Identidade
e Esquerdas, complexa interação
Uma fala
recente do presidente Lula em um evento petista para celebrar a “refiliação” de
Marta Suplicy, escolhida como vice para a chapa de Guilherme Boulos à
prefeitura de São Paulo, foi bastante divulgada ao longo dos últimos dias.
Nela, Lula falava da necessidade de “lideranças reais” para candidatos a
vereador pela legenda, criticando aqueles que queriam ser candidatos apenas por
serem “branco”, “mulher”, “negro”, “indígena”.
Causou
espanto em muitos de seus apoiadores, defensores de bandeiras de minorias
políticas, assim como curiosas reações indignadas de grande parte de seus
adversários, que nunca ligaram ou até abertamente menosprezaram e combateram
tais pautas.
Pode-se
defender Lula argumentando que sua fala expressava preocupação legítima com a
tomada de espaço do partido por candidatos artificiais, sem inserção orgânica
em qualquer coletividade, utilizando-se apenas de algum indicador social
minoritário (sexo, cor, religião, orientação sexual etc.) para angariar apoio
político e almejar posições políticas sem contar com lastro popular para tanto.
Os
críticos, por sua vez, apontam que, se não fossem as candidaturas de mulheres,
negros, LGBTQIA+ etc., a esquerda não renovaria suas bancadas e se ossificaria,
pois são precisamente estes temas que mais mobilizam a opinião pública e o
eleitorado progressista nos últimos tempos.
Por trás
de todo esse debate, há uma palavra que vem sendo usada com bastante
frequência, geralmente de forma pejorativa: o “identitarismo”. Afinal de
contas, o que seria isso? Por que paixões tão demarcadas vêm se mobilizando ao
redor deste enigmático significante?
A polêmica
entre as duas esquerdas
De modo
geral, é possível dizer que, entre uma miríade de posições intermediárias e
cheias de nuances, há duas reações típicas ao crescimento, visto desde a última
década, da importância das temáticas abarcadas genericamente sob o guarda-chuva
dos “debates de opressões” ou “minorias”.
A primeira
é marcada por um rechaço a essas novidades, vistas como perniciosas por afastar
a esquerda dos sentimentos e inclinações mais populares. Segundo esta versão,
ao enfocar pautas comportamentais de vanguarda (muitas vezes com apelo em
setores mais elitizados), frequentemente em choque contra tabus religiosos ou
morais, haveria um distanciamento cada vez maior entre o trabalhador
“tipo-ideal” e o campo político progressista. Em suma, enquanto jovens
universitários com moral californiana se empolgariam com este tipo de política,
o trabalhador religioso, moralmente conservador e com preocupações mais
comezinhas (salário, emprego, serviços públicos) tenderia a se afastar.
Há,
frequentemente, nesta posição, um tom nostálgico, lamentando o desaparecimento
de uma esquerda clássica – pró-mundo do trabalho e anti-imperialista –, cujo
ideal deveria ser resgatado. Também acontece de este tipo de posicionamento
transformar a complexa heterogeneidade constitutiva da classe trabalhadora
brasileira em um fetiche (eis a ironia!) identitário, moldado em um emblema
antiquado do operário médio, como se todo habitante das periferias ou
trabalhador de chão de fábrica fosse necessariamente conservador e não
houvesse, também, demandas feministas, referentes às múltiplas sexualidades
dissidentes à hetero e cis-sexualidade ou de identidade negra ou indígena,
entre a população mais pobre e explorada.
Como
subsídio crítico a reforçar tal nostalgia aparece a denúncia frequente de haver
um interesse por parte de fundações de bilionários estrangeiros em financiar
ONGs e projetos de pesquisa que servissem para fragmentar o tecido social
brasileiro e diluir o potencial político radical da esquerda brasileira através
da importação de debates de minorias moldados ao estilo norte-americano, no
qual inclusão social e diversidade sexual e racial se coadunam com o
capitalismo financeiro mais desbragado e imperialista.
