Em
território indígena recuperado, condições de vida melhoram, mas fome persiste
Em 7 de
novembro do ano passado, a morte da líder indígena Damiana Cavanha, aos 84
anos, significou o fim da retomada Kayowá Apyka’i, em Dourados, no Mato Grosso
do Sul. Não se trata de uma figura de linguagem. A sua família era, no ano
passado, a única que morava no local, agora vazio. Seus filhos optaram por
enterrar a mãe fora do território sagrado pelo qual ela lutou desde o início
dos anos 1990 e onde ela havia enterrado boa parte dos parentes, inclusive
crianças mortas nos últimos anos.
O motivo
de seu corpo não permanecer lá é o rastro de sangue que acompanha a presença
indígena no local durante mais de 30 anos. Ao todo, 11 indígenas foram mortos
violentamente no território desde 2002. Ilário de Souza, marido de Damiana, foi
um deles, atropelado por um fazendeiro em 2002. O atropelamento teria sido
proposital, segundo os indígenas, que afirmam que assim como as armas de
fogo, as caminhonetes dos fazendeiros são máquinas de extermínio. O fim da
retomada pode não ser definitivo. Outros integrantes da família podem em algum
momento fazer valer suas memórias da região ou dos mapas do tekoha, como os
guaranis-kaiowás se referem ao território, para iniciar uma nova retomada. São
conhecidas como retomadas as áreas de território ancestral para as quais os
indígenas retornam depois de terem sido expulsos.
Os mapas –
como lembra Nayara Côrtes Rocha, secretária-geral da Fian Brasil (Organização
Pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas) – eram desenhados em
cartazes que Damiana mostrava aos visitantes, uma forma de mostrar como
era o território em tempos passados, antes da violência do agronegócio e a
omissão do estado lhes tomarem as terras.
Para
Nayara, a história de Damiana é um símbolo não só na luta dos guaranis por seus
territórios, mas da necessidade de demarcação urgente das áreas. Ela afirma que
esta é uma das principais conclusões do relatório Insegurança Alimentar e
Nutricional nas Retomadas Guarani e Kayowá que a Fian lança hoje (07/02) às
19h, com transmissão ao vivo.
O estudo é
uma atualização de um levantamento que a entidade havia feito em 2013, com três
comunidades (Guaiviry, Kurusu Amba e Ypo’i), e lançado em 2016. Além de
atualizar os dados, o relatório atual estudou cinco comunidades (foram
acrescentadas Apyka’i e Ñande Ru Marangatu). Com exceção da Ñande Ru Marangatu,
a pesquisa foi feita com todos os moradores de cada uma das comunidades.
O trabalho
aponta uma melhora nas condições de vida dos indígenas dentro das retomadas nos
últimos dez anos, mesmo com as condições precárias a que estão submetidos,
principalmente em razão da ausência ou omissão do poder público e da violências
cometidas por fazendeiros, capangas e empresas de segurança contra eles. Apesar
do resultado comparativo ser positivo, ainda é alto o número de famílias em
insegurança alimentar, inclusive grave.
·
Ação contra o Estado brasileiro
A
atualização e a inclusão de novas comunidades servem para reforçar a ação
contra o Estado Brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em
razão da lentidão dos sucessivos governos em concluir a demarcação das terras,
iniciada em 2016. A denúncia internacional é uma forma de pressionar pela
solução do caso. O advogado Adelar Cupsinski, da equipe jurídica que defende os
indígenas, destaca que o processo de expulsão dos indígenas se estende desde a
Guerra do Paraguai, no século 19, e inclui o confinamento dos 11 povos que
vivem no estado em reservas desde o início do século passado. O Mato Grosso do
Sul é hoje o terceiro estado com maior população indígena. A presença não
significou aceitação ao longo dos anos e os povos originários são alvo de
diversas formas de discriminação.
