Plinio Teodoro: Um soco na democracia - o
legado das eleições municipais para a disputa presidencial em 2026
Pouco mais de dois
anos após sofrer o mais duro golpe desde a redemocratização, com ataques da
horda de apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) às sedes dos Três Poderes em
Brasília no fatídico dia 8 de janeiro de 2023, a democracia brasileira recebeu
um soco que prenuncia que o passado violento e golpista da burguesia
financista, atrelada aos interesses do sistema financeiro transnacional, será
projetado em um novo round nas eleições presidenciais em 2026.
Após Bolsonaro calçar
o coturno e levar o Brasil a revisitar uma página infeliz de nossa História, o
fascismo neoliberal ganhou uma nova face, ainda mais violenta e inescrupulosa,
nas eleições à Prefeitura de São Paulo, onde Pablo Marçal (PRTB) está herdando
a liderança da ala mais radical do bolsonarismo, que lhe tem garantido cerca de
20% do eleitorado da maior cidade da América Latina.
Ceivado pelo ódio de
Bolsonaro, essa parcela da população agora se alimenta da violência política
disseminada pelo ex-coach e a facção que o acompanha – parte dos assessores têm
ligação direta com o crime organizado – nas redes, nas ruas e nos debates.
Foi assim na última
segunda-feira (23), quando, ao ser expulso por Carlos Tramontina faltando 10
segundos para o fim do debate no Flow, o ex-coach olhou para os assessores e,
em um gesto de consentimento com a cabeça, deu aval para que o sócio e videomaker Nahuel
Medina desferisse um soco no rosto de Duda
Lima, marqueteiro de Ricardo Nunes (MDB) e remanescente da condução da campanha
de Bolsonaro em 2022.
Procuradora regional
da República e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político
(Abradep), Silvana Batini afirma que a violência física levada à campanha
por Marçal, que tem sido aceita por um índice considerável da sociedade, é
a mais nova "surpresa" para a Justiça Eleitoral, que precisa criar
novas leis para que se evite e se punam exemplarmente todos os envolvidos.
"A violência em
contextos políticos, historicamente, era resultado do acirramento das disputas.
As eleições de 2024 mostraram candidatos que usam a violência – seja ela
verbal, psicológica ou física – como estratégia de campanha. A Justiça
Eleitoral tem o dever de impedir isso. O emprego da violência como estratégia
de campanha tem que ser encarado como abuso, e daí deve derivar a cassação do
registro e a inelegibilidade desses candidatos e de quem colabora com
eles", diz.
"Eleições
disputadas por membros e simpatizantes do crime organizado de tipo violento não
podem ser consideradas eleições normais. Porque essas candidaturas não têm
compromisso com as regras e isso deixa os demais candidatos em situação de
desvantagem", emenda.
Para a cientista
política Rosemary Segurado, professora da PUC-SP, a penetração da performance
cada vez mais radicalizada da extrema direita em uma parcela considerável da
sociedade é preocupante não só do ponto de vista do processo eleitoral, mas de
educação política.
"Esse
comportamento é muito perigoso e ele desperta ou reforça numa parcela do
eleitorado a visão de que é o valentão quem vai resolver os problemas da
cidade, deslocando um pouco o mito do 'messianismo' para o valentão.
E a juventude tem sido muito atraída por esse perfil", analisa.
·
Fascismo neoliberal
Doutor em geografia e
especialista em análise da mídia, Francisco Fernandes Ladeira lembra que o
recrudescimento da ultradireita neofascista, que nos trouxe ao fator Marçal em
2024, teve início quando o debate político mudou de eixo e o campo progressista
foi, aos poucos, abandonando as críticas ao modelo neoliberal para "morder
a isca" da chamada "pauta de costumes" – que diz respeito aos
direitos e à inclusão – lançada pela direita que começava a se radicalizar.
"Essa era a pauta
da eleição presidencial de 2010, quando o PSDB, inclusive, escondeu seu viés
privatista. Oito anos depois, a extrema direita conseguiu direcionar a pauta da
eleição para o que conhecemos como 'pauta dos costumes'. Consequentemente,
puderam divulgar todo tipo de fake news sobre uma provável vitória do
progressismo 'ameaçar os tradicionais valores da família cristã brasileira'. A
esquerda mordeu a isca", disse à Fórum.
Ladeira resgata ainda
a máxima marxista que aponta ser o fascismo a “carta na manga” que o sistema
capitalista possui quando a democracia burguesa já não é mais suficiente para
manter os lucros dos grandes capitalistas.
"Pablo Marçal é
mais bolsonarista que o próprio Bolsonaro. Diferentemente do ex-presidente, ele
realmente representa o slogan 'liberal na economia, conservador nos costumes'.
Se Nietzsche dizia que o cristianismo é um platonismo vulgar para as massas;
podemos dizer que o 'marçalismo' é a racionalidade neoliberal vulgar para
as massas. Nos discursos de Marçal estão presentes todas as ilusões difundidas
na atual fase do capitalismo, sobretudo a chamada 'meritocracia' (a
responsabilização do indivíduo por sua situação econômica)", explica.
A posição é
compartilhada pelo doutor em economia Paulo Kliass, membro da carreira de
Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Segundo ele, o financismo tem preferência por candidaturas e programas de sua
confiança.
"O caso mais
concreto foi em 2018, na hora que o Paulo Guedes entrou na campanha de
Bolsonaro e as alternativas da terceira via não se viabilizaram eleitoralmente.
Eles caíram sem nenhuma dúvida, a despeito do passado do Bolsonaro
de defesa da Ditadura, da tortura: 'não, ele está conosco porque o Paulo
Guedes é um cara nosso e nós achamos que na política econômica vamos ter
influência. O cara é branco neofascista, mas o que interessa é que na política
econômica vamos estar bem seguros'", rememora.
Para isso, o avanço da
ultradireita contou com a atuação imprescindível da mídia liberal que, embora
mostre certa divergência com a ultradireita na chamada "pauta de
costumes", coaduna com o modelo econômico cunhado por Milton Friedman e
imposto via Consenso de Washington aos países periféricos com vistas a aumentar
o domínio e os lucros do sistema financeiro internacional.
"A economia é um
dos principais elos entre os meios de comunicação neoliberais e a ultradireita.
E essa relação é explícita. Os caras abriram mão de quaisquer pruridos na época
do Bolsonaro, porque tinham um apoio explícito à política do Paulo Guedes",
diz Kliass.
·
Globo lixo? Não é bem
assim
Fernandes Ladeira, no
entanto, afirma que essa aliança entre a mídia liberal e a ultradireita não se
torna perceptível para uma determinada parcela da população, que adota um
discurso incongruente para defender "mitos", como Bolsonaro e Marçal,
que propagam a narrativa de um falso antagonismo.
"Apesar de
inúmeras matérias denunciando a 'internacional fascista', a GloboNews, por
exemplo, está longe de ser 'antifascista' (haja vista seu apoio antecipado à
candidatura do 'bolsonarista moderado' Tarcísio de Freitas para a Presidência
da República em 2026). Há também certa conveniência nessa relação. Mídia e
neofascistas podem se aliar em determinados momentos; e se afastar um pouco em
outros. Ambos se retroalimentam quando estamos falando em antipetismo,
submissão à agenda externa imperialista e menor atuação do Estado na economia.
Na época dos noticiários inflamados sobre a farsesca Operação Lava Jato, os
neofascistas, começando a sair do armário, vibravam a cada edição do Jornal
Nacional. Quando a Globo, que apoiou Bolsonaro em 2018, ensaiou uma suposta
oposição ao governo do ex-capitão, virou 'Globo lixo'”, lembra.
Para enganar o
eleitorado sobre esse falso antagonismo, o neofascismo contou com as redes
sociais, que foram manipuladas de forma inédita por Pablo Marçal nas eleições
atuais. Ex-coach, o milionário montou uma estrutura de premiação em dinheiro
pago a milhares de integrantes de uma milícia digital aglutinada na
plataforma Discord, que buscam, assim como o líder, acumular fama e fortuna
como influenciadores digitais.
"Os algoritmos
das redes sociais são estruturados para prender a atenção, premiando o
alarmismo, informações 'chocantes' e teorias da conspiração. Um prato
cheio para a extrema direita, que radicaliza cada vez mais o seu discurso para
gerar engajamento, auxiliada pela lógica do lucro das grandes
plataformas", explica Edgard Piccino, analista de redes sociais da Fórum.
·
"Meritocracia da
prosperidade"
Participando do jogo
obscuro com a mídia liberal e impulsionado pelas redes, Marçal dá um passo além
do que foi feito por Carlos Bolsonaro (PL-RJ) no chamado Gabinete do Ódio,
desafiando a hegemonia do ex-presidente no comando da ultradireita tupiniquim.
O ex-coach ainda
adapta o discurso neoliberal em forma de pregação para cooptar uma outra
parcela do eleitorado bolsonarista: os evangélicos ligados aos pastores
midiáticos e a uma gama de igrejas neopentecostais.
"A meritocracia
marçalista casa muito bem com a teologia da prosperidade, pois, em última
análise, elas só abençoam quem 'merece'. É o cara que se 'esforçou' equivalente
ao que 'foi fiel' e Deus 'honrou' sua fidelidade. No fundo, nas duas ideologias
(marçalista e prosperidade) o que vale é o 'esforço humano' para alcançar
aquilo que, na verdade, só vem para pouquíssimos (e eles sabem disso), mas é
uma lógica lotérica, de que, em milhões, um ganha. E esse que 'dá certo' serve
de exemplo para fidelizar e manipular a massa, que faz o que pode para 'chegar
a sua vez'. É uma espécie de bet espiritual/mental. Milhões apostam, milhões
perdem, mas os que ganham são os que são anunciados/projetados, fazendo com que
os outros 'acreditem'. Não há diferença entre o 'eu sou a Universal', 'faz o M'
e o 'profetize' das bets", diz pastor Zé Barbosa, teólogo, escritor,
pós-graduado em ciências políticas e pastor da Comunidade de Jesus em Campina
Grande (PB).
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Fator Marçal e a
disputa presidencial em 2026
Condenado à prisão
como membro de uma quadrilha que dava golpes em correntistas de bancos pela
internet e satirizado por se perder em uma excursão com 32 doutrinados no Pico
dos Marins em janeiro de 2022, Pablo Marçal tornou-se o principal protagonista
na nacionalizada eleição paulistana.
O caos levado pelo
ex-coach ao pleito em São Paulo é, antes de tudo, um convite para se refletir
sobre o processo eleitoral e os rumos da democracia, que vem sendo surrada com
o recrudescimento do neofascismo aliado ao projeto de acumulação neoliberal – tema
que, infelizmente, tem ficado cada dia mais à margem do debate na política e na
sociedade.
Para a procuradora
Silvana Batini, o momento demanda ampliação do debate para repensarmos os
limites da autonomia partidária, democracia interna dos partidos e modelos de
responsabilização objetiva para determinadas infrações graves de candidatos.
"Estamos, nestas
eleições, todos estupefatos com a escalada da violência e da vulgaridade de
determinados candidatos. Mas ninguém vai aos partidos políticos perguntar o que
eles têm a dizer sobre essa deterioração do ambiente eleitoral. Partidos que
têm o monopólio das candidaturas e que detêm parcela enorme do orçamento
público precisam ser comprometidos com a restauração da saúde do debate
político. São eles que arregimentam as lideranças e as transformam em
candidaturas", diz.
Ex-ministro do
Trabalho e da Previdência no primeiro mandato de Lula e titular de outras três
pastas no governo Dilma Rousseff, Ricardo Berzoini afirma que estas eleições
oferecem ainda uma oportunidade ao campo progressista para rever de forma
urgente a estratégia não somente eleitoral, mas de atuação política.
"Creio que a
maioria dos eleitores quer debater os seus problemas cotidianos, a educação, a
saúde, a mobilidade, segurança, etc. É um erro entrar na pauta da direita. A
desigualdade social, que é da natureza do capitalismo, e acirrada pelo
neoliberalismo, joga a maioria da população para uma vida muito difícil, com
carências extremas. Cabe fazer política com essas questões o tempo todo, para
ter legitimidade de tratar disso no período eleitoral", disse à Fórum.
Berzoini ainda se
mostra incrédulo como "todos tenham caído no debate de interesse do
Marçal" e defende que a pauta econômica volte para o centro do debate
político.
"A mídia
empresarial e até os espaços do campo popular ficam debatendo a cadeirada, o
soco. Marçal quer exatamente isso. Nós temos que mostrar que o modelo
liberal-financista está sacrificando a maioria da população, que ferrou a saúde
pública, a educação, que joga milhares de jovens a virarem escravos do iFood e
do Uber e que não permite acesso aos direitos básicos", enfatiza o
ex-ministro.
Berzoini afirma ainda
que caberá ao campo progressista rever hoje sua atuação de forma séria para que
o fator Marçal – que sairá vencedor mesmo se não for ao segundo turno das
eleições paulistanas – não desfira mais um soco na democracia e no debate amplo
de ideias, especialmente sobre as causas da desigualdade social, dentro da
própria esquerda.
"Que tal
discutirmos nossas fraquezas, a desorganização, a falta de um planejamento
estratégico e a natureza cada vez mais eleitoreira da esquerda brasileira?
2026, nesse quadro, depende de São Lula, nosso padroeiro das eleições
impossíveis. Se a esquerda quiser sobreviver ao pós-Lula, precisa discutir sua
realidade agora", conclui.
¨
Pastel, urna
eletrônica e resistência. Por Josué de Souza
Estamos na semana das
eleições municipais de 2024. É aquele momento do ano em que o cheiro de pastel
na esquina se mistura com promessas tão mirabolantes que a gente já sabe: vão
evaporar antes mesmo da urna esfriar. E, claro, o que não falta é candidato
engomadinho, comendo pastel e pão com bolinho, fingindo ser o
"povão". Não está no gibi.
No próximo domingo,
milhões de brasileiros, exatamente 155.912.680 almas, vão marchar até as urnas
eletrônicas para escolher o futuro das suas cidades. Ou, pelo menos, tentar. O
número é bonito, um salto de 5,4% desde as últimas eleições, lá em 2020. Crescemos
no eleitorado, assim como cresceu aquele cansaço que pesa nos ombros de quem já
ouviu promessas demais. Não suportamos mais briga por conta de politica!
E olha só, somos uma
das maiores democracias do mundo, sim senhor! Mesmo que a turma com síndrome de
vira-lata teime em não reconhecer. Vamos votar de forma eletrônica, moderna,
confiável. Aliás, engraçado: aqueles que, em 2022, questionavam as urnas eletrônicas
agora estão de volta, com o rabo entre as pernas. Nenhum desistiu de ser
candidato este ano. O principal porta-voz dessa teoria, inclusive, aqui na
aldeia, brigando voto a voto pra convencer o eleitor a, mais uma vez, confiar
ir votar na bendita urna eletrônica.
E como se não
bastasse, até o filho dele, o último da família que não era político, resolveu
virar candidato. Coitado, herdeiro da fama, mas sem talento nem para falar em
público. Dizem que o rapaz calado é um poeta, mas basta abrir a boca que cada
palavra é um voto a menos.
No meio dessa
tragicomédia, conforme os números do Tribunal Superior Eleitoral, a juventude
que a gente achava perdida, a geração Nem-Nem, resolveu dar as caras. São
1.836.081 jovens de 16 e 17 anos, com título na mão e um brilho nos olhos,
ainda acreditando que o futuro é mais do que uma metáfora cansada. Um aumento
de 78%! E não é que isso dá um certo alívio?
Do outro lado, a turma
da resistência, os velhinhos também não ficaram pra trás. O eleitorado acima de
70 anos cresceu 12%. Agora são 15.208.667 pessoas nessa faixa etária. Gente que
já votou com cédula de papel, enfrentou fila no sol, na chuva, e que, no
próximo domingo, vai estar lá de novo, firme e forte. Só os com mais de 79 anos
já somam 4.826.663. Resistência é pouco pra descrever.
No país inteiro,
15.313 candidatos a prefeito estão na pista, disputando cada aperto de mão,
cada sorrisinho de canto de boca. Para as câmaras municipais, são 423.908 nomes
na corrida. Um mar de gente querendo a bênção do eleitor.
Aqui em Blumenau,
cinco corajosos se arriscaram na disputa pela Prefeitura, uma queda brusca em
comparação a 2020, quando 12 se jogaram na arena. Para o legislativo, a
história não é muito diferente: 184 candidatos registrados, quase metade da
última eleição, que contou com 371. Um deles é um dos líderes da micareta que
promoveram em frente ao quartel que, preso é candidato a vereador pela urna
eletrônica. Coerência mandou abraços! Fico perguntando se ele agora sabe o
código fonte.
Em meio a essa
enxurrada de números, o mais importante é que essa será a primeira eleição
depois do ataque à democracia que teve seu ápice no fatídico 8 de janeiro de
2023. Digo ápice porque, a nossa democracia, já vinha sendo espancada durante
os quatro anos que o inelegível ficou no poder. Sobreviveu, mesmo maltrapilha.
E, quer saber? Que domingo seja uma festa, não a de Selma, mas da democracia.
Não da divisão, mas a do respeito, da diversidade e sobretudo da pacificação.
Vida longa à democracia! Que ela resista, mesmo que seja de pastel na mão e
voto eletrônico na outra.
Fonte: Fórum/Brasil
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