A casa
caiu: O golpe desmascarado
Como a PF
reconstituiu – sem recorrer aos métodos da Lava Jato – a tentativa de sabotar
as eleições e a democracia. A participação de Bolsonaro e seus generais. Os
seis núcleos da trama. O vídeo que expõe a conspirata. Agora, é sem anistia!
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A Polícia
Federal deflagrou na manhã desta quinta-feira (8) uma operação especial para
investigar uma organização que teria atuado na “tentativa de golpe de Estado e
abolição do Estado Democrático de Direito”. Foram cumpridos 33 mandados de
busca e apreensão, quatro mandados de prisão preventiva e 48 medidas
cautelares.
Batizada
de Tempus Veritatis (hora da verdade, em latim), ela envolveu
a prisão do coronel Marcelo Costa Câmara e de Filipe Martins, ambos
ex-assessores de Jair Bolsonaro e próximos ao ex-presidente. Também foi preso o
major do Exército Rafael Martins de Oliveira e expedido um mandado de prisão,
ainda não cumprido, contra o coronel do Exército Bernardo Romão Correa Neto,
que está no exterior.
Nenhuma
outra operação envolveu tantos nomes da cúpula das Forças Armadas e militares
tão graduados. São três generais, também ex-ministros de Bolsonaro, alvo de
mandados de busca e apreensão. Braga Netto (ex-Defesa, ex-Casa civil e
ex-candidato a vice em 2022), Augusto Heleno (ex-chefe do GSI) e Paulo Sérgio
Nogueira (ex-Defesa e ex-comandante do Exército), além de um almirante, o
ex-comandante-geral da Marinha, Almir Garnier Santos.
Mas essa
não é a única distinção entre a operação de hoje e as anteriores. A
investigação chegou a um ponto sem retorno e as evidências da preparação de um
golpe de Estado vêm à luz.
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Apuração além da
delação
Muito se
falava, até agora, da demora para se chegar aos principais articuladores de uma
tentativa de ruptura institucional da qual o 8 de janeiro era parte. Mas o
que alguns pensavam ser mais do mesmo – ou seja, punir “bagrinhos” para
preservar os chefes – vai se revelando uma estratégia cuidadosa em que o
conjunto probatório se adensa para ser efetivo e difícil de contestar.
É
exatamente o contrário de como era conduzida, por exemplo, boa parte da Lava Jato. Na operação
conduzida pela “República de Curitiba”, buscava-se a legitimação de muitas das
acusações (e posteriores condenações), em um conluio entre integrantes do
Ministério Público (MP) e do Judiciário, em estreita relação com a mídia,
parceira da operação.
Agora, não
bastou uma delação – no caso, a do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro
Cid – para justificar pedidos de prisão ou denúncias do MP. Após o acordo,
fechado em 9 de setembro de 2023 e homologado pela Procuradoria-Geral da
República e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), correram quase cinco meses
para apurar o que era ou não verdade, naquilo que dizia o ex-auxiliar do
ex-presidente. E foram cruzadas informações e dados, e realizadas outras
diligências, inclusive a partir de material apreendido com Cid.
Vários dos
elementos probatórios foram divulgados nesta quinta-feira (8). A Polícia
Federal elencou seis núcleos de atuação que tinham como objetivo, de acordo com
a investigação, desacreditar o processo eleitoral, planejar e executar um golpe
de Estado e abolir o Estado Democrático de Direito. Entre eles, o que a
representação descreve como “Núcleo de Oficiais de Alta Patente com Influência
e Apoio a Outros Núcleos”.
Conforme a
Polícia Federal, os integrantes deste núcleo utilizavam-se “da alta patente
militar que detinham, agiram para influenciar e incitar apoio aos demais
núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para
consumação do Golpe de Estado”. Fariam parte do grupo Braga Netto, Paulo Sérgio
Nogueira e Almir Garnier.
Outro dos
núcleos seria responsável por “incitar militares a aderirem ao golpe de
Estado”. Seu objetivo era realizar a “eleição de alvos para amplificação de
ataques pessoais contra militares em posição de comando que resistiam às
investidas golpistas”. Os ataques eram realizados a partir da difusão em
múltiplos canais e através de influenciadores em posição de autoridade perante
a audiência militar. Braga Netto novamente aparece entre os integrantes deste
núcleo. Todos os seis núcleos têm participação de militares próximos ao
ex-presidente.