A outra
posição é a que não apenas reconhece a validade dessas múltiplas demandas, mas
as celebra como algo radicalmente novo, enterrando de vez qualquer perspectiva
classista e anti-imperialista (visto, muitas vezes, como um rescaldo
dinossáurico da Guerra Fria) ou projeto de transformações econômicas mais
estruturais, temáticas identificadas como antiquadas e ligadas a um apego ao
passado.
Não
raramente esta apologia novidadeira recai em alguma forma de ruptura com o
marxismo e projetos políticos socialistas, chegando algumas vezes ao ponto do
combate aberto. Neste caso, o entusiasmo com novas lutas sociais encobre a
defesa de estruturas muito mais velhas que qualquer esquerda: a propriedade
privada e os negócios dela derivados, agora com mais colorido e corretismo
político.
Apesar de
algo caricaturais, creio que estas duas vertentes delineadas expressam
tendências políticas reais. Há, de fato, uma modulação do debate dentro da
esquerda em torno desses dois vértices. Como praticamente em todo caso demais
codificado por binarismos rígidos e simétricos, é preciso achar um caminho
diagonal – que não seja o mero compromisso ou o ecletismo débil – e transversal
a estes dois desvios, se me permitem o vocabulário antigo e um tanto suspeito.
De
imediato, já podemos excluir a pertinência desta dualidade esquemática ao nos
lembrarmos que o vanguardismo feminista (e artístico) caminhava lado a lado com
a prioridade à reorganização socioeconômica radical entre os bolcheviques nos
primeiros anos de Revolução Russa (simbolizado por nomes como Alexandra
Kollontai) ou que o PCB foi não apenas o primeiro partido a ter um
presidenciável negro (Minervino de Oliveira) como também pioneiro em
legislações para os negros e religiões afro-brasileiras, até então (e ainda
hoje) muito perseguidas. Bandeiras como a criminalização do racismo, a
importância de creches e lavanderias públicas e o fim de formas arcaicas de
subjugação da mulher pela estrutura patriarcal foram prioridades em
praticamente todas as revoluções do século XX desde seu início, com a Revolução
de Outubro. Sobretudo, é fundamental lembrar o enorme peso que a temática
contra a opressão racial desempenhou nas revoluções anticoloniais da periferia,
muitas vezes dirigidas por comunistas negros como Amílcar Cabral ou Samora
Machel. Reconstruir esta memória é tarefa intelectual da mais importante
urgência e importância.
• Os dois movimentos das identidades
É preciso
começar do começo: afinal, o que é uma identidade? Podemos defini-la como uma
estrutura invariante ao longo do desenvolvimento da subjetividade de cada vida
humana. Assim, eu não deixarei de ser são paulino, cidadão brasileiro ou homem
ao longo da minha vida. Também é certo que vários outros costumes, ritos,
crenças etc., apesar das imensas mudanças que uma vida comporta, continuam
relativamente estáveis e previsíveis.
A partir
disso, podemos considerar dois movimentos subjacentes à estabilização de uma
identidade. Um primeiro movimento visando a afirmação da identidade contra
tentativas de assimilação ou perseguição, e um segundo movimento envolvendo a
dilatação da identidade, incluindo o elemento invariante em uma rede de novas
criações e possibilidades. Explico melhor a seguir.
Peguemos o
exemplo do imenso contingente de nordestinos que vieram a São Paulo, em viagens
extremamente penosas e em condições heroicas, para serem empregados como mão de
obra bastante explorada na indústria e construção civil em plena expansão na
segunda metade do século passado. Há, entre os habitantes dos vários estados do
Nordeste, diferenças culturais significativas, e seria extremamente redutor
enquadrá-los num todo homogêneo. No entanto, frente à opressão xenofóbica e
agressões variadas contra qualquer “baiano” ou “cabeça chata”, um movimento de
defesa de identidade e tradições culturais nasceu em solo paulistano. Para
preservar orgulhosamente suas origens e tradições contra tentativas agressivas,
criam-se comunidades unidas por este vínculo com o Nordeste na capital
paulista. Podemos imaginar centros culturais e instituições diversas voltadas à
identidade nordestina ou mesmo bairros inteiros dominados por esta
identificação (vejam o caso de São Miguel Paulista).
