Planejamento reprodutivo: sociedade mudou,
mas falta de informação e educação sexual ainda são empecilhos
As transformações da
sociedade são uma constante ao longo das décadas. Cultura, tecnologia, mercado
de trabalho, acesso à informação e até mesmo as relações humanas vão se
moldando com o passar dos anos para atender às demandas que vão surgindo. Uma
dessas áreas que se transforma e ganha protagonismo é a de planejamento
reprodutivo. Com o aumento da longevidade e um papel cada vez mais atuante da
mulher em todas as esferas, aliado ao avanço da ciência – com novas técnicas
tanto de contracepção quanto de preservação da fertilidade, como o congelamento
de óvulos –, planejar o momento certo para uma gravidez torna-se cada vez mais
possível. Contudo, a falta de informação e uma lacuna de educação sexual ainda
são empecilhos.
“Infelizmente, a falta
de conversa sobre o planejamento reprodutivo na vida da mulher e da sociedade
ainda é generalizada. Seja na esfera familiar, governamental, da iniciativa
privada, não há preocupação em promover esse acesso à informação. Então, as mulheres,
independentemente da idade, têm pouco acesso à informação de qualidade no
decorrer da vida, e acabam ficando à mercê do que acontece”, destaca Andrea
Ciolette Baes, diretora de Saúde Feminina da Organon.
Pesquisas realizadas
pela Organon em parceria com a B2Mamy mostram que tanto mulheres das classes C
e D quanto mulheres das classes A e B, de acordo com a classificação do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não tiveram acesso ao
planejamento familiar: as taxas de gestações não planejadas foram de 78,6% e
79,2%, respectivamente. Em quase metade dos casos, uma mesma mulher vivenciou
mais de uma gestação inesperada.
Para Carolina Sales,
médica ginecologista, professora na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto
(FMRP-USP) e pesquisadora em contracepção, a maneira como a saúde da mulher e
as próprias políticas reprodutivas são enxergadas ainda são um reflexo cultural:
“A saúde da mulher não é prioritária para os governos de uma forma geral, como
política de Estado. Isso tem muito a ver também com uma questão de machismo
estrutural, que coloca a saúde feminina nessa posição de pouca importância.
Então, apesar de números alarmantes de gestação não planejada, e mesmo de
gestação em adolescentes, ela não é prioridade.”
• Lacuna na educação sexual e participação
masculina
Sales destaca ainda
que a falta de educação em saúde sexual é um dos principais empecilhos no
acesso pleno ao planejamento reprodutivo. “O planejamento reprodutivo deve ser
realizado a partir do momento em que há risco de gravidez. Mas isso vai
depender de vários fatores, como nível socioeconômico, grau de vulnerabilidade,
acesso à informação”, aponta.
Ela explica que,
apesar de ser um tema ainda polemizado, é necessário ter em mente que educação
sexual não é sobre estimular o início da vida íntima, mas sim promover o
diálogo a respeito de temas do desenvolvimento e do cuidado com o corpo:
“Quando essa educação ocorre, há uma postergação da idade da primeira relação
sexual. E quando essa relação ocorre, ela é protegida, o que evita uma eventual
gestação não planejada e infecções sexualmente transmissíveis.”
Dados da Pesquisa
Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada em 2019 pelo IBGE, indicam que
35,4% dos alunos de 13 a 17 anos de idade já tiveram relação sexual alguma vez
na vida. Desses, apenas 63,3% afirmaram usar preservativo nas relações. Outro dado
que chama a atenção é a menção à pílula do dia seguinte como método
contraceptivo, apontado por 17,3% dos adolescentes. Os números evidenciam que
não falar do tema não necessariamente se reflete em evitar que uma relação
aconteça.
Além disso,
historicamente, questões associadas à saúde feminina por muito tempo foram
deixadas de lado pela medicina, que até poucos anos atrás tinha como base o
organismo masculino e suas demandas. Em consequência, no imaginário popular a
responsabilidade de evitar uma gestação não planejada – em um contexto de
relacionamentos heterossexuais – recai sobre a mulher. Isso coloca ainda mais
desafios para que o debate sobre planejamento reprodutivo avance mais
rapidamente e se traduza em mais ferramentas para mudar esse cenário.
“Quando a gente
planeja dar a informação sobre contracepção, ainda pensamos apenas nas
mulheres, como se a responsabilidade toda caísse sobre elas. Como sociedade,
ainda reforçamos isso. É algo que precisamos mudar, porque a gravidez não
planejada não afeta apenas a vida da mulher”, reforça Baes. Para ela, a maneira
como a comunicação sobre planejamento reprodutivo é feita precisa ser repensada
para que haja uma divisão de responsabilidades.
Durante a etapa
qualitativa das pesquisas realizadas pela Organon, uma das principais queixas
foi justamente o afastamento emocional e financeiro dos homens ao longo da
gestação. No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos, de acordo
levantamento do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas
(IBRE-FGV).