·
Decreto de golpe e
monitoramento ilegal
Entre os
elementos probatórios listados pela Polícia Federal e presentes na decisão do
ministro do STF Alexandre de Moraes, aparecem a apreciação, por parte de Jair
Bolsonaro, de uma minuta de golpe apresentada por Filipe Martins e pelo
advogado Amauri Feres Saad.
O
documento previa a prisão dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar
Mendes, do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e a determinação de novas
eleições. A PF diz que “foram realizadas alterações a pedido do então
Presidente”. Ou seja, Bolsonaro não só recebeu a minuta do golpe em reunião
como pediu mudanças, contribuindo com sua elaboração.
“O então
Presidente JAIR BOLSONARO teria solicitado a FILIPE MARTINS que fizesse
alterações na minuta, tendo o mesmo retornado alguns dias depois ao Palácio do
Alvorada e alterado o documento conforme solicitado. Após a apresentação da
nova minuta modificada, JAIR BOLSONARO teria concordado com os termos ajustados
e convocado uma reunião com os Comandantes das Forças Militares para apresentar
a minuta e pressioná-los a aderirem ao Golpe de Estado”, diz o relatório.
A Polícia
Federal ainda constatou que Moraes “foi monitorado pelos investigados,
demonstrando que os atos relacionados a tentativa de Golpe de Estado e Abolição
do Estado Democrático de Direito, estavam em execução”.
Mas a
elaboração do golpe remonta a um período anterior ao da realização das
eleições. E a circulação das chamadas fake
news era parte fundamental do plano,
mirando sempre o questionamento do sistema eleitoral. Segundo a investigação,
era fundamental a “promoção e a difusão, em cada uma de suas respectivas áreas,
desinformações quanto à lisura do sistema de votação, utilizando a estrutura do
Estado brasileiro para fins ilícitos e desgarrados do interesse público. Essa
narrativa serviu, como um dos elementos essenciais, para manter mobilizadas as
manifestações em frente às instalações militares, após a derrota eleitoral e,
com isso, dar uma falsa percepção de apoio popular, pressionando integrantes
das Forças Armadas a aderirem ao Golpe de Estado em andamento.”
A execução
de medidas para promover a desinformação mostra que a tentativa de ruptura
institucional não era mera “conversa de Whatsapp”, como muitos já defenderam e
outros passarão a defender. Havia uso de aparelho do Estado, em monitoramentos
ilegais, mobilização da máquina e de funcionários, além de recursos. O golpe
estava em andamento.
·
Reunião e sistema
eleitoral
Um
encontro realizado em 5 de julho de 2022, também relatado pela Polícia Federal,
mostra o esforço em descredibilizar o sistema eleitoral. Trata-se de uma
reunião que tinha Bolsonaro, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio
Nogueira e Braga Netto e cujo registro estava em um computador apreendido na
casa de Mauro Cid, registrada em vídeo.
“(…) o
então Presidente da República exige que seus Ministros – em total desvio de
finalidade das funções do cargo – deveriam promover e replicar, em cada uma de
suas respectivas áreas, todas as desinformações e notícias fraudulentas quanto
à lisura do sistema de votação, com uso da estrutura do Estado brasileiro para
fins ilícitos e dissociados do interesse público”, descreve a PF sobre o
encontro.
“Hoje me
reuni com o pessoal do WhatsApp, e outras também mídias do Brasil. Conversei
com eles. Tem acordo ou não tem com o TSE? Se tem acordo, que acordo é esse que
tá passando por cima da constituição? Eu vou entrar em campo usando o meu
exército, meus 23 ministros”, disse o então presidente. “E eu tenho falado com
os meus 23 ministros. Nós não podemos esperar chegar 23, olhar para trás e
falar: o que que nós não fizemos para o Brasil chegar à situação de hoje em
dia? Nós temos que nos expor. Cada um de nós. Não podemos esperar que outro
façam por nós. Não podemos nos omitir. Nos calar. Nos esconder. Nos acomodar.
Eu não posso fazer nada sem vocês.”
Ainda de
acordo com o relato da Polícia Federal sobre o encontro, Bolsonaro falou: “( …
) nós vamos esperar chegar 23, 24, pra se foder? Depois perguntar: porquê que
não tomei providência lá trás? E não é providência de força não, caralho! Não é
dar tiro. ô PAULO SÉRGIO, vou botar a tropa na rua, tocar fogo aí, metralhar.
