Monte
Saint-Michel: rota para o céu
O Monte
Saint-Michel é um lugar de mistério que pode ser visto e sentido desde muito
longe. Situado na foz do rio Couesnon, no golfo de Saint-Malo (costa da
Normandia, no noroeste da França), o monte é uma quase ilha a fascinar o olhar
de quem dele se aproxima. Pouco a pouco seus contornos vão-se definindo na base
do monte, um povoado medieval; mais acima, há um enorme mosteiro beneditino que
se assemelha a um castelo, encimado por uma belíssima abadia gótica.
O Monte
Saint-Michel ilustra à perfeição o simbolismo universal da montanha. Todos os
sistemas religiosos e mitológicos veem as montanhas como lugares carregados de
sacralidade. Ponte de ligação entre o céu e a terra e capaz de atingir
misteriosas profundezas a partir de sua base, a montanha representa um eixo
vertical que articula os três níveis do mundo: o celeste, o terrestre e o mundo
inferior.
Sendo uma
coordenada vertical, a montanha é o eixo, o centro do mundo, ao redor do qual a
criação se organiza; ela é também uma imagem reduzida do planeta. Esse
microcosmo constitui um mundo em si mesmo, completo e perfeito; é um símbolo da
ordem e do equilíbrio. Ao redor dele se agitam as forças imprevisíveis,
desordenadas e perigosas do caos. Ao desenhar sua silhueta numa paisagem em
perpétua transformação, onde as areias perigosas, o mar incontrolável e os
frequentes nevoeiros podem ser armadilhas mortais, o Monte Saint-Michel torna
imediatamente tangível a realidade daquele arquétipo.
Enquanto
eixo vertical do mundo, a montanha é também a passagem pela qual se estabelece
a comunicação entre o mundo de baixo e o do alto. As manifestações do arcanjo
que (de acordo com relatos recolhidos ao longo dos séculos) ali ocorreram
constituem o aspecto descendente desse canal de comunicação. No sentido
ascendente, o monte é entendido como o lugar privilegiado onde a alma pode
subir às alturas celestes.
·
Mistérios insondáveis
Desde
tempos pré-cristãos o Monte Saint-Michel é considerado um lugar onde são
percebidos mistérios de um mundo que nos ultrapassa. Os celtas o associavam a
uma mítica “Ilha dos Mortos”, onde os espíritos se reuniam após deixar o mundo
dos vivos. A ideia sobreviveu nos tempos do cristianismo, e um texto católico
do século 11, “Revelações da Igreja de Saint-Michel”, descreve: “(…) este lugar
é chamado Tumba pelos habitantes. Com efeito, ele emerge acima da praia como
uma tumba”…
Vários dos
mitos e lendas recolhidos pelos folcloristas sobre o monte falam de sua relação
com a herança céltica. Num raio de 40 quilômetros, diversos menires e blocos
rochosos são vistos tradicionalmente como pedras abandonadas pelo diabo, por
fadas ou outros entes sobrenaturais durante o surgimento do monte. Muitas
tradições falam também de saltos gigantescos, dados por criaturas lendárias e
que deixaram nas pedras as marcas de pés (na verdade, cavidades produzidas pela
erosão). Uma dessas marcas, no vizinho Monte Dol, é atribuída ao pé do próprio
São Miguel, que dali, com um salto, chegou ao cume do monte que leva seu nome.
O Monte
Saint-Michel nunca foi visto como um lugar ordinário. Ele sobrepõe imagens
míticas e simbólicas que o definem como “outro mundo”, um universo regido por
leis que escapam aos limites estreitos da nossa percepção terrestre. Por isso,
até hoje, época do turismo de massa, o acesso a esse rochedo oferece a garantia
de uma experiência diferente e superior da existência. Todo o complexo
geológico-arquitetônico do monte pode ser entendido como o lugar preferencial
de acesso aos mistérios iniciáticos do arcanjo Miguel. Um culto que integra as
raízes da doutrina cristã como caminho espiritual e que, na verdade, antecede o
próprio cristianismo.
Vista do interior da abadia de Saint-Michel. O
local integra a lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Crédito: Joel Carillet
A tradição
dos caldeus, milênios antes de Cristo, conhecia sete espíritos celestes
associados aos planetas. Os arcanjos correspondem a esses planetas, e Miguel
estava relacionado a Mercúrio. A Bíblia integrou a seguir a figura flamejante
desse Anjo de Luz, a quem foi atribuído um papel central de chefe das milícias
celestes, o vencedor da Besta no Apocalipse de São João.
