Guerra às
drogas: a profecia autorrealizável
Não sei se
as pessoas chegaram a ver aquelas cenas da invasão a uma rede de TV no Equador,
no ar, ao vivo, que teria ocorrido dentro de uma sublevação nacional do crime
organizado. Seja como for, estas cenas foram importantes para criar a comoção
social que hoje o Equador ainda está vivendo. Quando eu vi aquilo,
imediatamente senti que era uma cena fake e já comecei a antever as medidas que
viriam como resposta.
Hoje
alguns órgãos da mídia de esquerda já mostram algumas suspeitas com relação à
pretensa invasão da TV equatoriana, mas, nos primeiros dias ninguém se atreveu
a pôr em dúvida a sua veracidade, nem ninguém questionou a necessidade de
medidas repressivas extremas no país. Isso me despertou, mais uma vez, aquela
forte impressão de como é fácil enganar a população, em geral, quando o assunto
é o tráfico de drogas e me despertou também a reflexão sobre como este tema tem
sido sempre utilizado como um instrumento ideológico dentro das políticas de
manipulação e opressão sociais.
O fato é
que as cenas absurdas da invasão da TV, com toda a cara de uma farsa ridícula,
sem qualquer realismo, serviram como um componente a mais dentro do contexto de
exacerbação da violência criminal no país, justificando a adoção de medidas
excepcionais. E logo vieram as medidas restritivas de direitos, a concentração
de poder no governo e militares e, por fim, o recurso à presença militar dos
EUA dentro do Equador.
Isto
atende às necessidades geopolíticas dos EUA, em um momento de grande
acirramento dos conflitos internacionais e de declínio do poder econômico dos
EUA no mundo. Isto atende também a interesses da família do presidente do
Equador, que é dona da maior exportadora de bananas do país e esta é,
justamente, a principal forma tráfico internacional de cocaína a partir do
Equador, no meio dos carregamentos de bananas. Além disto, parece mesmo que a
imposição da política liberal e de submissão aos EUA já não pode mais ocorrer
sem o recurso a alguma forma de poder de exceção, não constitucional,
neofacista.
Mas é
preciso um motivo para a imposição de medidas de exceção e para se conceder um
salvo conduto para o poder discricionário, fascista. É preciso um certo grau de
descontrole e terror social para tanto. É preciso algo muito grave, um certo
grau de comoção social, que funcione como o gatilho. Agora, recentemente, na
Argentina, a espiral inflacionária é que foi este gatilho. No Equador, foi a
pretensa “sublevação das facções”. Estes foram os gatilhos, nestes dois países.
para a imposição de medidas de exceção, com restrição de direitos, alinhamento
completo aos interesses geopolíticos dos EUA e aumento da repressão social.
Por outro
lado, de certo modo, as massas empobrecidas de todos países submetidos ao
imperialismo estão sempre sob estas condições de descontrole e terror social,
reais e manipulados. Sempre suscetíveis a algum nível de poder discricionário,
violento e abusivo, legal ou ilegal, sempre submetidas a situações de exceção
na sua vida cotidiana e, como país, sempre sob o risco de recaimento no
fascismo, na ditadura política. A mentira, a manipulação e a farsa, por um
lado, assim como a violência abusiva, ilegal, bárbara, inconstitucional,
fascista, por outro, são estruturais para os sistemas de opressão social nas
nossas sociedades.
A
imposição do medo e do terror à população é parte muito grande destas
estruturas de poder e é evidente o papel que a manipulação das informações tem
aí. Problemas verdadeiros e realmente importantes, como são os casos graves de
dependência e abuso de drogas, as crises econômicas, e a violência criminal,
por exemplo, recebem massivas doses de manipulação ideológica midiática, até
estes problemas e suas soluções, falseados e distorcidos, se tornarem
instrumentos para a opressão social.
A política
contra as drogas, a política antidrogas, a guerra às drogas, desde sempre,
cumpriu, e continua cumprindo, com alta efetividade, um papel muito importante
nestas estruturas. A política antidrogas que prevalece, aqui no Brasil e na
América Latina em geral, é, na realidade, uma política de violência e controle
social, travestida de defesa da segurança e da saúde pública. A guerra às
drogas é realmente uma parte fundamental da ideologia e práticas fascistas que
sempre estiveram disseminadas e são fortemente arraigadas nas nossas
sociedades.