Adelar diz
que o objetivo da ação é a responsabilização do Brasil. Ele foi um dos autores
da ação que levou à condenação do país por violar direitos à propriedade
coletiva e à garantia e proteção judicial dos indígenas Xukuru do Ororubá, de
Pernambuco. O caso foi levado à comissão em 2002, que levou a situação para a
Corte Interamericana em 2016. A sentença, publicada dois anos depois,
determinou que o Brasil deveria garantir o direito de propriedade coletiva do
povo Xukuru sobre seu território tradicional, sem interferência ou dano por
parte de terceiros ou agentes do Estado, a publicação da sentença nos órgãos
oficiais brasileiros e uma indenização por dano imaterial no valor de um milhão
de dólares americanos a ser paga diretamente aos indígenas. Em 2020 foi
realizado um acordo entre a União e a Associação comunitária do povo Xukuru do
Ororubá para possibilitar o cumprimento da sentença.
O advogado
vê semelhanças nos dois casos pela omissão do poder público em resolver a
demarcação de terras e em evitar a violência e as ameaças contra os povos. Os
assassinatos de líderes indígenas são um ponto em comum. Em Guaiviry, o líder
assassinado foi o rezador Nísio Gomes, em 2011. Seu corpo jamais foi
encontrado. Xurite e Ortiz Lopes foram os líderes assassinados em Kurusu Ambá,
Genivaldo e Rolindo Vera e Teodoro Ticarte em Ypo’i, Marçal de Souza, Dorvalino
Rocha e Simeão Fernandes Vilhalba em Ñande Ru Marangatu.
Ø
Após apoio a Lula nas eleições, Apib
promete aumentar cobranças ao governo
Após
quatro anos de política anti-indígena do governo Bolsonaro, a Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib) viu um governo Lula (PT) bem mais aberto ao
diálogo e genuinamente disposto a implementar avanços em 2023.
A gestão
petista, porém, esbarra em si mesma, diante das contradições políticas de um
governo de frente ampla, conforme avaliou o coordenador da Apib, Kleber
Karipuna, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
Neste Dia
Nacional de Luta dos Povos Indígenas, data que marca a morte do guerreiro
guarani Sepé Tiaraju, em 7 de fevereiro de 1756, Karipuna reitera o apoio ao
governo, mas pontua que as cobranças também serão reforçadas.
“Apoiamos
esse governo [Lula], mas temos plena consciência de que é um governo de
composição e não é 100% alinhado às nossas bandeiras. Há ministros que se opõem
a determinadas pautas indígenas. Seguiremos no diálogo, mas o cenário será de
maior cobrança”, avaliou o líder da maior organização indígena do país.
À lista de
avanços, o coordenador da Apib acrescentou a aprovação da Lei Orçamentária que
destinou verbas para a continuidade da ação da Funai – nem mesmo os recursos
mínimos estavam garantidos sob Bolsonaro – e também a posição de Lula contra o
marco temporal.
Por outro
lado, Kleber Karipuna citou a dificuldade de concluir a expulsão de invasores
da Terra Indígena Yanomami, que enfrenta uma crise humanitária provocada pelo
garimpo ilegal, além da demora na demarcação das terras apontadas como viáveis
pela transição de governo.
“O
ex-ministro Flávio Dino saiu [do Ministério da Justiça] sem homologar nenhuma
Portaria Declaratória de Terra Indígena, mesmo com a Funai e o Ministério dos
Povos Indígenas encaminhando mais de 30 processos para o Ministério da
Justiça”, queixou-se.
A morte da
líder indígena Nega Pataxó, em janeiro deste ano da Bahia, expôs uma suposta
milícia rural que se espalha rapidamente pelo país com apoio de políticos,
empresários e participação de PMs. Kleber Karipuna criticou o governador da
Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), por não pedir o apoio da Força Nacional.
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Confira a entrevista na íntegra:
·
Qual leitura da Apib
sobre o final do governo Bolsonaro e a entrada da gestão Lula?
Kleber
Karipuna: Estamos em um cenário político após
quatro anos de muita batalha e resistência. Com o governo anterior, vivíamos um
cenário de muitas ameaças aos direitos dos povos indígenas e à política
indigenista. Muitas dessas ameaças não foram completamente sanadas e ainda
continuam permeando, mas sem dúvida, o cenário é melhor, principalmente no
diálogo com o novo governo federal brasileiro.
Passamos
2023 praticamente todo lutando contra o marco temporal que tramitava tanto no
julgamento no Supremo Tribunal Federal, mas também no Congresso. O ano passado
finalizou com a aprovação e promulgação da lei 14.701, a lei do marco temporal,
que nos traz agora para esse ano de 2024, um novo cenário de embate com o
Legislativo brasileiro, mas também no âmbito do Judiciário.
A questão
do marco temporal vem causando seus efeitos na prática contra os povos
indígenas. Estamos vivendo um cenário de enfrentamentos no Legislativo e no
Judiciário, pois as ameaças ainda permeiam a política indigenista brasileira,
impedindo, por exemplo, o governo atual de avançar nas políticas de demarcação
e proteção das terras indígenas.
Outras
medidas estão tramitando no Congresso brasileiro, como a PEC 48, que tenta
trazer a questão do marco temporal para dentro da Constituição brasileira, e a
PEC 59, que tenta mudar a prerrogativa de demarcação das terras indígenas do
executivo para o Legislativo. Isso pode decretar o fim da demarcação das terras
indígenas e até permitir a revisão de terras indígenas já homologadas.
Esse é um
cenário que, infelizmente, nos coloca em um dia de luta e do movimento
indígena. O movimento indígena está trabalhando em medidas, como a Ação Direta
de Inconstitucionalidade, também no âmbito do Judiciário e político, para
garantir as políticas públicas e a efetividade dos direitos constitucionais dos
povos indígenas.
·
Lideranças indígenas
têm manifestado crescente insatisfação pela falta de avanço em pautas que
dependem do Executivo, como a demarcação de terras. Vocês enxerga um cenário no
qual a Apib precise romper com o governo?
Foi mais
do que necessário o movimento indígena brasileiro estar junto no processo de
candidatura do então candidato Lula para as eleições, pois era o único projeto
político de país viável para nós. Garantimos uma grande maioria no apoio dos
povos indígenas do Brasil para a candidatura do presidente Lula e estivemos na
construção da proposta de governo, apoiando todo o debate sobre a política
indigenista, inclusive trabalhando a ideia da criação do Ministério dos Povos
Indígenas. No entanto, tínhamos também um cenário de possíveis restrições
desses avanços que poderiam ser comprometedores.
Temos
plena consciência de que o governo atual é um governo de composição e não é
100% alinhado às nossas bandeiras de luta. Existem ministros que se opõem a
determinadas pautas indígenas. No ano passado, fizemos um diálogo para entender
a conjuntura de 2023, com o governo tendo que se apropriar de várias
informações, algumas das quais foram negadas durante a transição de governo.
Entendemos
que era um momento de reconstrução, com o Ministério dos Povos Indígenas ainda
se estruturando, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas ainda em processo de
retomada, com orçamento muito pequeno e equipe reduzida. A saúde indígena
enfrentou uma crise que continua sendo problemática e precisa de uma resposta
mais urgente do governo federal.
Para este
ano, 2024, com um novo Plano Plurianual (PPA) e uma Lei Orçamentária já
aprovada com orçamento novo, começamos a entender que precisamos cobrar do
governo mais efetividade em algumas pautas, e distribuir a cobrança para outros
ministérios, não só o dos Povos Indígenas.
Vamos
manter o diálogo com o governo, que é muito melhor do que o que vivemos nos
quatro anos anteriores. No entanto, será um cenário de maior cobrança, pois
estamos no segundo ano do governo, com um novo Plano Plurianual (PPA) e ações
pensadas por este governo para serem implementadas. Precisamos tirar isso do
papel.
Há um
cenário de embate, inclusive com alguns atores dentro do governo, que estão
constantemente tentando paralisar uma das principais pautas do movimento
indígena, que é a demarcação das terras indígenas.
E por que
as demarcações não avançam?
Por
exemplo, o ex-ministro Flávio Dino saiu [do Ministério da Justiça] sem
homologar nenhuma Portaria Declaratória de Terra Indígena, mesmo com a Funai e
o Ministério dos Povos Indígenas encaminhando mais de 30 processos para o
Ministério da Justiça.
Agora,
essa missão está com o ministro Lewandowski. Estamos planejando fazer agendas
com este e outros ministérios afins, para que o movimento indígena não espere
apenas do Ministério dos Povos Indígenas para fazer essas articulações.
Queremos dar continuidade a esse processo e exercer uma maior pressão, pois não
é justo que o governo jogue toda a responsabilidade no Ministério dos Povos
Indígenas.
Enfim,
nosso entendimento é que vamos nos portar neste ano ajudando o Ministério dos
Povos Indígenas, a Funai, e as Secretarias Especiais de Saúde Indígena (Sesai)
a ter uma maior incidência de cobrança junto a outras pastas ministeriais e
outras autarquias para avançar na política indigenista do estado brasileiro,
neste cenário atual de conjuntura interna do governo, com pessoas que remam
contra a maré.
·
A expulsão de
invasores das terras indígenas têm ocorrido de forma satisfatória?
No ano
passado, vivemos o processo de desintrusão da Terra Indígena Apyterewa. Tivemos
problemas sérios com invasores tentando confrontar as forças de segurança no
processo de desintrusão. Políticos do estado do Pará tentaram a todo momento
fazer interlocução com o governo federal e com o Supremo Tribunal Federal para
tentar paralisar o processo de desintrusão.
Esse é um
caso, mas podemos falar de outras terras, como Munduruku, Kayapó e a própria
Yanomami, que ainda precisam ser desintrusadas [liberada dos invasores]
completamente. Este será um cenário de embate político e também dentro do
governo para trabalhar por um melhor orçamento que avance nessa pauta.
·
Após o assassinato de
Nega Pataxó, ficou explícita a atuação de uma suposta milícia rural na Bahia
cercada de apoio de políticos, empresários e PMs. Como a Apib pretende evitar
que isso se espalhe ainda mais pelo país?
De fato, a
Apib já vem atuando em situações específicas na Bahia e em outras terras,
inclusive no âmbito do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Já havíamos
alertado ao governo federal que intercedesse e dialogasse com o governador do
estado [da Bahia] para que pudessem interceder com apoio da Força Nacional de
Segurança.
No
entanto, o governador [Jerônimo Rodrigues do PT] sempre negou esse apoio,
sempre com o discurso de que a Polícia Militar do estado da Bahia daria conta
da situação. Porém, o que vemos é que a postura da PM não é de proteção dos
povos indígenas, pelo contrário, é de abertura para a entrada dos invasores,
agredindo, ameaçando e atirando contra os indígenas na região.
Diante
dessa situação, a A Apib atuou imediatamente, acionando os órgãos federais e
exigindo que a Força Nacional seja a força de segurança que entre na região
para dar segurança aos indígenas, pois não confiamos mais na Polícia Militar da
Bahia.
Entramos
com uma representação criminal contra o grupo intitulado “Invasão Zero”, que
tem CNPJ, pessoas à frente e uma frente parlamentar criada no âmbito do
parlamento brasileiro. Essa é uma afronta que o parlamento brasileiro vem
explicitamente instalando de ódio contra os povos indígenas, falando
publicamente que não vai permitir nenhuma ocupação, e que vão agir da forma que
for necessário, inclusive armados, como foi o caso agora, assassinando uma
liderança do povo Pataxó. Entramos com essa representação criminal e vamos
avançar nesse processo contra esse grupo.
Fonte: O
Joio e O Trigo/Brasil de Fato
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