Governo
pede desculpa a indígenas, mas retoma ferrovia da soja na Amazônia
Com um
pedido oficial de desculpas a povos indígenas,
o governo federal voltou à carga para destravar a polêmica Ferrogrão – sonho
antigo dos produtores de soja e milho do centro-oeste e um dos mais ambiciosos
projetos de logística do país. Totalizando 933 km de extensão, a ferrovia teria
início no município de Sinop (MT), base da produção nacional de grãos, e
cruzaria a Amazônia até chegar ao porto de Itaituba (PA), no rio
Tapajós.
A
reportagem teve acesso a um “pedido de retratação” que a Agência Nacional de
Transportes Terrestres (ANTT), órgão federal responsável por gerenciar as
concessões do setor logístico, apresentou em uma reunião realizada nesta
quarta-feira (7) em Brasília (DF), com lideranças indígenas do Instituto
Kabu.
A
organização do povo Kayapó Mekrãgnotí atua na defesa de indígenas das
proximidades da rodovia BR-163, principal via de escoamento do agro no
centro-oeste. A Ferrogrão seria construída paralelamente à estrada.
Segundo a
ANTT, a agência quer garantir “o processo de consulta prévia, livre e
informada, conforme previsto na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional
do Trabalho), a qual, infelizmente, não foi devidamente observada”.
Com o
reposicionamento, o governo deixou claro que pretende levar adiante o projeto,
ideia criada há mais de uma década, ainda no primeiro governo da então
presidente Dilma Rousseff (PT), pelas grandes tradings de grãos que
atuam no país: Amaggi, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus.
Não por
acaso, o projeto há anos figura entre as prioridades da Associação dos
Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja), instituição já
presidida, no Mato Grosso, pelo atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro.
“Esse
projeto é de interesse nacional e deve ser realizado de maneira sustentável,
considerando as melhores decisões socioambientais para a região e para todas as
comunidades que a habitam”, afirma a ANTT, em documento assinado em 26 de
janeiro. “Uma vez concluída, a Ferrogrão terá uma capacidade de transporte
significativa, proporcionando competitividade no escoamento da produção pelo
Arco Norte.”
Liderança
da aldeia Baú e responsável pelas relações públicas do Instituto Kabu, Mydjere
Kayapó afirmou à reportagem que a reunião e a retratação não significam a
aceitação do projeto. “Não é por causa de uma carta de desculpas que diremos
sim para a Ferrogrão. Isso não deve só a mim, mas a todos os indígenas que
sempre foram desrespeitados nesse processo”, disse à Repórter Brasil.
A
tentativa de aproximação do governo com os indígenas procura vencer uma etapa
paralisada em 2021, quando o processo de licenciamento da obra – estimada hoje
em aproximadamente R$ 30 bilhões – foi paralisado por ordem do STF.
Naquela
ocasião, o ministro Alexandre de Moraes deu uma cautelar contra o projeto, ao
atender uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) apresentada pelo PSOL. A
legenda questionava a redução dos limites do Parque Nacional Jamanxim, uma
unidade de conservação ambiental no Pará, para a construção da Ferrogrão. Por
decisão da própria corte, é proibido alterar limites de unidades para passagem
de obras.
·
Indígenas não ouvidos
O pedido
de desculpas faz referência a uma sessão pública do empreendimento realizada em
12 de dezembro de 2017, em Brasília, na gestão do então presidente Michel
Temer, para tratar do licenciamento da obra. Na ocasião, os indígenas não foram
ouvidos. No encontro desta quarta-feira, representantes do Ministério dos
Transportes e da ANTT se reuniram em Brasília com as lideranças indígenas, para
oficializar a retratação.
Na
prática, porém, o encontro, que teve participação da Confederação Nacional da
Agricultura (CNA), simboliza mais do que um mero pedido de perdão. Em defesa da
ferrovia, a agência reguladora destaca, inclusive, o apelo ambiental do
projeto, apesar das preocupações de ativistas com os impactos sobre o
ecossistema local.
“Este
empreendimento contribuirá para o desenvolvimento nacional, alinhando-se a
projetos estratégicos de infraestrutura de transportes, ao mesmo tempo em que
respeitará o meio ambiente, promovendo a redução das emissões de CO² na
atmosfera, em conformidade com a agenda ESG (ambiental, social e governança) do
governo federal e os padrões estabelecidos pela Climate Bond Initiative (CBI)
para certificação de iniciativas sustentáveis.”