·
Condução de almas
Desde a
fundação do primeiro núcleo monástico no local, no século 8, o monte tornou-se
um dos principais locais de peregrinação dos católicos europeus. A explicação
para esse interesse, segundo Marc Déceneux, autor de Monte Saint-Michel –
História Sagrada e Simbólica, talvez esteja vinculada às angústias ligadas ao
mistério dos fins últimos da existência do homem e do mundo. O arcanjo é, na
verdade, o “psicopompo”, o condutor de almas – no cancioneiro medieval A Canção
de Rolando, São Miguel em pessoa vem recolher a alma do paladino agonizante
para levá-la ao paraíso. Ele exerce também o papel de “psicostase”, o pesador
de almas, aquele que avalia na sua balança a diferença entre o peso das boas e
das más ações cometidas. Como se não bastasse, Miguel é ainda o “prepositus
paradisi”, aquele que guarda as portas do Paraíso.
Antes de
1879, só se podia ir ao Monte Saint-Michel durante a maré baixa, quando o recuo
das águas deixava aflorar uma extensa área de areias brancas. Se a estada
demorasse, o visitante corria o risco de ficar ilhado. Depois disso, a
construção de pontes – a última das quais inaugurada em 2014 – garantiu uma
visitação imune ao vaivém das marés.
Os
turistas caminham até um grande pórtico medieval, a Porta do Rei, e penetram de
imediato na vila. Existe apenas uma rua estreita, com 200 metros de extensão,
ladeada por casarões de dois e três andares, com estrutura de madeira aparente
e alvenaria, muitos deles construídos na Idade Média. Toda a vida mundana do
monte acontece ali: lojas de suvenires, correio, banco e vários hotéis,
tavernas e restaurantes onde se serve a fantástica culinária da Normandia, à
base de peixes, patos, gansos e cordeiros. Nessa rua também ficam a igreja
paroquial e outro minimosteiro beneditino, onde vive hoje a comunidade
monástica local.
·
Coroa no rochedo
A rua
chega às escadarias que levam ao portal de entrada do antigo mosteiro, a 150
metros de altura. Fortificado no fim do século 13 pelo abade Pierre Le Roy,
esse mosteiro parece uma imensa coroa posta diretamente sobre o cume do
rochedo. O conjunto assemelha-se a um castelo medieval e faz lembrar que as
abadias católicas eram senhorias, e que o abade era o senhor.
Duas imagens (veja a segunda mais abaixo) da
estreita rua da vila em Saint-Michel: toda a vida mundana do lugar acontece
ali. Crédito: Rparys
Uma visita
à abadia, hoje convertida em museu, deve incluir as criptas subterrâneas,
atravessando a igreja de Nossa Senhora Sob a Terra, onde os monges do passado
viviam a experiência subjetiva da morte simbólica e da estada nos infernos. Na
parte média do complexo há um conjunto de edifícios que, por sua beleza
arquitetônica, foi chamado de “A Maravilha” ainda na Idade Média. Ali se
desenrolava o cotidiano de centenas de monges nos tempos medievais, em
escritórios, salas de recepção, biblioteca, salas de estudos, dormitórios,
dispensas, cozinhas e refeitórios.
Nesse
setor também fica o claustro, uma das obras-primas da arquitetura medieval
francesa. De formato quadrado, ele tem quatro amplas galerias por onde os
monges caminhavam em prece e meditação. No centro há um jardim com plantas
verdes e flores singelas, organizado com requintada simplicidade. Separando o
jardim das galerias, longas fileiras de colunas duplas esculpidas quebram a
dureza dos desenhos quadrados.
A igreja
no topo da abadia foi erguida no estilo conhecido como “gótico flamejante”:
altíssima e estreita, para criar a sensação de extrema verticalidade.
Exatamente no centro do templo, sob a agulha, há uma grande estátua dourada de
São Miguel.
Não há
tristeza nos labirintos do mosteiro e da abadia do Monte Saint-Michel. Ao
contrário, tudo é leve e convida a um estado meditativo simples e
despretensioso. O estado que se espera quando se está sob as asas imensas e
acolhedoras do arcanjo Miguel.
·
Protetor da França
O aspecto
guerreiro assegurou ao arcanjo Miguel um grande respeito nas dinastias
militares e reais da Europa, e já no século 4 o imperador Constantino lhe
dedicou uma igreja em Constantinopla. Do mundo bizantino, o culto a ele chegou
à Itália e à Gália; nesta última, uma igreja foi erguida em 505 em Lyon para
homenageá-lo. A partir daí, mais e mais os príncipes franceses manifestaram
grande veneração pelo arcanjo.
Carlos
Magno consagrou seu império a São Miguel, que seria patrono da França até o
governo de Luís XIII, o qual decidiu consagrar seu reinado à Virgem. Mas a
resistência inabalável do Monte Saint-Michel aos ingleses durante a Guerra dos
Cem Anos (1337-1453) exaltaria ainda mais o caráter nacional do culto prestado
ao príncipe das milícias celestes. O arcanjo recuperaria então seu lugar de
protetor máximo da França.
Fonte:
Planeta
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