sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Em território indígena recuperado, condições de vida melhoram, mas fome persiste

Em 7 de novembro do ano passado, a morte da líder indígena Damiana Cavanha, aos 84 anos, significou o fim da retomada Kayowá Apyka’i, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Não se trata de uma figura de linguagem. A sua família era, no ano passado, a única que morava no local, agora vazio. Seus filhos optaram por enterrar a mãe fora do território sagrado pelo qual ela lutou desde o início dos anos 1990 e onde ela havia enterrado boa parte dos parentes, inclusive crianças mortas nos últimos anos.

O motivo de seu corpo não permanecer lá é o rastro de sangue que acompanha a presença indígena no local durante mais de 30 anos. Ao todo, 11 indígenas foram mortos violentamente no território desde 2002. Ilário de Souza, marido de Damiana, foi um deles, atropelado por um fazendeiro em 2002. O atropelamento teria sido proposital, segundo os indígenas, que afirmam que assim como as armas de fogo, as caminhonetes dos fazendeiros são máquinas de extermínio. O fim da retomada pode não ser definitivo. Outros integrantes da família podem em algum momento fazer valer suas memórias da região ou dos mapas do tekoha, como os guaranis-kaiowás se referem ao território, para iniciar uma nova retomada. São conhecidas como retomadas as áreas de território ancestral para as quais os indígenas retornam depois de terem sido expulsos. 

Os mapas – como lembra Nayara Côrtes Rocha, secretária-geral da Fian Brasil (Organização Pelo Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas) – eram desenhados em cartazes que Damiana mostrava aos visitantes, uma forma de mostrar como era o território em tempos passados, antes da violência do agronegócio e a omissão do estado lhes tomarem as terras.

Para Nayara, a história de Damiana é um símbolo não só na luta dos guaranis por seus territórios, mas da necessidade de demarcação urgente das áreas. Ela afirma que esta é uma das principais conclusões do relatório Insegurança Alimentar e Nutricional nas Retomadas Guarani e Kayowá que a Fian lança hoje (07/02) às 19h, com transmissão ao vivo.

O estudo é uma atualização de um levantamento que a entidade havia feito em 2013, com três comunidades (Guaiviry, Kurusu Amba e Ypo’i), e lançado em 2016. Além de atualizar os dados, o relatório atual estudou cinco comunidades (foram acrescentadas Apyka’i e Ñande Ru Marangatu). Com exceção da Ñande Ru Marangatu, a pesquisa foi feita com todos os moradores de cada uma das comunidades.

O trabalho aponta uma melhora nas condições de vida dos indígenas dentro das retomadas nos últimos dez anos, mesmo com as condições precárias a que estão submetidos, principalmente em razão da ausência ou omissão do poder público e da violências cometidas por fazendeiros, capangas e empresas de segurança contra eles. Apesar do resultado comparativo ser positivo, ainda é alto o número de famílias em insegurança alimentar, inclusive grave.

·        Ação contra o Estado brasileiro

A atualização e a inclusão de novas comunidades servem para reforçar a ação contra o Estado Brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em razão da lentidão dos sucessivos governos em concluir a demarcação das terras, iniciada em 2016. A denúncia internacional é uma forma de pressionar pela solução do caso. O advogado Adelar Cupsinski, da equipe jurídica que defende os indígenas, destaca que o processo de expulsão dos indígenas se estende desde a Guerra do Paraguai, no século 19, e inclui o confinamento dos 11 povos que vivem no estado em reservas desde o início do século passado. O Mato Grosso do Sul é hoje o terceiro estado com maior população indígena. A presença não significou aceitação ao longo dos anos e os povos originários são alvo de diversas formas de discriminação.

Adelar diz que o objetivo da ação é a responsabilização do Brasil. Ele foi um dos autores da ação que levou à condenação do país por violar direitos à propriedade coletiva e à garantia e proteção judicial dos indígenas Xukuru do Ororubá, de Pernambuco. O caso foi levado à comissão em 2002, que levou a situação para a Corte Interamericana em 2016. A sentença, publicada dois anos depois, determinou que o Brasil deveria garantir o direito de propriedade coletiva do povo Xukuru sobre seu território tradicional, sem interferência ou dano por parte de terceiros ou agentes do Estado, a publicação da sentença nos órgãos oficiais brasileiros e uma indenização por dano imaterial no valor de um milhão de dólares americanos a ser paga diretamente aos indígenas. Em 2020 foi realizado um acordo entre a União e a Associação comunitária do povo Xukuru do Ororubá para possibilitar o cumprimento da sentença.

O advogado vê semelhanças nos dois casos pela omissão do poder público em resolver a demarcação de terras e em evitar a violência e as ameaças contra os povos. Os assassinatos de líderes indígenas são um ponto em comum. Em Guaiviry, o líder assassinado foi o rezador Nísio Gomes, em 2011. Seu corpo jamais foi encontrado. Xurite e Ortiz Lopes foram os líderes assassinados em Kurusu Ambá, Genivaldo e Rolindo Vera e Teodoro Ticarte em Ypo’i, Marçal de Souza, Dorvalino Rocha e Simeão Fernandes Vilhalba em Ñande Ru Marangatu.