Evidentemente,
este tipo defensivo de identidade, é um mecanismo válido e positivo, exercido
por qualquer subconjunto unido por um predicado de exclusão ao longo da
História. Desta forma, contra tentativas de assimilação à identidade nacional,
judeus europeus frequentemente preservaram seus costumes, ritos e até uma
língua própria (o ídiche), o que constantemente alimentou a fúria do
antissemitismo. Contra o imaginário racista que exclui qualquer traço de
historicidade das civilizações antigas que compõem o continente africano,
identificando a História universal à história do continente europeu, é
compreensível a busca pelo estudo das origens de impérios (como o etíope,
referência na cultura rastafari) e culturas milenares por parte de filhos da
diáspora africana, o que, fora deste contexto defensivo, poderia soar como
apego reacionário ao passado. Da mesma maneira, as perseguições aos árabes e
islâmicos emigrados na Europa atual, ao contrário de enfraquecer, estimulam o
apego a traços da identidade originária.
Podemos
concluir, portanto, que a perseguição ou tentativas de assimilação e apagamento
levam à defesa do sentido “exclusivo” e fechado das identidades, como mecanismo
de proteção. Não seria correto ver nisto um particularismo reacionário, já que
se trata de evitar o esmagamento cultural imposto por práticas de segregação e
opressão.
No
entanto, há um outro movimento em jogo na nossa situação tomada para fins
ilustrativos. Além da existência de afirmação de uma identidade própria do
nordestino em São Paulo, há o movimento de expansão e dilatação da identidade,
criando nesta situação algo qualitativamente novo. Assim, sabemos que mesmo a
culinária, a música e a religião originais são adaptadas, bebem de outras
influências e configuram inovações que não se contentam em repetir o que já foi
transmitido, já que o adjunto adverbial de lugar em São Paulo faz toda a
diferença. Trata-se não apenas de uma preservação, mas de uma criação originada
do contato da identidade original com um novo contexto.
Este jogo
dialético dos dois movimentos nos fornece o quadro para encarar o problema
visado: como as identidades se relacionam com a política. Podemos, em regra
geral, definir que um processo emancipatório visa garantir que o caráter
expansivo da identidade subordine o aspecto exclusivista desta. No entanto,
isto só se torna possível caso as hostilidades e práticas discriminatórias
sejam erradicadas. Sabemos como o menosprezo com estas questões podem gerar
efeitos catastróficos na história das organizações de esquerda.
Uma
política universalista e igualitária – a única que merece ser levada a sério
como matéria pro pensamento e engajamento criativo – não exclui as diferenças
(afinal de contas isto é a matéria-prima de tudo que existe) mas também não tem
objetivo circunscrito e definido a partir de alguma delas. Mesmo o proletariado
do qual falava Marx – e este é um erro comum inclusive entre muitos de seus
intérpretes – não tem um significado marcado apenas por uma delimitação
socioeconômica: a possibilidade de libertação de todas as classes, seu
universalismo definido a partir da negação predicativa (é a classe que não tem
nada a perder, por ser não-proprietária) é o substrato filosófico que não deve
ser perdido de vista, mesmo por aqueles que destacam mais a ruptura que a
continuidade entre Hegel e Marx.
No
entanto, um universalismo que não se engaja no atravessamento do maior número
de diferenças possíveis – isto é, que não testa sua força a partir da
capacidade de lidar com múltiplas identidades – se transforma em pura abstração
sem efetividade. Contra o culto às particularidades fechadas devemos sustentar
o (hoje tão vilipendiado) universalismo. Com um adendo importante: para este
universalismo constituir de fato uma força política viva não podemos considerar
pautas contra o racismo, a misoginia etc. como destituídas de importância, sob
pena de o processo universalista vir a colapsar. O sucesso do universalismo é o
atravessamento local de alguma nova identidade, incorporada ao seu processo.