Não é isso, porra!”.
Sobre
“desvio de finalidade”, na mesma reunião, o então ministro da Defesa, Paulo
Sérgio Nogueira, dizia: “senhor Presidente eu estou realizando reuniões com os
Comandantes de Força quase que semanalmente. Esse cenário, nós estudamos, nós
trabalhamos. Nós temos reuniões pela frente, decisivas pra gente ver o que pode
ser feito; que ações poderão ser tomadas pra que a gente possa ter
transparência, segurança, condições de auditoria e que as eleições se
transcorram da forma como a gente sonha! E o senhor, com o que a gente vê no
dia a dia, tenhamos o êxito de reelegê-lo e esse é o desejo de todos nós.”
·
O papel das Forças
Armadas
A
subversão do papel constitucional das Forças Armadas representada pela fala de alguém que ocupava o Ministério
da Defesa mostra o comprometimento do titular do cargo com a eleição do
presidente do turno, algo absolutamente impróprio, mas também o atestado de uso
de instituições do Estado, o que exigiria uma posicionamento da própria
hierarquia militar.
O general
Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), diz
nessa reunião que havia conversado com o diretor-adjunto da Agência Brasileira
de Inteligência (Abin), Victor Felismino Carneiro, “para
infiltrar agentes nas campanhas eleitorais, mas adverte do risco de se
identificarem os agentes infiltrados”. Naquele momento, segundo o relatório,
“possivelmente verificando o risco em evidenciar os atos praticados por
servidores da ABIN, (Bolsonaro) interrompe a fala do Ministro, determinando que
ele não prossiga em sua observação, e que posteriormente ‘conversem em
particular’ sobre o que a ABIN estaria fazendo”.
Percebe-se
que Bolsonaro, diante da proposição ilegal feita por Heleno, não rebate o
general, mas propõe uma conversa “particular”. Em outubro do ano passado, outra
operação da PF revelou a existência de um programa secreto da agência que, durante seu governo, chegou a monitorar a
geolocalização de 30 mil pessoas.
Talvez
Augusto Heleno seja o mais explícito nas intenções golpistas (e além) em sua
intervenção na reunião transcrita pela PF. “Não vai ter revisão do VAR. Então,
o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que
dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das
eleições”, disse ele. “Eu acho que as coisas têm que ser feitas antes das
eleições. E vai chegar a um ponto que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos
ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas
pessoas. Isso pra mim é muito claro”, pontuou.
Para
completar o dia, a PF encontrou na tarde desta quinta-feira, na sede do PL, um
documento apócrifo que anunciava a decretação de um estado de sítio no país,
escrito em formato de discurso e mencionando, inclusive, a expressão “as quatro
linhas da Constituição”.
Em
janeiro, o presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, havia comentado em entrevista, sobre a
minuta achada na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres: “Nunca
comentei, mas recebi várias propostas, que vinham pelos Correios, que recebi em
evento político. Tinha gente que colocava [o papel] no meu bolso, dizendo que
era como tirar o Lula do governo. Advogados me mandavam como fazer utilizando o
artigo 142, mas tudo fora da lei. Tive o cuidado de triturar”. Ao que parece,
este documento não foi triturado…
Ao fim, o
que a Operação Tempus Veritatis permite ver é um processo que já se intuía, mas
do qual existem hoje evidências que podem ser vistas como provas, tanto no
âmbito político como no jurídico. Havia um golpe em andamento e o fato de não
sido bem sucedido não significa que não tenha sido elaborado, pensado e
conduzido por agentes do Estado que tinham a máquina e recursos (estatais e
privados) à disposição. O aparente amadorismo e a pouca sofisticação e preparo
intelectual dos promotores desta tentativa não significam que seus atos e
planos possam ser minimizados.
O Estado
Democrático de Direito precisa ser protegido e a responsabilização de quem
atenta contra ele é imprescindível em um cenário no qual a democracia formal
continua cambaleante diante das ameaças de extremistas. O golpe de 1964 não foi
gestado naquele ano, mas sim um produto de diversas tentativas frustradas em
anos anteriores, que submergiram diante da vocação brasileira da “conciliação
forçada”. Não temos o direito de repetir o erro.
Fonte: Por
Glauco Faria, em Outras Palavras
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