• Percepção e impacto de uma gestação não
planejada
Nos últimos anos, as
transformações sociais também impactaram a percepção sobre o momento ideal para
ter uma gestação – assim como a própria decisão de não ter filhos. As mulheres
estão mais ativas no mercado de trabalho, estudam mais tempo e exploram outras
possibilidades além do gestar.
As mulheres ouvidas
pelas pesquisas apontaram como motivos para não desejar engravidar justamente
os impactos profissionais, financeiros, emocionais e na liberdade individual.
Soma-se a isso o fato de que a natureza não planejada de uma gestação tem sido
associada a maiores chances de um pré-natal inadequado, maior risco de
violência doméstica, maior risco de depressão pós-parto, de mortalidade materna
e infantil, explica Sales. A pesquisadora destaca que as consequências não se
limitam à esfera individual:
“Outras coisas entram
em jogo. No Brasil, um estudo de 2014 mostra que uma gestação não planejada
custa R$3.715 até o parto. Esse gasto total soma até R$6,6 bilhões por ano.
Isso sem falar no abandono dos estudos quando essa gravidez ocorre na
adolescência, o que perpetua o ciclo da pobreza. A contracepção é um ponto
muito importante, porque o ganho é para toda a sociedade. Até mesmo o PIB de
países onde não há acesso a esse planejamento é inferior quando comparado
àqueles que oferecem esse recurso.”
O estudo “Adding It
Up: Investing in Contraception and Maternal and Newborn Health 2019”, do
Instituto Guttmacher, mostrou que das 41 mil brasileiras entre 15 e 49 anos que
desejavam evitar a gravidez, 11% tinham necessidades contraceptivas não
atendidas. No país, os métodos tradicionais, como pílula oral e preservativos,
ainda são os mais utilizados.
• Informação qualificada sobre
planejamento reprodutivo
Ambas as especialistas
apontam para a falta de investimento em campanhas de conscientização sobre o
planejamento reprodutivo. “Só se fala dos riscos de métodos hormonais, por
exemplo, mas não se fala sobre outras possibilidades ou sobre o planejamento em
si. Precisamos de campanhas mais amplas, que estejam no meio digital, no
Instagram, onde as pessoas estão”, aponta Sales.
Uma terceira pesquisa
realizada pela Organon, em parceria com a Ipsos, mostrou que 66% das mulheres
buscam ativamente informações sobre métodos contraceptivos, com uma média de
três a quatro fontes. A primeira fonte é o médico, enquanto o segundo lugar é
ocupado pelo Google. Redes sociais como Youtube, Instagram e Facebook também
foram mencionadas.
Por isso, é necessário
investir na disseminação de informação de qualidade sobre planejamento
reprodutivo, desde os métodos contraceptivos disponíveis, o acesso – seja pela
rede pública ou privada –, contraindicações e, claro, sempre direcionando a
pessoa a buscar um profissional de saúde de sua confiança.
Em outras palavras, é
preciso qualificar o debate, como defende Sales: “A prevalência de uso de
contraceptivos no Brasil é mais de 80%, mas a maior parte desses métodos são de
curta duração, ou seja, dependem de a pessoa lembrar de usar e usar adequadamente.
Então, a porcentagem de mulheres que engravidam sob esses métodos ainda é alta.
Falta informação e acesso a outras opções, como o dispositivo intrauterino
(DIU) e o implante.”
• Caminho é longo, mas otimista
Apesar dos obstáculos
a serem superados, o futuro é visto por uma lente otimista. A própria ampliação
do debate nos últimos anos já é vista como uma conquista, como destaca Baes, ao
observar uma maior participação de entidades na construção do diálogo sobre
planejamento reprodutivo.
“Temos notado que a
quantidade de entidades, sejam elas públicas ou privadas, mais preocupadas com
esse tópico aumentou. Elas estão mais preocupadas em contribuir para o debate,
em buscar mais opções para essas mulheres, em construir pontes e gerar informação
e conhecimento. Há uma mobilização maior, mas ainda há muito trabalho a fazer”,
afirma.
Baes defende que a
mulher deve ter todas as informações disponíveis para que possa fazer a escolha
do método junto do seu profissional, não apenas acatar uma decisão sem ter
participação ativa. Isso esbarra em outro desafio: a capacitação dos
profissionais. “Há profissionais com muito conhecimento, mas que precisam ouvir
mais a paciente para entender qual método contraceptivo é o mais recomendado,
qual informação essa pessoa está precisando. A orientação médica deve levar em
conta essa personalização”, completa.
Para Sales, o futuro
do planejamento reprodutivo acessível e bem-sucedido no país passa pela
presença de mulheres nos cargos de tomada de decisão em saúde: “A maior parte
das decisões sobre a saúde feminina sempre foi tomada por homens, e talvez isso
simplesmente não seja prioridade para eles. Precisamos da presença de mulheres
não apenas diretamente na política, mas também nos cargos de decisões dentro
dos sistemas de saúde, como em operadoras de convênios, auditorias, nas
agências reguladoras. Isso faz diferença.”
Fonte: Futuro da Saúde
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