Vejamos
isso, mais concretamente, a partir de uma série de identidades: raça, nação,
sexo, classe e aquela mais ignorada, mas mais fundamental, base do nosso
celebrado “individualismo moderno” – o Eu.
• Exemplos de usos reacionários e usos
emancipatórios das identidades
Para
demonstrar que a questão “identitária” não se resume apenas aos temas que mais
causam polêmica atualmente, mas também envolvem predicamentos “clássicos” como
a pertença nacional e a classe social, me utilizarei de exemplos que demonstram
como há fundamentalmente dois métodos de encarar as identidades em processos
políticos: um subordinando o exclusivismo identitário ao universalismo,
portanto considerando principalmente a dimensão criativa e dilatadora das
identidades; e outro visando não apenas ignorar o universalismo, mas combatê-lo
a partir do uso hipertrofiado e fechado de alguma identidade rígida. Poderíamos
até mesmo simplificar grosseira e brutalmente (como às vezes é necessário em
política): um caminho comunista ou fascista. Trata-se, portanto, não de uma
questão do conteúdo em si de cada identidade, considerado como algo positivo ou
negativo a priori, mas do procedimento pelo qual tais identidades são
consideradas e articuladas em um processo político composto por organizações e
movimentos.
Comecemos
com a nacionalidade. Algo curioso por trás das críticas mais estridentes ao
“identitarismo” na internet vem do fato de se originarem de grupos abertamente
nacionalistas. Ora, a nação nada mais é que uma identidade! Não é à toa que
grupos europeus com origem no fascismo chamam a si próprios de “identitários”,
não vendo nada de ruim nisto. Na França, grupos vindo de teorias
etno-nacionalistas e anti-imigração fazem parte do chamado “mouvance
identitaire”, havendo até mesmo uma organização chamada Les Identitaires, da
qual saiu a Génération identitaire¹.
No
entanto, por acaso alguém recusaria a defesa do povo palestino hoje, com o
argumento de que se trata de um nacionalismo identitário? Apesar do
internacionalismo ser a base de qualquer projeto emancipatório, não seria
razoável supor que um processo de libertação nacional contra ocupação militar
seja a mesma coisa que um uso de temas nacionalistas para expansão colonial ou
agressão estrangeira, como se dá em guerras de conquista. A divisão é clara: o
tema “nacional” mobilizou milhões de pessoas esmagadas pelo nazismo, querendo
preservar não apenas suas vidas, mas sua herança cultural e linguística
(pensemos na Resistência francesa, na qual mesmo nacionalistas de direita como
De Gaulle tiveram papel importante) de um modo não análogo ao uso dos
predicados nacionais na retórica nazista ou fascista. Seria um doutrinarismo
abstrato considerar que em todo caso se trata de “nacionalismo” e, portanto, de
algo negativo.
A
diferença reside no seguinte: a identidade nacional indica algum devir no
sentido de uma possível não dominação, ou libertação humana, isto é, aponta
para a afirmação da igualdade universal da humanidade contra as diversas
hierarquias, segregações e exclusões desigualitárias que a afligem? Ou, pelo
contrário, ela visa reforçar as tendências desigualitárias que constituem a
base de nossa miséria?
Podemos
perceber que a consideração concreta do tema nem sempre é clara, por mais que
os princípios sejam, pois mesmo o fascismo se utilizou de uma retórica
“anti-imperialista” para justificar seu nacionalismo. No entanto, vários fatores
podem nos guiar contra o erro: seu apelo “libertador” era apenas uma
justificativa para anexar violentamente colônias na África e perseguir não
apenas povos distintos como frear o avanço da ameaça internacionalista
principal: o movimento operário conquistado por ideias comunistas.
De
qualquer forma, a história nos ensina tanto os perigos do nacionalismo
contaminar processos de potencial emancipatório (a deriva conservadora de
vários movimentos anticoloniais e mesmo socialistas é conhecida) quanto da
negação abstrata dessa identidade nas questões políticas gerar apenas reforços
das identidades atacadas. Para ilustrar este último caso, lembremos do desprezo
obtuso da URSS, em seu período menos glorioso, ao desconsiderar identidades
nacionais dos países do “campo socialista”, a ponto de relativizar até mesmo
suas soberanias – a doutrina Brejnev teorizava isso pelo nome de “soberania
limitada”. O resultado foi só o reforço de sentimentos nacionais arraigados
contra as imposições de cima, indicando a ocorrência daquele primeiro movimento
protetivo que esbocei acima.
• Pode-se pensar também em situações
homólogas em outros campos
No caso da
raça: o movimento negro norte-americano se dividiu entre tendências que
aspiravam a uma unidade com as lutas de libertação e com a classe operária (os
bons momentos dos Panteras Negras, por exemplo) e tendências que visavam
reforçar a segregação e separatismo, às vezes até em concordância com
“nacionalistas brancos”. Ninguém acha que a Libéria é um exemplo de qualquer
coisa apenas por ter sido fundada por negros nacionalistas, imagino.
Passemos
ao gênero. O movimento feminista se vê confrontado por tendências burguesas,
que utilizam a justa pauta da libertação da mulher até mesmo para justificar
típicas atividades imperialistas, como a invasão militar e bombardeio aéreo de
capitais milenares – é o conhecido exemplo da Hillary Clinton, infame mas
bastante contundente, ou das feministas francesas que fizeram campanhas a favor
de leis discriminatórias contra o “véu” das meninas islâmicas nas escolas.
Graças ao Wikileaks, sabemos também a CIA utilizou o feminismo como arma de
guerra na exportação de sua “democracia” para o Oriente Médio². De fato, apesar
do feminismo ser um movimento de sentido emancipatório que deve ser defendido
contra todas as tradições patriarcais reacionárias, é justo dizer que,
juntamente com o tema da “liberdade sexual”, virou um componente
propagandístico do senso de auto-engrandecimento e superioridade “ocidental”
contra povos tidos como não civilizados.
Nem a
temática de “classe social” está blindada à captura por motivos identitários
reacionários. Afinal de contas, até mesmo o fascismo tinha seus próprios
sindicatos e aparelhos operários. Sabemos muito bem como uma potencial
subjetividade “obreirista”, por exemplo, há muito tempo é um dos desvios tidos
como mais clássicos entre o movimento comunista – é um balanço oficial e
praticamente unânime contra a fase “Terceiro Período” do PCB na segunda metade
dos anos 20. A demagogia contra intelectuais, a reivindicação de uma identidade
operária “pura” contra outros setores sociais potencialmente aliados, o
interesse puramente corporativo e econômico contra temas “políticos”, a recusa
à política “de fora”, todo este estreitamento gremial de visão é uma forma de
evitar qualquer consequência potencialmente universal à ação do movimento
operário, manifesto tanto em versões radicais e anarquistas quanto em versões
“pragmáticas” e tradeunionistas (para falar como Lenin) – não à toa na história
de uma mesmo organização como a CGT, principal central sindical da França,
ambas as inflexões tenham obtido proeminência.
Por fim, o
que falar do indivíduo, esta célula elementar básica da subjetividade e
liberdade, tão celebrada e fetichizada como uma conquista moderna do Ocidente?
Não seria exato dizer que o comunismo é incompatível com o individualismo, já
que um dos motivos principais para lutar contra a sociedade atual decorre
justamente da ausência de liberdades elementares básicas e das incontáveis
possibilidades individuais bloqueadas não só pelos grilhões do capitalismo e
das enormes desigualdades decorrentes dele mas pelas estruturas tradicionais,
familiares e comunitárias milenares que sobrevivem. Quantos intelectuais,
artistas, cientistas, políticos, esportistas, personalidades brilhantes não
perdemos por conta do sistema econômico atual? E, mesmo assim, o uso do Eu
também pode ser um perigo (e frequentemente o é) na vida política: o egoísmo
indiferente às consequências coletivas, o carreirismo selvagem (norma aceita da
vida ordinária de praticamente toda ocupação profissional), a auto-adulação, o
arrivismo ao estilo personagem de romance de Balzac, o desejo de aparecer e
brilhar a qualquer custo etc., não constituem os fenômenos mais basilares da
ideologia dominante? Não foram poucas as organizações políticas a serem
corrompidas por práticas (na maioria das vezes espontâneas e irrefletidas) do
tipo. A defesa enfática da “liberdade” do indivíduo de falar qualquer coisa e
fazer o que der na telha, com efeito, é um componente importante do discurso da
extrema-direita contemporânea, e vimos as consequências desastrosas e mortíferas
disto na pandemia recente.
Então,
qual a conclusão? Permita-me repetir: trata-se, sobretudo, de diferenciar dois
usos das identidades na vida política.
Há o modo
“cada um no seu quadrado”, que pode até defender a coexistência de identidades
diferentes, desde que elas estejam estritamente separadas por protocolos bem
delimitados, mas que sempre abarca o extermínio da alteridade como
potencialidade. É o caso da corrente “etnopluralista” vinda de fascistas mais
atualizados e pós-modernos da Europa, como Alain de Benoist. Reconhecem e
celebram a validade e o mérito da identidade de negros, por exemplo, ao
contrário dos racistas do passado, desde que não imigrem para terras europeias,
fazendo até alianças com intelectuais africanos racialistas e
anti-miscigenação, como Kémi Seba. Nesse caso, o aspecto “defensivo” e
exclusivista subordina o movimento de dilatação da identidade.
O outro
modo, não apenas diferente, como antagônico ao primeiro, enxerga a identidade
como algo a ser atravessado pelo poder do universal. E este caminho envolve um
combate em duas frentes – no fundo, objetivo principal deste texto: nem o
desprezo da esquerda “anti-identitária”, nem celebração de identidades fechadas
e exclusivas sem projeto global. Ambos caminhos, aliás, geralmente movidos por
um mesmo tipo de subjetividade extremamente eleitoreira e de visão curta.
• Sobre o vitimismo contemporâneo
Antes de
encerrar o texto, adicionarei um toque polêmico suplementar a respeito das
consequências que certo uso do tema das identidades de gênero, sexualidade e
etnia produz na cultura política da militância de esquerda.
Em
primeiro lugar, é preciso sublinhar a importância que o tema da “diversidade”
ganhou tanto no ambiente corporativo (só ver o que se designa por trás da sigla
ESG, o modelo de “governança corporativa” da maioria das multinacionais e
bancos) e midiático, acadêmico e institucional, causando pavor entre
reacionários e intensificando seus delírios conspiracionistas contra o
“marxismo cultural”, ideologia “woke”, “globalismo” e outros fantasmas.
Basta
pensar, por exemplo, na Rede Globo. Se há pouco mais de dez anos atrás Ali
Kamel, seu diretor geral de jornalismo por muitos anos, escrevia um livro
panfletário para negar que o Brasil era racista (e argumentar contra as cotas
raciais), hoje, a emissora promove “empoderamento” de minorias e se preocupa
com temáticas de uma classe média mais consciente e sensível às opressões, ao
mesmo tempo que continua apoiando violência policial nas favelas, matança de
palestinos ou austeridade para os pobres. Uma das consequências algo cômicas
deste fenômeno é ver o Luciano Huck, notório símbolo – competindo com Pedro
Bial ou Thiago Leifert – do mauricinho pasteurizado, invariavelmente defendendo
as opiniões mais óbvias e dominantes, compartilhando conteúdo sobre a comunista
negra Angela Davis no ex-Twitter.