 

Ø  Após apoio a Lula nas eleições, Apib promete aumentar cobranças ao governo

 

Após quatro anos de política anti-indígena do governo Bolsonaro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) viu um governo Lula (PT) bem mais aberto ao diálogo e genuinamente disposto a implementar avanços em 2023.

A gestão petista, porém, esbarra em si mesma, diante das contradições políticas de um governo de frente ampla, conforme avaliou o coordenador da Apib, Kleber Karipuna, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.

Neste Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, data que marca a morte do guerreiro guarani Sepé Tiaraju, em 7 de fevereiro de 1756, Karipuna reitera o apoio ao governo, mas pontua que as cobranças também serão reforçadas.

“Apoiamos esse governo [Lula], mas temos plena consciência de que é um governo de composição e não é 100% alinhado às nossas bandeiras. Há ministros que se opõem a determinadas pautas indígenas. Seguiremos no diálogo, mas o cenário será de maior cobrança”, avaliou o líder da maior organização indígena do país.

À lista de avanços, o coordenador da Apib acrescentou a aprovação da Lei Orçamentária que destinou verbas para a continuidade da ação da Funai – nem mesmo os recursos mínimos estavam garantidos sob Bolsonaro – e também a posição de Lula contra o marco temporal.

Por outro lado, Kleber Karipuna citou a dificuldade de concluir a expulsão de invasores da Terra Indígena Yanomami, que enfrenta uma crise humanitária provocada pelo garimpo ilegal, além da demora na demarcação das terras apontadas como viáveis pela transição de governo.

“O ex-ministro Flávio Dino saiu [do Ministério da Justiça] sem homologar nenhuma Portaria Declaratória de Terra Indígena, mesmo com a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas encaminhando mais de 30 processos para o Ministério da Justiça”, queixou-se.

A morte da líder indígena Nega Pataxó, em janeiro deste ano da Bahia, expôs uma suposta milícia rural que se espalha rapidamente pelo país com apoio de políticos, empresários e participação de PMs. Kleber Karipuna criticou o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), por não pedir o apoio da Força Nacional.

>>>> Confira a entrevista na íntegra:

·        Qual leitura da Apib sobre o final do governo Bolsonaro e a entrada da gestão Lula?

Kleber Karipuna: Estamos em um cenário político após quatro anos de muita batalha e resistência. Com o governo anterior, vivíamos um cenário de muitas ameaças aos direitos dos povos indígenas e à política indigenista. Muitas dessas ameaças não foram completamente sanadas e ainda continuam permeando, mas sem dúvida, o cenário é melhor, principalmente no diálogo com o novo governo federal brasileiro.

Passamos 2023 praticamente todo lutando contra o marco temporal que tramitava tanto no julgamento no Supremo Tribunal Federal, mas também no Congresso. O ano passado finalizou com a aprovação e promulgação da lei 14.701, a lei do marco temporal, que nos traz agora para esse ano de 2024, um novo cenário de embate com o Legislativo brasileiro, mas também no âmbito do Judiciário.

A questão do marco temporal vem causando seus efeitos na prática contra os povos indígenas. Estamos vivendo um cenário de enfrentamentos no Legislativo e no Judiciário, pois as ameaças ainda permeiam a política indigenista brasileira, impedindo, por exemplo, o governo atual de avançar nas políticas de demarcação e proteção das terras indígenas.

Outras medidas estão tramitando no Congresso brasileiro, como a PEC 48, que tenta trazer a questão do marco temporal para dentro da Constituição brasileira, e a PEC 59, que tenta mudar a prerrogativa de demarcação das terras indígenas do executivo para o Legislativo. Isso pode decretar o fim da demarcação das terras indígenas e até permitir a revisão de terras indígenas já homologadas.

Esse é um cenário que, infelizmente, nos coloca em um dia de luta e do movimento indígena. O movimento indígena está trabalhando em medidas, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade, também no âmbito do Judiciário e político, para garantir as políticas públicas e a efetividade dos direitos constitucionais dos povos indígenas.

·        Lideranças indígenas têm manifestado crescente insatisfação pela falta de avanço em pautas que dependem do Executivo, como a demarcação de terras. Vocês enxerga um cenário no qual a Apib precise romper com o governo?

Foi mais do que necessário o movimento indígena brasileiro estar junto no processo de candidatura do então candidato Lula para as eleições, pois era o único projeto político de país viável para nós. Garantimos uma grande maioria no apoio dos povos indígenas do Brasil para a candidatura do presidente Lula e estivemos na construção da proposta de governo, apoiando todo o debate sobre a política indigenista, inclusive trabalhando a ideia da criação do Ministério dos Povos Indígenas. No entanto, tínhamos também um cenário de possíveis restrições desses avanços que poderiam ser comprometedores.

Temos plena consciência de que o governo atual é um governo de composição e não é 100% alinhado às nossas bandeiras de luta. Existem ministros que se opõem a determinadas pautas indígenas. No ano passado, fizemos um diálogo para entender a conjuntura de 2023, com o governo tendo que se apropriar de várias informações, algumas das quais foram negadas durante a transição de governo.

Entendemos que era um momento de reconstrução, com o Ministério dos Povos Indígenas ainda se estruturando, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas ainda em processo de retomada, com orçamento muito pequeno e equipe reduzida. A saúde indígena enfrentou uma crise que continua sendo problemática e precisa de uma resposta mais urgente do governo federal.

Para este ano, 2024, com um novo Plano Plurianual (PPA) e uma Lei Orçamentária já aprovada com orçamento novo, começamos a entender que precisamos cobrar do governo mais efetividade em algumas pautas, e distribuir a cobrança para outros ministérios, não só o dos Povos Indígenas.

Vamos manter o diálogo com o governo, que é muito melhor do que o que vivemos nos quatro anos anteriores. No entanto, será um cenário de maior cobrança, pois estamos no segundo ano do governo, com um novo Plano Plurianual (PPA) e ações pensadas por este governo para serem implementadas. Precisamos tirar isso do papel.

Há um cenário de embate, inclusive com alguns atores dentro do governo, que estão constantemente tentando paralisar uma das principais pautas do movimento indígena, que é a demarcação das terras indígenas.

E por que as demarcações não avançam?

Por exemplo, o ex-ministro Flávio Dino saiu [do Ministério da Justiça] sem homologar nenhuma Portaria Declaratória de Terra Indígena, mesmo com a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas encaminhando mais de 30 processos para o Ministério da Justiça.

Agora, essa missão está com o ministro Lewandowski. Estamos planejando fazer agendas com este e outros ministérios afins, para que o movimento indígena não espere apenas do Ministério dos Povos Indígenas para fazer essas articulações. Queremos dar continuidade a esse processo e exercer uma maior pressão, pois não é justo que o governo jogue toda a responsabilidade no Ministério dos Povos Indígenas.

Enfim, nosso entendimento é que vamos nos portar neste ano ajudando o Ministério dos Povos Indígenas, a Funai, e as Secretarias Especiais de Saúde Indígena (Sesai) a ter uma maior incidência de cobrança junto a outras pastas ministeriais e outras autarquias para avançar na política indigenista do estado brasileiro, neste cenário atual de conjuntura interna do governo, com pessoas que remam contra a maré.

·        A expulsão de invasores das terras indígenas têm ocorrido de forma satisfatória?

No ano passado, vivemos o processo de desintrusão da Terra Indígena Apyterewa. Tivemos problemas sérios com invasores tentando confrontar as forças de segurança no processo de desintrusão. Políticos do estado do Pará tentaram a todo momento fazer interlocução com o governo federal e com o Supremo Tribunal Federal para tentar paralisar o processo de desintrusão.

Esse é um caso, mas podemos falar de outras terras, como Munduruku, Kayapó e a própria Yanomami, que ainda precisam ser desintrusadas [liberada dos invasores] completamente. Este será um cenário de embate político e também dentro do governo para trabalhar por um melhor orçamento que avance nessa pauta.

·        Após o assassinato de Nega Pataxó, ficou explícita a atuação de uma suposta milícia rural na Bahia cercada de apoio de políticos, empresários e PMs. Como a Apib pretende evitar que isso se espalhe ainda mais pelo país?

De fato, a Apib já vem atuando em situações específicas na Bahia e em outras terras, inclusive no âmbito do Conselho Nacional de Direitos Humanos. Já havíamos alertado ao governo federal que intercedesse e dialogasse com o governador do estado [da Bahia] para que pudessem interceder com apoio da Força Nacional de Segurança.

No entanto, o governador [Jerônimo Rodrigues do PT] sempre negou esse apoio, sempre com o discurso de que a Polícia Militar do estado da Bahia daria conta da situação. Porém, o que vemos é que a postura da PM não é de proteção dos povos indígenas, pelo contrário, é de abertura para a entrada dos invasores, agredindo, ameaçando e atirando contra os indígenas na região.

Diante dessa situação, a A Apib atuou imediatamente, acionando os órgãos federais e exigindo que a Força Nacional seja a força de segurança que entre na região para dar segurança aos indígenas, pois não confiamos mais na Polícia Militar da Bahia.

Entramos com uma representação criminal contra o grupo intitulado “Invasão Zero”, que tem CNPJ, pessoas à frente e uma frente parlamentar criada no âmbito do parlamento brasileiro. Essa é uma afronta que o parlamento brasileiro vem explicitamente instalando de ódio contra os povos indígenas, falando publicamente que não vai permitir nenhuma ocupação, e que vão agir da forma que for necessário, inclusive armados, como foi o caso agora, assassinando uma liderança do povo Pataxó. Entramos com essa representação criminal e vamos avançar nesse processo contra esse grupo.

 

Fonte: O Joio e O Trigo/Brasil de Fato

 

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