Poucos são
os recursos ideológicos e morais mais adequados do que a questão do
envolvimento com drogas para cumprirem este papel. Aí não importa a realidade,
nem o conhecimento, pois o drama e a manipulação emocionais imperam neste
campo. As mentiras, as farsas, as manipulações grosseiras são uma marca
característica, sempre presentes na ideologia antidrogas. Estão presentes na
falsificação dos dados e das análises epidemiológicas; estão presentes na
justificação do uso de tortura e das operações policiais assassinas e de
controle ou limpeza social e étnicas; estão presentes na utilização
predominante de recursos religiosos e policiais na abordagem “terapêutica” dos
casos e das situações de drogadicção; assim como estão presentes na montagem de
verdadeiras farsas cinematográficas e na imposição de medidas de exceção e
controle militar sobre as populações. Praticamente qualquer mentira que se
contar dentro da ideologia de guerra contra as drogas é facilmente aceita e não
pode ser alvo de questionamento. Quem o faz, tende a ser prontamente e
agressivamente anatemizado, por ser contrário ao bem comum, às famílias, à
dignidade e à saúde das pessoas. Ou seja, é visto como um inimigo da sociedade
e da família.
Os riscos
e os problemas verdadeiros que podem ocorrer com alguns tipos de usos de drogas
e as possíveis soluções para estes problemas são muito distorcidos e, muitas
vezes. são completamente invertidos, até resultarem, enfim, em instrumentos
ideológicos valiosos para a opressão violenta das pessoas envolvidas e das
populações empobrecidas nas periferias do império, em geral.
A
ideologia que prevalece nesta política de guerra às drogas é que elas estão
sempre associadas à criminalidade, à degradação social e à violência. E que
elas devem ser proibidas e banidas da vida social porque sempre levariam à
dependência, à degeneração moral e ao banditismo. Infelizmente, esta ideologia
contém algo de uma terrível profecia autorrealizável. Se a sociedade segrega as
pessoas, se você as discrimina, se você considera aquilo que para elas é prazer
ou prática social como algo perverso, doentio, imoral, proibido, ilegal e
criminoso, é bastante razoável se esperar que muitas delas se tornem,
justamente, aquilo que a sociedade imputa a elas. Não necessariamente em
consequência das drogas, mas pela própria criminalização e segregação social.
Existem
níveis muito diferentes de risco psíquico e social nas mais diversas formas de
uso das mais diversas drogas, mas, também, há aí toda uma imensa zona cinzenta
em que conflitos interpessoais são resolvidos pela imputação de crime ou doença
a quem se envolve com drogas. Antes mesmo de serem julgados, condenados, ou,
presos por isto, mães e pais podem facilmente ser afastados de seus filhos,
jovens podem ser retirados do seu convívio social, ter a liberdade restringida,
serem submetidos à “contenção química”, pessoas podem perder seus empregos,
serem excluídas da família etc., simplesmente pela acusação de envolvimento com
drogas. Sejam quais forem os reais motivos e conflitos nestas situações, a
acusação de envolvimento com drogas é suficiente para resolver a situação. Esta
acusação é, hoje, na nossa sociedade, um dos principais recursos ideológicos de
coação pessoal. Um recurso ideológico repressivo com forte consonância moral,
religiosa, médica, policial, judicial e penal na nossa sociedade.
De forma
paradoxal, mas, nada surpreendente, entre os maiores combatentes contra as
drogas, sejam políticos, ou promotores e juízes, delegados e policiais,
religiosos e influencers ou pais e mães de família respeitáveis, grande parte é
drogada ou traficante; são, produtores, são vendedores e ou são usuários e
dependentes das drogas, que eles dizem combater. Esta farsa é uma das faces
mais perversas da guerra contra as drogas. Grande parte dos principais
combatentes nesta guerra estão jogando nos dois lados, ganham dinheiro e
sustentam a cadeia de produção e venda das drogas e, em público, são inflamados
guerreiros da causa da proteção da família e da sociedade contra as drogas.
Tudo
hipocrisia e mentira. Tudo manipulação ideológica. O sistema é montado de tal
modo que a violência contra certos grupos sociais seja sempre justificada, ao
passo que, na outra ponta, lucra-se muito com a criminalização das drogas.
Os maiores
combatentes contra as drogas estão com as mãos nos microfones que escandalizam,
estão com as mãos nas canetas que penalizam e nas armas que matam, mas estão
com as mãos, também, na grana que as drogas geram. É simplesmente impossível
haver crime organizado, como é o tráfico de drogas, sem a participação, sem o
envolvimento direto, de parcelas significativas do aparato repressivo, das
polícias, da justiça, dos políticos e do mundo religioso. Todos envolvidos e
ganhando muita grana, mesmo, com as drogas proibidas. Aqueles que as combatem
são também os que produzem, distribuem, lavam dinheiro e lucram com o tráfico.
O sentido
da criminalização e da guerra contra as drogas não pode ser, não é, portanto, a
redução ou a eliminação das drogas. As mortes e as prisões de milhares, de
milhões de jovens brasileiros, que se repete aqui, sem fim, todos os anos, é um
ciclo necropolítico de destruição e autodestruição imposto contra a nossa
juventude, um ciclo perverso de destruição de potencialidades, de capacidades,
de forças criativas e transformadoras. Feito pelo mesmo sistema que lucra com
as drogas.
Fonte: Por
Paulo Fleury Teixeira, em Outras Palavras
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