ilícitos. A impunidade estimula militares
a cometerem crimes, como o general Hamilton Mourão, que rasgou o juramento à
Constituição que prestou quando foi diplomado Senador, e incitou a
insubordinação dos comandos militares contra a atuação da justiça civil.
Os
acampamentos nos quartéis foram estimulados, autorizados e protegidos pelo
Comando do Exército.
A
investigação mostrou que oficiais e comandantes participaram de reuniões
conspirativas e conversavam por WhatsApp sobre o plano do
golpe e os decretos e atos inconstitucionais.
Mas, ao
invés desses oficiais e comandantes denunciarem o crime em flagrante que
presenciavam, eles foram condescendentes, porque cúmplices do plano em curso.
Um exemplo
de postura profissional e legalista deu o general Mark Milley, chefe do
Estado-Maior Conjunto dos EUA, que denunciou a preparação do golpe pelo
presidente Donald Trump.
Ele
ameaçou renunciar para não ter de cumprir ordens “ilegais, perigosas ou
imprudentes” de Trump.
O
indiciamento dos militares é um avanço importante, mas a investigação ainda
precisa abarcar outros implicados que, ainda que possam ter tido uma atuação
discreta, foram igualmente relevantes na engrenagem golpista.
Não faltam
indícios, provas e nexos para se chegar a esse resultado – estão disponíveis em
fartura na forma de áudios, vídeos, textos, prints … A
impunidade, mesmo que parcial, é um convite à repetição.
O governo
tem diante de si uma oportunidade valiosa para realizar a reforma militar
urgente e necessária, que profissionalize as Forças Armadas para atuarem na
Defesa Nacional, e que afaste definitivamente o delírio dos militares como
Poder Moderador.
Ø
Kennedy Alencar: Os ‘legalistas’ da cúpula
militar ficaram na moita, dando tempo para que Bolsonaro e seus fascistas
consumassem o golpe
Volta a
circular na praça a tese de que o golpe de Bolsonaro não se consumou devido à
recusa de parte da cúpula das Forças Armadas. É mentira.
Convidados
e pressionados a dar um golpe, os “legalistas” do Alto Comando do Exército não
deram voz de prisão aos golpistas nem denunciaram a tramoia. Ficaram na moita.
Aguardando exatamente o quê?
Na
verdade, traíram a Constituição naquele momento, dando tempo para que Bolsonaro
e seus fascistas civis e militares tentassem consumar o golpe.
Ao mesmo
tempo, protegeram e toleraram acampamentos golpistas até 08/01/22, apesar do
resultado cristalino do segundo turno em 30/10/22.
Que o
Brasil não se engane. O golpismo continua vivo nas Forças Armadas.
Lula erra
ao bancar a estratégia acomodatícia de Múcio. No momento, tentam vender como um
“avanço” a ordem do comandante do Exército, Tomás Paiva, para que o golpe de 64
não seja celebrado nos quartéis. Ora, celebrar um golpe contra a democracia
seria crime.
Nos 60
anos do golpe de 64, o governo Lula deveria cobrar uma autocrítica e um pedido
de desculpas dos militares. A operação da PF de hoje aproxima Bolsonaro e seus
golpistas da cadeia. As provas estão sendo fortalecidas para mandar todos eles
para o xadrez. Isso é ótimo.
A
democracia não pode tolerar quem ameaça destruí-la. O Genocida tem de ir para a
cadeia para que nunca mais um presidente, usando todos os instrumentos do seu
cargo, trame contra a democracia. Por último, nada de passada de pano para os
militares.
O golpe
não aconteceu porque não havia condições objetivas.
O Brasil
de 2022 não aceitaria. Tampouco havia apoio internacional, como em 64.
Logo, a
vitória da democracia não foi uma concessão de supostos legalistas, pois estes
se comportaram com covardia e omissão.
Ø
A PRESERVAÇÃO DAS CORPORAÇÕES. Por Manuel
Domingos Neto
As
operações de busca e apreensão na residência de generais próximos de Bolsonaro
e a prisão de dois oficiais superiores deixou confiantes os que prezam a
democracia.
Quem
grita, “sem anistia”, sentiu-se contemplado. Muitos salientaram tratar-se de
momento histórico sem precedentes e aplaudem a coragem do ministro Alexandre de
Moraes.
A maioria
aceita a ideia de que a democracia venceu. Nestes tempos obscuros, é bom demais
ter algo de relevante a comemorar.
Mas,
caberia pensar… ao acatar decisões judiciais desta monta, as corporações,
profundamente envolvidas em manobras antidemocráticas nos últimos anos, não
passam a falsa noção de que, repentinamente, em lance histórico inédito,
assumem seriamente a institucionalidade do jogo democrático?
Uma ação
da Justiça, por contundente que seja, teria o condão de alterar a velha
tendência castrense de interferir no jogo político?
Mais
sensato seria imaginar que a postura dos comandantes revela a satisfação diante
da prevalência dos desígnios das fileiras.
O atual
governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional
e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao
estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade.
O militar
continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume
com todas as letras sua condição de “representante” das Forças, abdicando da
condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.
Como se
sabe, a condução da política de Defesa guarda implicações diretas com os mais
variados domínios da atuação do Estado, em particular com as relações externas,
a Segurança Pública, o desenvolvimento técnico-científico e industrial.
A política
de Defesa é uma peça-chave da integração sul-americana. Ao ditar a Política de
Defesa o militar se imiscui como quer nas entranhas do Estado e da sociedade.
Em outras palavras, persiste exercendo a tutela configurada ao longo do regime
republicano.
O atual
governo assegura a continuidade de práticas corporativas ancestrais que
garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da
capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro.
O Brasil
continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua
capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar
decisões soberanas em política externa.
As Forças
Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar
comandado pelo Pentágono.
Vitoriosos
no embate político principal, os comandos militares acatam o sacrifício de
alguns dos seus em troca da preservação da capacidade de ingerir nos negócios
públicos e na vida social.
Hoje, em
essência, ao tempo em que a institucionalidade democrática mostra vigor, foi
dado um passo importante para conter a corrosão da imagem das Forças Armadas.
Talvez
seja esse o significado mais relevante da operação comandada pelo Polícia
Federal: o acatamento da decisão judicial ocorre como ato de proteção
corporativa.
Os
comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em
que se meteram ao apadrinhar Bolsonaro e respaldar seus desmandos.
Afinal,
atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos
diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das
corporações.
O preço a
pagar pela preservação das instituições militares seria o sacrifício de alguns
camaradas, os mais notoriamente associados ao ex-presidente.
Mas nada
garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa.
Os
oficiais hoje investigados se comportarão altivamente na defesa de suas
corporações?
Aceitarão
ser punidos solitariamente preservando a imagem das fileiras?
Eis uma
hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu
elementos preciosos aos investigadores.
Difícil
imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e
Braga Netto resignando-se ao cárcere. Mais fácil é imaginá-los atirando,
inclusive em seus desafetos fardados. A caserna cultiva camaradagem e
desafeições.
Quanto ao
ex-presidente, pior ainda. Quem aposta no padrão moral de Bolsonaro?
Na cadeia,
esse homem, com arrobas de crimes nas costas, poderá bater com a língua nos
dentes e desmontar o imaginário coletivo tão cultivado pelas fileiras. Não
seria surpresa caso seja silenciado.
Qualquer
que seja o rumo dos acontecimentos, o fato é que estamos longe do final de um
triste e trágico capítulo da história brasileira.
Fonte:
Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário