Por que o agronegócio está interessado no
mercado de produtos biológicos?
Faz quase cinco anos
que a produtora de gado de leite Luciana Dinato passou a usar bioinsumos nos 65
hectares de milho e 7 hectares de pastagem em sua propriedade familiar. As
plantas são transformadas em alimento para um rebanho de 270 vacas na fazenda de
200 hectares em Água Fria, Goiás. A prática não substituiu completamente o uso
de produtos químicos, mas diminuiu consideravelmente os custos de produção e os
riscos de contaminação à saúde humana.
Luciana usa bioinsumos
tanto para tratar o solo, as sementes e as plantas, como para enriquecer a
ração animal. O conceito dado pelo Programa Nacional de Bioinsumos é amplo, e
abarca todo tipo de produto, processo ou tecnologia de origem biológica. Dentro
deste entendimento, encaixam-se práticas tradicionais de manejo da terra, como
compostagem de vegetais e dejetos animais e inserção de insetos para controle
de pragas.
Para um país
acostumado a pensar em produtos químicos quando se fala do manejo no campo, os
bioinsumos são um universo à parte de possibilidades.
Mas o termo bioinsumo
foi criado para designar uma aparição mais recente e tecnológica da vida
microscópica: os microrganismos isolados. São cepas de bactérias, leveduras,
fungos, dentre outras formas de vida, usadas para controlar pragas, fertilizar
o solo, tratar doenças das plantas e estimular seu crescimento.
Também chamadas de
produtos biológicos, estas novas soluções estão no centro de um debate que
envolve o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), as indústrias de
agrotóxicos e as organizações que compõem o Instituto Pensar Agro (IPA), braço
logístico da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a bancada ruralista.
A disputa de
narrativas promovida pelo agronegócio em torno dos agrotóxicos — e suas
alternativas — é o tema da terceira fase do especial Brasil Sem Veneno, uma
colaboração entre as redações de O Joio e o Trigo e De Olho nos Ruralistas. Em
seu primeiro ano, o projeto mapeou as iniciativas de resistência contra os
agrotóxicos pelo país e consolidou dados acadêmicos sobre os impactos desses
produtos no corpo humano. Essa pesquisa deu origem a uma cartografia inédita e
a uma cartilha sobre os impactos dos agrotóxicos, lançadas durante o 12º
Congresso Brasileiro de Agroecologia, em 2023.
CONTROLE SOBRE
MULTIPLICAÇÃO DE BIOINSUMOS DIVIDE INDÚSTRIA E FAZENDEIROS
A fazenda de Luciana é
de médio porte, mas ilustra bem a transformação que propriedades de diferentes
tamanhos e regiões do Brasil têm passado nos últimos anos. Com equipamentos de
alta tecnologia, como biorreatores de inox, ou em estruturas mais simples, como
caixas d’água, estes produtores deixam de comprar parte dos agrotóxicos e
fertilizantes químicos e passam a produzir alternativas biológicas em sua
própria fazenda.
Para isso, adquirem os
produtos biológicos em lojas agropecuárias e os usam como “fermento” para
transformá-lo em um volume dezenas de vezes maior. Essa prática, chamada de
multiplicação on farm, cresceu a partir da instituição do Programa Nacional de
Bioinsumos, em 2020, mas ainda não foi regulamentada.
Isso porque o
desenvolvimento do mercado de produtos biológicos e a adoção da prática de
multiplicação on farm correram paralelamente. A falta de acesso do produtor
rural a bancos de material genético que possam ser multiplicados faz com que
muitos agricultores usem produtos industriais prontos para uso na lavoura em
suas multiplicações on farm.
O tema é um impasse na
discussão da regulamentação. A indústria quer que o produtor multiplique em sua
propriedade apenas o material genético comercializado para este fim, que hoje é
escasso no mercado. E o produtor quer que a regulamentação garanta o acesso às
cepas e às tecnologias necessárias para multiplicar os microrganismos isolados
em sua propriedade, com a facilitação de compra direta de bancos genéticos.
Enquanto a normativa não avança, não há regras oficiais para a atividade on
farm.
Apesar de a autonomia
na produção de biológicos interessar a todos os agricultores brasileiros, a
briga é entre dois cachorros grandes. De um lado, o médio e grande produtor
rural vendo o quanto economiza ao multiplicar em sua própria fazenda
microrganismos isolados para fertilizar a terra ou controlar pragas. Do outro,
a indústria química, que mal começou a preencher as prateleiras com seus
produtos biológicos, vendo que pode perder um nicho de mercado se seus produtos
forem usados para “fazer render” na propriedade rural.
Ambos os setores
querem que a prática seja regulamentada o quanto antes, mas os dois projetos de
lei criados em 2021 com essa finalidade estão parados na Câmara dos Deputados.
O primeiro, do
deputado Zé Vitor (PL-MG), passou pelas comissões da Câmara e seguiria
diretamente para o Senado. Porém, um requerimento da bancada do Partido dos
Trabalhadores (PT) travou essa manobra desde dezembro de 2022, e o projeto
ficou à espera da votação em plenário. O segundo, do senador Jaques Wagner
(PT-BA), está parado na Comissão de Meio Ambiente da Câmara desde setembro de
2023. Os parlamentares foram procurados pelo Joio, mas não retornaram o pedido
de entrevista até o fechamento desta reportagem.
Com críticas às
propostas dos parlamentares, representantes do agronegócio, indústrias químicas
e biológicas se reuniram em 2024 para redigir uma proposta de substitutivo e
tentar conciliar as diferentes necessidades e exigências do produtor rural e da
indústria.
E foi aí que a bancada
ruralista rachou pela primeira vez.
CROPLIFE QUER BARREIRA
PARA APROVAÇÃO DE NOVOS BIOINSUMOS
Geralmente unidos no
lobby pelo agronegócio, os grandes produtores rurais e a indústria química
divergiram, a ponto de a CropLife entrar em contradição. A associação
representa 53 indústrias de germoplasma, biotecnologia, agrotóxicos e
bioinsumos. Durante a elaboração da nova lei de agrotóxicos, a CropLife foi
favorável à centralização de registro de agrotóxicos no Mapa. Já em relação à
regulamentação de bioinsumos, produtos que apresentam riscos menores à saúde
humana e ao meio ambiente, a CropLife defendeu o modelo tripartite de registro,
exigindo que todos os produtos passem pela análise de Anvisa, Ibama e Mapa.
“Soou como um desejo
de criar uma barreira artificial à entrada de indústrias pequenas no mercado”,
analisa Reginaldo Minaré, diretor-executivo da Associação Brasileira de
Bioinsumos (Abbins), uma das entidades que assina o substitutivo enviado à
Câmara. “Uma gigante do mercado pode esperar um registro moroso até ter retorno
de seu registro, mas os pequenos não têm esse tempo e dinheiro.” A CropLife foi
procurada pelo Joio, mas não retornou até o fechamento desta reportagem. Em 20
de setembro, a associação publicou uma nota em que afirma ser favorável à
produção on farm e que participou do processo de construção de um texto
alternativo aos dois projetos de lei, mas não detalha sua posição sobre a
gestão tripartite do registro.
A Abbins e a
Associação Nacional de Promoção e Inovação da Indústria de Biológicos (ANPII
Bio), associações que reúnem produtores de bioinsumos, defendem o pleito de
registro junto a Ibama e Anvisa apenas no caso de um novo produto, que ainda
não tenha similar aprovado.
Outras 50 entidades
assinam o texto alternativo, apresentado à Câmara em julho. Entre elas, figuram
a Confederação da Agricultura e Pecuária, a Sociedade Rural Brasileira, a
Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), a Associação
Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), o Sindicato Nacional da
Indústria de Produtos Para Defesa Vegetal (Sindiveg), e a Associação
Nacional das Empresas de Produtos Fitossanitários (Aenda). A CropLife, que
fazia parte desse grupo, saiu em junho.
O substitutivo propõe
a previsão de acesso a bancos de material genético para os produtores para
poder proibir o uso de produtos prontos do mercado para a multiplicação on
farm. O texto também sistematiza e sugere os fluxos de registro para diferentes
tipos de bioinsumos e garante a isenção de registro de bioinsumos de
agricultores ligados a povos e comunidades tradicionais. Não há previsão de
junção dos projetos de lei parados na Câmara, nem se a proposta de substitutivo
será acolhida.
REGULAMENTAÇÃO TRAZ
RISCOS PARA PEQUENOS AGRICULTORES
Não estão no centro
desse debate os agricultores familiares, agroecológicos, orgânicos e de povos e
comunidades tradicionais. Mas nem por isso a regulamentação não interessa a
esse setor.
Mesmo que práticas
tradicionais – como captura de colônias de microrganismos locais, compostagem,
esterco e extrato de plantas – estejam isentas de controle do Estado, muitos
produtores conjugam a prática tradicional com a multiplicação de microrganismos
isolados.
Se forem muito duras
as exigências para a instalação de uma biofábrica on farm, o acesso à
tecnologia de multiplicação de microrganismos isolados pode ser inviável para
agricultores familiares. Um biorreator de inox com painel eletrônico pode
chegar a custar mais de R$ 140 mil para um volume de 2 mil litros. O
equipamento é hermeticamente fechado e garante controle de temperatura, pH e
aeração, por exemplo. Em muitos casos, os pequenos produtores usam caixas
d’água para reproduzir uma cepa de bactéria usando parâmetros visíveis, como
cor, cheiro e aspecto do líquido inoculado.
A Emater do Distrito
Federal, por exemplo, ensina a instalação de uma pequena biofábrica on farm a
partir de bombonas de PVC para reprodução de alguns microrganismos. “A gente
adequa a tecnologia para que o investimento do agricultor seja entre R$ 5 mil e
R$ 10 mil, mais a compra dos inóculos”, diz Daniel Rodrigues Oliveira,
extensionista rural da Emater-DF e integrante do Conselho Estratégico do
Programa Nacional de Bioinsumos.
“Pelo menos 50% dos
agricultores familiares de morango produzem os bacilos subtilis e o trichoderma
em suas propriedades. Em Minas Gerais, a Emater ensina os produtores a fazerem
essa multiplicação”, exemplifica Isaac Sassi, assessor parlamentar da Associação
Brasileira das Entidades de Assistência Técnica e Extensão Rural, Pesquisa
Agropecuária e Regularização Fundiária (Asbraer). “É impossível para o
agricultor familiar custear um responsável técnico para esta multiplicação, que
é feita com equipamentos simples, produzidos pelos próprios agricultores e com
técnicas que já são utilizadas há mais de 30 anos. Se for proibido pela
legislação, eles precisarão voltar a comprar estes produtos prontos”, avalia.
Há críticas por parte
da indústria quanto à segurança das multiplicações feitas em caixas d’água ou
reservatórios similares. “Temos biofábricas muito estruturadas em empresas de
agronegócio, que conseguem investir milhões de reais e a sua produção se equipara
a uma produção industrial. Mas são minorias”, explica Julia Emanuela de Souza,
diretora de relações institucionais da Anpii Bio. “Produzir microrganismos
isolados é extremamente delicado, porque eles podem se espalhar com facilidade.
Além disso, você pode contaminar a multiplicação [em caixa d’água e similares]
com um fitopatógeno que pode condenar sua lavoura. A nossa mão está cheia de
microrganismos. Também pode haver uma infecção de patógenos para humanos.”
Para operar uma
biofábrica on farm, é preciso um responsável técnico, segundo recomenda nota
técnica da Embrapa de 2021. O profissional pode ser contratado diretamente pelo
agricultor ou ser um extensionista rural – no caso de quem consegue ter acesso
à extensão rural. “O agricultor muito pequeno não vai conseguir ter uma
biofábrica on farm, muitas vezes ele não tem nem acesso à extensão rural. Nesse
caso, o ideal para fiscalização e controle seria centralizar a produção de
bioinsumos em uma cooperativa”, indica Oliveira, da Emater-DF.
A alternativa está
prevista nas discussões de regulamentação com o nome de “unidades de produção
de bioinsumos”. São espaços geridos por associações, coletivos e cooperativas.
Desde 2022, um exemplo exitoso deste modelo se desenvolve em Viamão, em um assentamento
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A unidade de produção
de bioinsumos Ana Primavesi foi criada pelo movimento junto à Associação
Internacional para Cooperação Popular (Baobab) e a Cooperativa de Trabalhadores
Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap). Essa unidade abastece 390 famílias
que cultivam arroz orgânico em uma área de três mil hectares e outras 290 que
produzem hortaliças na região metropolitana de Porto Alegre.
Um galpão da fazenda
em Viamão foi adaptado para acomodar duas realidades. Uma área para oficinas de
práticas tradicionais, onde há uma produção coletiva de compostos orgânicos e
uma sala de acesso restrito, onde circulam apenas os técnicos agrícolas responsáveis
pela multiplicação de microrganismos isolados. É lá onde está o biorreator, e é
de onde saem os cinco mil litros de bioinsumos preparados a partir de quatro
cepas de bactérias para controle de pragas, preparar e enriquecer o solo e que
estimulam o desenvolvimento da planta.
Enquanto a unidade de
produção não tem um laboratório próprio para análise, amostras dos produtos são
enviadas à Universidade Federal de Santa Maria antes de os bioinsumos serem
despachados para as famílias.
“Percebemos um aumento
na produtividade depois que começamos a aplicar os bioinsumos. Ainda não
fizemos estudos, mas fizemos comparações entre as plantas de arroz que foram
tratadas com a bactéria Azospirillum brasilense e as que não receberam o
produto. As primeiras tiveram um enraizamento maior”, conta Dionéia Soares
Ribeiro, coordenadora da unidade de produção de bioinsumos Ana Primavesi.
Um gargalo para o
pequeno agricultor é o acesso à tecnologia. Para além do custo do equipamento,
as cepas de microrganismos são compradas no varejo. A falta de variedade de
produtos próprios para multiplicação on farm faz com que muitos agricultores
usem bioinsumos formulados como “fermento” para suas produções próprias. Nas
propostas de lei, é prevista a penalização desta prática.
“Nossa maior
necessidade é ter acesso a novas máquinas, subsídio para montar essas unidades
de produção em vários assentamentos, e acesso a bancos genéticos de cepas, para
não dependermos só do que os fabricantes colocarem no mercado”, enumera
Dionéia.
MESMO SEM
REGULAMENTAÇÃO, BRASIL LIDERA ADESÃO AOS BIOINSUMOS
Mesmo que não haja
dados governamentais sobre a adesão de agricultores aos bioinsumos, o Brasil
lidera o uso, segundo levantamento de duas consultorias especializadas em
agronegócio.
A McKinsey aponta que
61% dos produtores brasileiros usam algum tipo de biológico no controle de
pragas, e 64% usam algum bioestimulante ou biofertilizante em sua lavoura. Os
números são bastante acima da média global, de 20% e 31%, respectivamente. Em segundo
lugar, vêm os agricultores da União Europeia, com 25% e 33%. Os dados foram
apresentados pela empresa no 22º Congresso Brasileiro do Agronegócio, em
agosto. Não há um estudo que investigue quantos desses bioinsumos são
produzidos on farm.
A Kynetec divulgou
durante o BioSummit 2024, em maio, que a área tratada com bioinsumos cresceu
29% no Brasil em quatro anos, chegando a mais de 58 mil hectares na safra de
2023/2024 – para que se tenha uma ordem de grandeza, a área cultivada com grãos
no Brasil é estimada em 78 milhões de hectares.
A oferta de produtos
biológicos teve um salto de 339% desde 2015, segundo dados do Mapa. Foi o maior
crescimento da série histórica, que começou em 2000. Isso significa que a
oferta de produtos biológicos no mercado mais que triplicou, e o mercado nunca esteve
tão aquecido.
Pequenos ou grandes,
todos querem uma fatia desse bolo, mesmo quem já tem a maior parte dele: o
mercado de produtos químicos no Brasil tem um valor estimado de US$ 20 bilhões
anuais, montante 20 vezes maior que o dos biológicos.
Partindo do princípio
de que qualquer bactéria, substância extraída de planta ou um fungo poderia ser
um bioinsumo – desde que provada sua função e eficiência –, as possibilidades
são inesgotáveis.
Como o segmento de
bioinsumos ainda não tem regulamentação específica, o registro das fabricantes
é feito junto ao Mapa como agrotóxico ou fertilizante. Atualmente, são 768
fertilizantes orgânicos dentre mais de 10 mil fertilizantes, e 1.560 bioinsumos
para controle ou prevenção de pragas em meio a mais de 3 mil agrotóxicos.
No caso de produtos
que promovam o desenvolvimento da planta e condicionamento do solo, por
exemplo, não há uma categoria para registrá-los. Isso freia o desenvolvimento
de produtos e faz com que o microrganismo precise também ter a função de
controle de pragas ou fertilizante para poder ser registrado.
MENOS QUÍMICOS MENOS
CUSTO
A pecuarista Luciana
Dinato, do município de Água Fria (GO), é um exemplo de produtor agropecuário
que aplica três tipos diferentes de insumos em sua produção: o tradicional, a
multiplicação de isolados e o químico.
Ela é a responsável
técnica pela produção de bioinsumos feita em parceria com um vizinho. Dentro de
uma construção entre as duas propriedades, ficam um biorreator de 2 mil litros
e 20 tanques de mil litros, onde os produtos são armazenados por até seis meses.
Antes de usar, eles enviam uma amostra para análise em laboratório para
verificar se a composição e a atividade dos microrganismos estão de acordo com
o esperado.
Hoje, 70% do
fertilizante usado por Luciana é biológico e produzido por ela própria. A
combinação de três cepas de bactérias aumenta a disponibilidade de fósforo no
solo, fixa nitrogênio e dá resistência à raiz em épocas de pouca umidade. Os
30% restantes são de adubo químico comercial, uma composição de boro, zinco e
manganês e uma parcela menor de nitrogênio, fósforo e potássio.
Luciana também compra
prontos para uso outros oito bioinsumos, usados na prevenção de pragas e na
manutenção da saúde das plantas e do rebanho. Ela alia os biológicos a práticas
tradicionais de manejo, como as plantas de cobertura. Entre as safras, são semeadas
cinco espécies de hortaliças e leguminosas, para que suas raízes descompactem e
nutram o solo.
Em novembro, ela
inicia o quinto plantio desde que incluiu os produtos biológicos, e tem visto
seus custos reduzirem consideravelmente. “Um produto químico para controle de
uma praga, que precisa ser aplicado quando ela está atacando, custa em média R$
200 o litro. O bioinsumo que eu faço na propriedade, para aplicar
preventivamente, eu consigo produzir a R$ 5 o litro”, demonstra.
Nestes quatro anos,
apenas duas safras foram totalmente livres de químicos. As mudanças climáticas
que têm alterado o regime de chuvas e as temperaturas tornam o manejo mais
delicado. No ano passado, a chuva incessante impediu que Luciana aplicasse o
bioinsumo preventivo para a cigarrinha do milho. “Funciona muito bem, mas
precisa ser aplicado com pelo menos seis horas sem chuva, senão a água lava o
produto antes que ele faça efeito”, explica.
Conforme os dias
passavam e a chuva seguia, a população do inseto aumentava. “Tivemos que
pulverizar um químico para dar conta das cigarrinhas. Depois, por causa da
umidade, aplicamos duas vezes um fungicida, também químico, porque o biológico
leva mais tempo para fazer efeito. Em momentos de crise, não é rápido o
suficiente.”
Ainda assim, o uso de
produtos biológicos representou 90% na safra de 2023.
INDÚSTRIA DE
AGROTÓXICOS MUDA NARRATIVA MIRANDO LUCRO COM BIOINSUMOS
A indústria química
entendeu que os bioinsumos apresentam um filão novo para a diversificação das
suas receitas e há anos começou a modular o discurso. O marketing dessas
fabricantes agora fala em “agricultura regenerativa” e lista seus produtos
biológicos como uma solução para os problemas causados por elas mesmas.
Enquanto agricultores
de povos e comunidades tradicionais manejam a terra com um olhar integrado, em
que promover o equilíbrio entre fauna e flora é o caminho para evitar pragas e
doenças, o agronegócio foca em paliativos.
A monocultura
extensiva compacta e empobrece a terra, diminuindo a biodiversidade e, por
consequência, os nutrientes disponíveis para a planta absorver. A aplicação de
agrotóxicos elimina qualquer vida vegetal ou animal da área, além de contaminar
lençóis freáticos e se dispersar pelo ar. Expostos repetidas vezes aos
químicos, animais e plantas daninhas criam resistência ao veneno. Em vez de
equilíbrio entre os macro e microrganismos, este ambiente favorece a instalação
de organismos oportunistas que podem causar doenças, má nutrição ou mau
desenvolvimento da planta. Neste cenário, o bioinsumo chega empacotado pela
indústria como uma solução e aplicação similares a de um agrotóxico.
É deste ângulo que
ruralistas e fabricantes de agrotóxicos têm mirado nos bioinsumos: um produto
para manter o sistema de agricultura comercial com a mesma estrutura. “O
agronegócio incorporou os biológicos dentro da lógica do pacote tecnológico e
os colocou lado a lado com sementes transgênicas, agrotóxicos e fertilizantes
químicos. E estão chamando isso de agricultura regenerativa”, critica Andreia
Matheus, coordenadora do coletivo nacional de bioinsumos do MST.
Muitas vezes durante a
apuração desta reportagem, as fontes ligadas ao agronegócio se referiram aos
bioinsumos como um produto para fazer dupla com agrotóxicos, e não para
substituí-los. Em 2020, a Bayer publicou um texto em seu blog em que afirmava
que o uso combinado de químicos e biológicos traria diversidade e diminuiria o
surgimento de resistência das pragas ao produto.
Outro ponto que faz o
setor químico se interessar pelos biológicos é a possibilidade de lançar mais
produtos em menos tempo. O intervalo entre o pleito e a concessão do registro é
de até um ano para os produtos biológicos, enquanto para os químicos é de cerca
de dois anos. Na prática, o tempo médio
para registro de um bioinsumo fica em 60 dias.
Um estudo da IHS
Markit encomendado pela CropLife em 2021 reconhece que o alto investimento em
registro e reanálise de produtos químicos é um dos motivos para que a indústria
inclua os biológicos em seu portfólio. A falta de novos ingredientes químicos e
a resistência de pragas a várias substâncias também são listadas. Em miúdos, o
documento reconhece que os agrotóxicos não estão mais dando conta de conter
pragas sozinhos, e uma forma de manter a demanda pelos produtos da indústria
química é vender os biológicos como uma “solução complementar” ao químico.
Na mais recente lista
de espera para análise de registro divulgada pelo Mapa havia 116 produtos
biológicos. Basf, Syngenta, Bayer, Corteva, Sumitomo, Adama, UPL Brasil e FMC
Química do Brasil, as principais fabricantes de agrotóxicos, somavam 29 pedidos
de registro – ou seja, um a cada quatro pedidos de registro de bioinsumo é de
uma gigante do setor de agrotóxicos.
A título de
comparação, na fila de registro para produtos para agricultura orgânica, 90
pedidos aguardavam a análise do Mapa. Nenhum era de uma gigante da indústria
química.
Mesmo que as gigantes
químicas tenham começado a se interessar pelo mercado de biológicos, a oferta
no portfólio ainda é pequena.
A Basf anuncia cinco
produtos em sua área “Biológicos“. Três deles são composições que levam
químicos como fipronil e outros ingredientes ativos de agrotóxicos – o que,
tecnicamente, não seria encaixado como bioinsumo. Apenas dois são livres de
químicos: uma cepa de bactéria que fixa o nitrogênio no solo (Bradyrhizobium
elkanii) e outra que atua como fungicida e bactericida (Bacillus
amyloliquefaciens).
No site da Sumitomo,
são quatro os produtos classificados como “inseticida biológico“, cada um com
uma cepa de Bacillus thuringiensis distinta. O micróbio produz um cristal que,
ao ser ingerido pela lagarta, interrompe seu processo de digestão. O inseto morre
antes de se desenvolver completamente.
Na Corteva, são seis,
dos quais quatro são biofertilizantes e dois são para controle de pragas. Na
bula de dois produtos que alegam ter “cepas exclusivas”, a composição é mantida
como “informação confidencial”.
• A letra rocambolesca da lei
O mercado de
bioinsumos vicejou a partir do decreto de 2009 que regulamentou a lei de
agricultura orgânica. “Neste decreto, há um comando que permite a produção de
produtos fitossanitários para uso próprio para agricultura orgânica, sem
necessidade de registro do que já está autorizado em lista positiva”, detalha
Reginaldo Minaré, diretor-executivo da Abbins.
Ou seja: mesmo o
produtor convencional se beneficiou da lei de orgânicos, podendo multiplicar em
sua propriedade microrganismos aprovados pelo Mapa sem precisar avisar ao
Estado. O cenário se desenvolveu e uma nova regulamentação é necessária para
abarcar os tipos de bioinsumos que surgiram nesse ínterim – muitos têm funções
para além da saúde da planta, podendo ser estimulantes de crescimento e
desenvolvimento, por exemplo. Por enquanto, os bioinsumos podem ser registrados
como fertilizantes ou agrotóxicos.
Aliás, não há o termo
bioinsumo na lei brasileira. A expressão usada é “produto fitossanitário para
uso próprio” ou “agrotóxico biológico”.
A redação final da
nova lei de agrotóxicos, aprovada em dezembro de 2023, retirou apenas
parcialmente a emenda que garantia que os “agrotóxicos biológicos” pudessem ser
produzidos pelos próprios produtores rurais sem necessidade de registro,
conforme o decreto de orgânicos prevê. O comando foi eliminado, mas o conceito
continuou no texto. “Esse conceito está no segundo artigo. Combinado com artigo
3º da lei, isso cria um problema enorme pro agricultor, porque obriga todos os
produtos citados na lei a serem registrados”, explica Minaré. Isso faria com
que a garantia do decreto dos orgânicos, que protegia a produção para uso
próprio, se perca.
Uma lei para
regulamentar os bioinsumos se torna ainda mais urgente diante desse cenário.
Caso contrário, a partir de janeiro de 2025, a produção on farm de qualquer
tipo de produto passa a ser ilegal.
Fonte: Por Flávia
Schiochet, de O Joio e o Trigo para o especial Brasil Sem Veneno
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