Do chicote
ao camarote: como Carnaval foi de festa reprimida a megaespetáculo
Nos primórdios
do Carnaval no Brasil, a autoridade máxima da República assistiu
a uma apresentação que tinha como enredo A corte de Belzebu.
Nos
festejos de 1911, o grupo Ameno Resedá exibiu ao presidente Hermes da Fonseca
uma alegoria do inferno ilustrada por demônios, chifres, rabos e tridentes.
"O
presidente, segundo os testemunhos, gostou do que viu e julgou a experiência
nas profundas do capeta como algo mais tranquilo do que o exercício do poder
federal", narram o historiador Luiz Antônio
Simas e o jornalista Fábio Fabato em Para tudo começar na quinta-feira:
o enredo dos enredos.
Os
governantes do passado podiam se divertir no Carnaval, mas desde os primórdios
da tradição no Brasil já se revelavam atritos e tentativas de disciplinar a
festa. E foram africanos e seus descendentes - justamente os principais
responsáveis pela originalidade do Carnaval brasileiro - que mais sofreram com
o ímpeto controlador.
·
Cadeia ou chibatada
Desde o
século 18, escravos produziam no Rio bolas de cera usadas no entrudo, festa
europeia dos tempos pré-Cristianismo e considerada uma das precursoras do
Carnaval.
Em 100
anos de Carnaval no Rio de Janeiro, o sambista e escritor Haroldo Costa
conta que os limões-de-cheiro, como se chamavam os artefatos, eram enchidos com
água ou urina e atirados pelos foliões uns nos outros.
Autoridades
imperiais proibiram a prática e reservaram as penas mais severas para escravos
infratores: em 1857, um delegado determinou que eles deveriam sofrer cem
chibatadas ou passar oito dias na cadeia se violassem a regra.
Mesmo
assim, o entrudo sobreviveu e foi se misturando com outras tradições, como as
procissões católicas portuguesas, e práticas que chegavam ao Rio vindas
principalmente do Nordeste, entre as quais as congadas, os autos de Natal, os
afoxés e as lapinhas. O Carnaval carioca estava sendo gestado.
·
Inovação do samba
Depois da
abolição da escravatura, em 1888, e da proclamação da República, no ano
seguinte, a então capital federal inchava com levas de migrantes - muitos deles
ex-escravos em busca de trabalho.
Moradores
novos e antigos paravam nos primeiros carnavais do século 20 para assistir aos
ranchos, primeiros grupos a desfilar com mestre-sala e porta-estandarte.
Até então,
diz o historiador Luiz Antônio Simas, "não havia nada de verdadeiramente
original no Carnaval do Rio, um amálgama de manifestações de várias
culturas".
O pulo do
gato ocorreu nos anos 1930 com as primeiras competições entre grupos de
sambistas que surgiam em morros e subúrbios de maioria negra.
A partir
dali adotava-se como trilha sonora principal da festa o samba urbano, nascido
no Rio décadas antes.
·
Centralidade dos
subúrbios
As escolas
de samba transformaram a música do Carnaval e a geografia do Rio de Janeiro.
Segundo
Simas, as escolas colocaram os morros e subúrbios no mapa quando o discurso
oficial associava o Rio apenas à orla e ao Centro. Ele exemplifica com o caso
da Mangueira, morro na zona norte do Rio e sede de uma das escolas de samba
mais populares da cidade, a Estação Primeira de Mangueira.
"A
identidade da Mangueira é a escola, é ela quem define a maneira de
pertencimento ao morro."
O mesmo,
afirma o historiador, se aplica aos bairros suburbanos de Oswaldo Cruz, onde
nasceu a escola Portela, de Madureira, berço da Império Serrano, e de Padre
Miguel, sede da Mocidade e da Unidos de Padre Miguel.
Simas diz
que, mais do que grupos artísticos e musicais, as agremiações eram instituições
comunitárias, que reforçavam os laços entre os moradores e provinham um rede de
proteção social a pessoas subalternizadas.
"As
escolas de samba não existiam para desfilar, elas desfilavam porque
existiam", afirma.
O momento
não parecia propício ao surgimento das escolas. Na ditadura do Estado Novo
(1937-1946), o governo Getúlio Vargas reavivara o projeto de embranquecimento
físico e cultural da população promovido por D. Pedro 2°, desta vez barrando
imigrantes negros, judeus e japoneses.
Para
Simas, o nascimento das escolas de samba nesse contexto foi "um
milagre". Ele atribui a sobrevivência dos grupos à "cultura da
malandragem", que sempre soube negociar com o Estado e com a contravenção
simbolizada pelo jogo do bicho, tradicional fonte de recursos das escolas.
·
Bandeiras
nacionalistas
O Carnaval
crescia, e cresciam os esforços do governo para discipliná-lo. Em 1948, em meio
à Guerra Fria, passa-se a exigir que as escolas adotassem bandeiras
nacionalistas.
Na época,
o Brasil presidido pelo marechal Eurico Dutra se alinhava aos Estados Unidos na
disputa com a União Soviética. A determinação foi uma provável reação ao
Carnaval anterior, quando 22 escolas desfilaram patrocinadas pelo Partido
Comunista Brasileiro.
"Para
os homens do poder, as agremiações funcionavam como livros didáticos para uma
população sem livros didáticos", afirmam Simas e Fabato.
Tornam-se
comuns apresentações que exaltam figuras como o Duque de Caxias, a princesa
Isabel e o jurista Rui Barbosa, e eventos históricos como a proclamação da
Independência e a Guerra do Paraguai.
Obrigadas
a exaltar a história oficial em seus enredos, as escolas acharam brechas para
também contar nos desfiles outras histórias, que valorizassem suas referências.
Para isso, valiam-se do que Simas batizou de "gramática dos
tambores".
Ele conta
que muitas escolas baseavam nas batidas dos orixás o toque de suas caixas de
guerra, instrumentos que dão constância rítmica a uma bateria.
O batuque
que anunciava a bateria da Mocidade Independente era o mesmo que, nos terreiros
de candomblé e umbanda, convocava o orixá Oxóssi. As entradas da Portela, do
Império Serrano e da Mangueira eram marcadas pelas batidas associadas a Iansã.
Enquanto
os enredos das escolas celebravam heróis nacionais, as baterias evocavam - para
os ouvidos entendidos - concepções de mundo afrobrasileiras.
Foi só nos
anos 1960 que as escolas passaram a exaltar os orixás e a cultura negra também
nas letras, num momento em que intelectuais e escritores propunham um projeto
de país que incorporasse tradições populares.
Em 1974,
porém, quando a Unidos de Vila Isabel elaborou uma apresentação que exaltava os
índios carajás e criticava o progresso desenfreado, a ditadura militar fez a
escola transformar o enredo numa apologia à rodovia Transamazônica.
·
Decadência e
ressurreição
Enquanto
as escolas de samba atraíam a classe média, o Carnaval de rua dos blocos e
cordões se esvaziava. Com a inauguração do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, em
1984, as agremiações viviam seu auge. O Carnaval carioca se tornava um
espetáculo televisivo turbinado por recursos de empresas e governos.
A
elitização dos desfiles, porém, fez com que os grupos fossem se afastando de
suas bases comunitárias. E conforme o entusiasmo da classe média pelas escolas
esfriou, o Carnaval de rua ressurgiu.
Hoje, diz
Simas, o Carnaval das escolas de samba cariocas perdeu muito da importância que
já teve para o resto do país.
Popularizado
junto da música e do futebol cariocas nos tempos em que o Rio era capital e a
Rádio Nacional era o principal meio de comunicação do Brasil, ele foi cedendo
espaço para outras expressões.
Muitas
cidades voltaram-se às disputas entre escolas de samba locais. No Recife e em
Olinda, o frevo e o maracatu se firmaram como os principais gêneros
carnavalescos. Nas cidades históricas mineiras, blocos centenários revigoraram
os desfiles com marchinhas.
Em
Salvador, a invenção do trio elétrico abriu o caminho para o nascimento do axé,
que se tornaria a trilha dominante nos festejos de várias regiões do país, até
ser destronado recentemente pelo funk. E, nos últimos anos, capitais como São
Paulo e Belo Horizonte vêm experimentando um forte crescimento do Carnaval de
rua, com blocos, trios elétricos e palcos fixos.
·
Lógica empresarial
Para
Simas, o Carnaval de rua do Rio e de outras grandes cidades hoje corre o mesmo
risco que as escolas de samba correram: "elitizar-se e ser capturado por
uma lógica empresarial que tire sua espontaneidade".
Para atender
aos públicos cada vez maiores, muitos megablocos têm recorrido a patrocínios e
se submetido a regras rígidas, como horários para o início e fim dos festejos.
Em
contrapartida, os patrocinadores - muitas vezes marcas de cerveja - costumam
exigir que só se vendam seus produtos no bloco e que possam criar áreas VIPs.
O modelo,
diz Simas, já capturou o Carnaval da zona sul e do Centro do Rio, que vai
perdendo suas características populares. Segundo ele, hoje o Carnaval
"mais pujante" da cidade sobrevive fora das áreas turísticas, nos
subúrbios da zona oeste e em bairros da zona norte, como a Tijuca.
O Estado
tentou, mas quem parece estar tendo mais sucesso em disciplinar o Carnaval são
as empresas.
Fonte: BBC
News Brasil
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