Abrem-se,
com isto, inúmeras oportunidades de carreira e ascensão fulminante a
representantes de minorias em busca de sucesso financeiro e fama, de palestras
bem remuneradas a cargos corporativos, passando por educação de burgueses que
não querem mostrar ignorância, falta de educação ou de boa consciência. Para
muitos ricos, ser politicamente correto nesses temas é uma obrigação de
etiqueta, tal como as regras e condutas com os talheres ou na recepção de
visitas, gerando nichos de mercados cada vez mais promissores cada vez que
novas categorias, segmentações e termos da moda são introduzidos. Trata-se de
um problema com o qual organizações terão cada vez mais de lidar: além dos
carreirismos e arrivismos parlamentares, já há muito tempo conhecidos, há mecanismos
cada vez mais sofisticados e capilarizados de cooptação.
Outro
ponto merecedor de atenção diz respeito ao papel que o estatuto de vítima
passou a ganhar na cultura militante. Alega-se frequentemente que o mero fato
de ter sido vítima de algo autoriza desde privilégios excepcionais (como poder
de acusação e julgamento sem direito de defesa) até dádivas epistêmicas
automáticas (uma espécie de sabedoria primitiva suprarracional), decorrentes
meramente da condição de fazer parte de um subconjunto que é ou já foi vítima
de algo.
A matriz
universal desse tipo subjetivo é Israel. A memória das vítimas reais do
Holocausto é frequentemente invocada para autorizar que o país se arrogue no
direito de desrespeitar qualquer direito internacional ou mesmo de ser
meramente criticado (sob a chantagem permanente da acusação leviana e pesada de
antissemitismo), o que seria um direito basilar e ordinário contra qualquer
outro Estado. O estatuto de vítima é brandido (mesmo quando do outro lado,
massacrado, há 10 mil crianças mortas em poucos meses) como licença para uma
colonização militar de uma brutalidade e morticínio ímpares.
A
combinação de vitimismo legitimador de qualquer arbítrio com falta de
responsabilização e senso de impunidade está presente, em escala micro, em boa
parte do ativismo presente nas redes sociais ou meios universitários. As
competições para ver quem é mais oprimido ou sofrido e a legitimação de
qualquer barbaridade – como uma crescente cultura da delação digital
descontrolada – pelo axioma “a vítima tem sempre razão”, produzem um espaço
fértil para charlatões ou oportunistas explorando pânico ou sensacionalismo
moral, a fim de acertos de contas mesquinhos ou pura eliminação de concorrentes
indesejados via ostracismo moral.
Além da
cultura da intriga e da delação, sem qualquer controle pelo ambiente propício à
difusão de rumores – quanto mais escandalosos e “quentes”, melhor –, este
estilo de militância que arroga privilégios de promotor e juiz universais a
quem quer que reivindique o estatuto real ou imaginário de vítima estimula a
impotência subjetiva, o que é precisamente o oposto da militância. O marxismo
se destacou e se destaca não pelo culto ao sofrimento das vítimas (no que as
organizações religiosas e mesmo o meloso telejornalismo humanitário conseguem
fazer muito melhor), mas por transformar os fracos em fortes. A força, a
potência, a violência revolucionária, se preciso, daqueles que o poder e a
sociedade historicamente trataram como fracos e invisíveis faz do marxismo a
primeira doutrina histórica a organizar a capacidade de vitória dos explorados
e oprimidos.
Proponho,
portanto, para além de uma diagonal em relação à disjuntiva esquerda
velha/esquerda “identitária”, uma mudança radical de perspectiva no alvo da
polêmica ideológica. Deve-se mirar sem tréguas no tripleto de carreirismo
pequeno-burguês, defesa de privilégios às vítimas e celebração da impotência
que organiza a ideologia do vitimismo contemporâneo, em vez de uma batalha
imprecisa e com potencialidades reacionárias contra o “identitarismo”.
Obviamente, não se trata de defender o fim da compaixão e empatia destinadas a
quem sofre de abusos e danos reais, mas de entender que uma cultura militante
baseada em denuncismos persecutórios sem controle e valorização de quem sofre
mais não chegará ao lugar que os explorados merecem na História: a vitória total,
o comunismo.
Fonte: Por
Diogo Fagundes, em Outras Palavras
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