Apesar de
o Brasil ser signatário da Convenção 169 da OIT, o processo de consulta prévia
nunca foi efetivamente respeitado no país. O que está em jogo, porém, é saber
se os indígenas teriam, ou não, poder de veto ao projeto, a partir do
diagnóstico de seus impactos.
·
Busca de diálogo
Durante o
encontro com as lideranças indígenas, o subsecretário de sustentabilidade do
Ministério dos Transportes, Cloves Eduardo Benevides, disse que não está
definido se a obra será bancada por recursos públicos, se será uma concessão,
ou uma Parceria Público-Privada (PPP). “Não há um desenho final, o que há é um
debate público”, comentou.
O plano
ferroviário retomado por Lula contraria frontalmente seu maior aliado quando o
assunto é a representação dos povos indígenas: o cacique Raoni Metuktire. O
líder indígena de 93 anos, que subiu a rampa do Planalto ao lado do presidente
na cerimônia de sua posse, em janeiro de 2023, vive na região a ser cortada
pela Ferrogrão.
Pesquisadores
da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) já demonstraram que a criação de
um terminal de cargas da Ferrogrão em Matupá, no norte do Mato Grosso, pode
partir ao meio as terras indígenas do Xingu. É nesse ponto que a Ferrogrão
afeta a Terra Indígenea Capoto Jarina, onde mora o cacique Raoni. A rodovia
MT-232 atravessa trechos da Capoto Jarina e também do Parque Indígena do Xingu,
que abriga 16 povos indígenas.
Mydjere
Kayapó afirmou que seu povo tem um protocolo de consulta prévia. “Nós sabemos
que, mesmo se dissermos não, eles estarão lá para construir. Então, queremos
atuar para que não aconteça o que vimos em Belo Monte”, comentou, referindo-se
ao conturbado processo de licenciamento da hidrelétrica erguida no rio Xingu,
no Pará.
“Não somos
contra o desenvolvimento do Brasil, mas não aceitaremos que nosso direito seja
atropelado e ignorado. Eles precisam fazer novos estudos da ferrovia e, antes
de tudo, nos ouvir”, defendeu a liderança.
Presidente
da Associação Indígena Apiaká Iakunda’Y da comunidade Pimental, em Trairão
(PA), Irleusa Robertino disse à reportagem que o povo indígena espera que as
audiências sejam realizadas nas aldeias. “Não descansamos para fazer parte
dessa discussão e queremos defender os direitos de nosso povo. Essas reuniões
devem acontecer nos municípios diretamente afetados. Estamos solicitando isso”,
comentou. “Apresentamos os protocolos de consulta dos povos Kayapó, Munduruku e
Apiaká. Queremos ser ouvidos.”
Brent
Millikan, membro da secretaria executiva da organização GT Infra e Justiça
Ambiental, que acompanhou a reunião com os indígenas, diz que o saldo é
positivo. “Ao menos, vemos agora um espírito democrático de abrir o tema para o
debate, em vez da tentativa de atropelar e fingir que havia consulta”,
comentou.
Em sua
avaliação, as polêmicas da Ferrogrão expõem o contexto emblemático de como é
feito o planejamento de grandes obras em territórios sensíveis. “São problemas
crônicos. É preciso aprimorar o tema da viabilidade econômica e socioambiental
do projeto, incluindo temas como o impacto cumulativo com outros
empreendimentos, como a BR-163, a hidrovia do Tapajós, até considerando a
possibilidade de não fazer a ferrovia”, disse.
·
Disputa bilionária
Fora da
arena ambiental, a Ferrogrão também divide interesses bilionários de empresas
do setor ferroviário. Empresas como a VLI, braço logístico da mineradora Vale,
querem que o projeto avance, para consolidar suas operações de transporte rumo
ao “arco Norte” da Amazônia. Há, no entanto, fortes oponentes a essa ideia.
A Rumo,
empresa do grupo Cosan que administra ferrovias nas regiões Centro-Oeste e
Sudeste, assumiu bilhões de reais em novos investimentos na malha que já
controla e teme que a nova abertura logística impacte seus negócios. Por isso,
atua nos bastidores com posição contrária ao empreendimento.
Representantes
de caminhoneiros também atuam contra o projeto, por temerem que o transporte de
carga que hoje fazem pela BR-163 migre para os trilhos da ferrovia e
inviabilize o modal rodoviário.
No ano
passado, a Ferrogrão foi incorporada ao PAC 3 e passou a ser alvo de uma
“análise dedicada”, conforme mencionou o chefe da Casa Civil, ministro Rui
Costa. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, já declarou, porém, que o
projeto depende da comprovação de sua viabilidade ambiental.
Fonte:
Reporter Brasl
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