sábado, 10 de fevereiro de 2024

Os norte-coreanos enviados à China para trabalho 'escravo' em fábricas

No mês passado, surgiram relatos de que norte-coreanos que trabalham na China teriam se revoltado após descobrirem que não receberiam seus salários, pois o dinheiro havia sido desviado à Pyongyang para produção de armas.

Casos de protestos de norte-coreanos são praticamente inexistentes, devido ao controle total que Estado exerce sobre os cidadãos - e porque a dissidência pública pode resultar em execução.

Os distúrbios relatados, embora não confirmados, despertaram preocupação com o bem-estar das dezenas de milhares de norte-coreanos que trabalham no exterior e fazem dinheiro para o regime.

Um deles, que trabalhou na China, contou à BBC que funcionários de empresas de baixo desempenho tiveram seus salários retidos.

A reportagem teve acesso a um email de alguém que afirma trabalhar atualmente em TI e que diz que eles estão sendo "explorados como escravos".

Os protestos teriam eclodido em várias fábricas de roupas administradas pela Coreia do Norte no nordeste da China, em 11 de janeiro, de acordo com um ex-diplomata norte-coreano que possui fontes na região. Foi ele que passou a notícia à imprensa em janeiro.

Ko Young Hwan, que desertou para a Coreia do Sul na década de 1990, disse à BBC que ouviu que os trabalhadores se revoltaram quando souberam que anos de salários não pagos haviam sido transferidos para um fundo de preparação para a guerra em Pyongyang.

"Eles ficaram violentos e começaram a quebrar máquinas de costura e utensílios de cozinha", disse Ko. "Alguns até trancaram os chefes norte-coreanos em uma sala e os agrediram."

Não é possível atestar a veracidade do relato de Ko sobre os protestos, já que não há informações independentes verificáveis disponíveis. A Coreia do Norte não é apenas extremamente fechada, como suas fábricas na China são fortemente protegidas.

Estima-se que cerca de 100 mil norte-coreanos trabalham no exterior, principalmente em fábricas e canteiros de obras no nordeste da China operadas pelo governo norte-coreano, Lá eles recebem em moeda estrangeira, valiosa para o regime, fortemente atingido por sanções. Estima-se que os trabalhadores tenham feito cerca de US$ 740 milhões para Pyongyang entre 2017 e 2023.

A maioria dos ganhos é transferida diretamente para o Estado. Mas Ko entende que os trabalhadores que se rebelaram teriam tido os salários retidos na íntegra durante a pandemia e sido informados de que seriam pagos ao retornarem à Coreia do Norte.

Normalmente, os trabalhadores passam três anos no exterior, mas por causa dos fechamentos rigorosos de fronteira durante a pandemia de covid, alguns estão presos fora do país há sete anos.

O descontentamento começou a se formar no começo do segundo semestre de 2023, afirma Ko, quando Pyongyang afrouxou as restrições de fronteira e passou a permitir o retorno. Alguns trabalhadores estavam pressionando para voltar para casa com o objetivo de receber o dinheiro devido. Quando descobriram que não receberiam, ficaram revoltados, contou Ko.

Uma versão semelhante dos eventos foi compartilhada por Cho Han-beom, pesquisador sênior do think tank financiado pelo governo sul-coreano Instituto Coreano para a Unificação Nacional (KINU), que também citou fontes na China. Ele acredita que até 2,5 mil trabalhadores participaram da ação, em 15 fábricas na província de Jilin, o que faria desse o maior protesto de que se tem notícia na história da Coreia do Norte.

Embora os protestos não possam ser confirmados de forma independente, sabemos que há dezenas de milhares de trabalhadores norte-coreanos no exterior que estão sendo mantidos fora do país e que tiveram pelo menos parte de seus ganhos retidos.

"Muitos desses trabalhadores estão psicologicamente e fisicamente exaustos depois de trabalhar no exterior por tanto tempo sem serem pagos, e vão querer ir para casa", disse Cho.

A BBC conversou com um norte-coreano que trabalhou na China entre 2017 e 2021 e que lançou mais luz sobre a situação dos funcionários no exterior. "Jung", que não nomearemos por motivos de segurança, disse que era um dos funcionários com melhor desempenho em uma das empresas norte-coreanas mais lucrativas.

Mesmo assim, Jung disse que recebeu apenas 15% de seus ganhos totais. O restante ia para seus chefes e para projetos estatais, o que era frustrante. Jung era pago mensalmente, mas ele afirma que quem trabalhava em empresas de baixo desempenho via cada vez mais seus salários serem retidos.

"Algumas pessoas ficaram sem aquecimento em suas acomodações durante os meses de duro inverno, e não podiam deixar seu complexo, nem mesmo para comprar itens de necessidade básica", disse ele. Jung foi autorizado a fazer uma saída na semana, acompanhado de outros trabalhadores. Mas durante a pandemia de covid até essa pequena liberdade foi restringida. Ele ficou sem receber permissão para deixar seu local de trabalho por um ano.

Apesar das restrições, empregos no exterior são altamente procurados pelos norte-coreanos, pois podem pagar até 10 vezes mais que aqueles dentro do país.

Quem se candidata tem a vida investigada a fundo, para verificar se não há histórico de crime ou deserção na família. Os trabalhadores escolhidos devem então deixar as famílias para trás - para que não sejam tentados a desertar.

A BBC leu um e-mail de alguém que afirma ser um norte-coreano atualmente trabalhando na China, que sugere que o nível de controle exercido sobre os trabalhadores aumentou nos últimos quatro anos.

O homem, que diz ser um trabalhador de TI no nordeste da China, enviava e-mails para Ko há mais de um ano e entrou em contato novamente na semana passada após saber dos protestos.

Ko nos disse que confirmou a identidade do homem, embora a BBC não possa verificar de forma independente quem ele é, ou seu relato, devido ao nível de anonimato necessário para protegê-lo.

"O estado norte-coreano explora os trabalhadores de TI como escravos, fazendo-nos trabalhar seis dias por semana, de 12 a 14 horas por dia", escreveu o programador. A equipe trabalha durante a noite para clientes baseados nos EUA e na Europa, disse, sofrendo privação crônica de sono e muitas doenças.

Logo que chegou, ele recebia entre 15 e 20% de seus ganhos mensalmente, mas em 2020 os pagamentos teriam sido interrompidos. Veio então uma ordem das autoridades em Pyongyang, contou ele, exigindo que as autoridades trancassem os trabalhadores em seu alojamento à noite para impedi-los de escapar.

O homem detalhou em seu e-mail como os gerentes são pressionados a envergonhar publicamente funcionários de baixo desempenho, estapeando-os na frente de todos e depois batendo neles até sangrarem.

Já os de alto desempenho são recompensados com uma ida a um restaurante norte-coreano, onde podem escolher uma das garçonetes para passar a noite. O melhor funcionário do mês tem o direito de escolher primeiro. Ele acusou os gerentes de "se aproveitar dos impulsos sexuais dos jovens para levá-los a competir e fazer mais dinheiro".

O ex-trabalhador estrangeiro Jung afirmou que esses passeios também eram comuns na empresa em que trabalhava, acrescentando que se tornaram mais frequentes durante a pandemia de covid, "já que os trabalhadores estavam presos dentro de casa e extremamente estressados". Os homens ficavam até tarde no restaurante e as mulheres eram remuneradas, disse ele.

Hanna Song, diretora executiva do Centro de Banco de Dados para os Direitos Humanos da Coreia do Norte (NKDB), disse que tipicamente os trabalhadores estrangeiros suportam condições difíceis e vigilância rigorosa porque podem voltar para casa com uma pequena quantidade de dinheiro. "Muitos deles sentiram-se abandonados quando o governo fechou as fronteiras durante a covid", disse ela.

Song também confirmou ter ouvido falar de salários sendo retidos mesmo antes da pandemia.

Apesar das aparentes frustrações entre os trabalhadores, Pyongyang parece relutante em trazê-los para casa. Em 2017, o Conselho de Segurança da ONU proibiu a Coreia do Norte de empregar trabalhadores no exterior e ordenou a repatriação deles até o final de 2019.

Acredita-se que a China não estaria disposta a desrespeitar abertamente a proibição aceitando uma nova leva de trabalhadores. O que deixa a Coreia do Norte com um problema a resolver: descobrir como gerenciar possíveis revoltas ao impedir o retorno de seus trabalhadores.

Depois que os protestos eclodiram, diz Ko, Pyongyang enviou funcionários do governo às fábricas da China para pagar aos trabalhadores parte dos salários devidos, mas o equivalente a milhões de dólares ainda não foram pagos.

Embora seja bem possível que os relatos de protestos em larga escala tenham sido exagerados, a maioria dos especialistas com quem a BBC conversou concorda que é provável que algum tipo de incidente tenha ocorrido.

O serviço de inteligência sul-coreano disse à BBC que houve "vários incidentes" envolvendo trabalhadores norte-coreanos no exterior, devido a "más condições de trabalho" e que estava "monitorando a situação".

Song disse que era difícil imaginar que um protesto em larga escala pudesse acontecer de repente. "Se tivesse havido qualquer indício de planejamento, provavelmente teria sido descoberto pelas autoridades de segurança do estado e reprimido."

Peter Ward, especialista em economia política norte-coreana no Instituto Sejong em Seul, disse que era difícil saber se os relatos tinham credibilidade, já que nenhuma informação possível de ser verificada de forma independente havia surgido, mas que, dada a situação dos trabalhadores no exterior, os protestos eram "totalmente plausíveis".

Mas se tiverem ocorrido de fato, Ward não acredita que representam uma ameaça direto ao regime.

"Isso parece ser uma disputa trabalhista, essas pessoas não estão tentando derrubar o governo", disse ele. E argumentou que seriam mais uma prova de que "o governo norte-coreano está realmente lutando por dinheiro, a ponto de agora estar literalmente roubando de seus trabalhadores".

Ward acrescentou que a Coreia do Norte precisaria cuidar da questão, até porque poderia criar tensões com a China. Pequim não vai querer protestos em seu solo e pode decidir parar de facilitar esses arranjos.

 

Fonte: BBC News em Seul

 

Nenhum comentário: