terça-feira, 1 de outubro de 2024

Planejamento reprodutivo: sociedade mudou, mas falta de informação e educação sexual ainda são empecilhos

As transformações da sociedade são uma constante ao longo das décadas. Cultura, tecnologia, mercado de trabalho, acesso à informação e até mesmo as relações humanas vão se moldando com o passar dos anos para atender às demandas que vão surgindo. Uma dessas áreas que se transforma e ganha protagonismo é a de planejamento reprodutivo. Com o aumento da longevidade e um papel cada vez mais atuante da mulher em todas as esferas, aliado ao avanço da ciência – com novas técnicas tanto de contracepção quanto de preservação da fertilidade, como o congelamento de óvulos –, planejar o momento certo para uma gravidez torna-se cada vez mais possível. Contudo, a falta de informação e uma lacuna de educação sexual ainda são empecilhos.

“Infelizmente, a falta de conversa sobre o planejamento reprodutivo na vida da mulher e da sociedade ainda é generalizada. Seja na esfera familiar, governamental, da iniciativa privada, não há preocupação em promover esse acesso à informação. Então, as mulheres, independentemente da idade, têm pouco acesso à informação de qualidade no decorrer da vida, e acabam ficando à mercê do que acontece”, destaca Andrea Ciolette Baes, diretora de Saúde Feminina da Organon.

Pesquisas realizadas pela Organon em parceria com a B2Mamy mostram que tanto mulheres das classes C e D quanto mulheres das classes A e B, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não tiveram acesso ao planejamento familiar: as taxas de gestações não planejadas foram de 78,6% e 79,2%, respectivamente. Em quase metade dos casos, uma mesma mulher vivenciou mais de uma gestação inesperada.

Para Carolina Sales, médica ginecologista, professora na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e pesquisadora em contracepção, a maneira como a saúde da mulher e as próprias políticas reprodutivas são enxergadas ainda são um reflexo cultural: “A saúde da mulher não é prioritária para os governos de uma forma geral, como política de Estado. Isso tem muito a ver também com uma questão de machismo estrutural, que coloca a saúde feminina nessa posição de pouca importância. Então, apesar de números alarmantes de gestação não planejada, e mesmo de gestação em adolescentes, ela não é prioridade.”

•        Lacuna na educação sexual e participação masculina

Sales destaca ainda que a falta de educação em saúde sexual é um dos principais empecilhos no acesso pleno ao planejamento reprodutivo. “O planejamento reprodutivo deve ser realizado a partir do momento em que há risco de gravidez. Mas isso vai depender de vários fatores, como nível socioeconômico, grau de vulnerabilidade, acesso à informação”, aponta.

Ela explica que, apesar de ser um tema ainda polemizado, é necessário ter em mente que educação sexual não é sobre estimular o início da vida íntima, mas sim promover o diálogo a respeito de temas do desenvolvimento e do cuidado com o corpo: “Quando essa educação ocorre, há uma postergação da idade da primeira relação sexual. E quando essa relação ocorre, ela é protegida, o que evita uma eventual gestação não planejada e infecções sexualmente transmissíveis.”

Dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada em 2019 pelo IBGE, indicam que 35,4% dos alunos de 13 a 17 anos de idade já tiveram relação sexual alguma vez na vida. Desses, apenas 63,3% afirmaram usar preservativo nas relações. Outro dado que chama a atenção é a menção à pílula do dia seguinte como método contraceptivo, apontado por 17,3% dos adolescentes. Os números evidenciam que não falar do tema não necessariamente se reflete em evitar que uma relação aconteça.

Além disso, historicamente, questões associadas à saúde feminina por muito tempo foram deixadas de lado pela medicina, que até poucos anos atrás tinha como base o organismo masculino e suas demandas. Em consequência, no imaginário popular a responsabilidade de evitar uma gestação não planejada – em um contexto de relacionamentos heterossexuais – recai sobre a mulher. Isso coloca ainda mais desafios para que o debate sobre planejamento reprodutivo avance mais rapidamente e se traduza em mais ferramentas para mudar esse cenário.

“Quando a gente planeja dar a informação sobre contracepção, ainda pensamos apenas nas mulheres, como se a responsabilidade toda caísse sobre elas. Como sociedade, ainda reforçamos isso. É algo que precisamos mudar, porque a gravidez não planejada não afeta apenas a vida da mulher”, reforça Baes. Para ela, a maneira como a comunicação sobre planejamento reprodutivo é feita precisa ser repensada para que haja uma divisão de responsabilidades.

Durante a etapa qualitativa das pesquisas realizadas pela Organon, uma das principais queixas foi justamente o afastamento emocional e financeiro dos homens ao longo da gestação. No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos, de acordo levantamento do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE-FGV).

•        Percepção e impacto de uma gestação não planejada

Nos últimos anos, as transformações sociais também impactaram a percepção sobre o momento ideal para ter uma gestação – assim como a própria decisão de não ter filhos. As mulheres estão mais ativas no mercado de trabalho, estudam mais tempo e exploram outras possibilidades além do gestar.

As mulheres ouvidas pelas pesquisas apontaram como motivos para não desejar engravidar justamente os impactos profissionais, financeiros, emocionais e na liberdade individual. Soma-se a isso o fato de que a natureza não planejada de uma gestação tem sido associada a maiores chances de um pré-natal inadequado, maior risco de violência doméstica, maior risco de depressão pós-parto, de mortalidade materna e infantil, explica Sales. A pesquisadora destaca que as consequências não se limitam à esfera individual:

“Outras coisas entram em jogo. No Brasil, um estudo de 2014 mostra que uma gestação não planejada custa R$3.715 até o parto. Esse gasto total soma até R$6,6 bilhões por ano. Isso sem falar no abandono dos estudos quando essa gravidez ocorre na adolescência, o que perpetua o ciclo da pobreza. A contracepção é um ponto muito importante, porque o ganho é para toda a sociedade. Até mesmo o PIB de países onde não há acesso a esse planejamento é inferior quando comparado àqueles que oferecem esse recurso.”

O estudo “Adding It Up: Investing in Contraception and Maternal and Newborn Health 2019”, do Instituto Guttmacher, mostrou que das 41 mil brasileiras entre 15 e 49 anos que desejavam evitar a gravidez, 11% tinham necessidades contraceptivas não atendidas. No país, os métodos tradicionais, como pílula oral e preservativos, ainda são os mais utilizados.

•        Informação qualificada sobre planejamento reprodutivo

Ambas as especialistas apontam para a falta de investimento em campanhas de conscientização sobre o planejamento reprodutivo. “Só se fala dos riscos de métodos hormonais, por exemplo, mas não se fala sobre outras possibilidades ou sobre o planejamento em si. Precisamos de campanhas mais amplas, que estejam no meio digital, no Instagram, onde as pessoas estão”, aponta Sales.

Uma terceira pesquisa realizada pela Organon, em parceria com a Ipsos, mostrou que 66% das mulheres buscam ativamente informações sobre métodos contraceptivos, com uma média de três a quatro fontes. A primeira fonte é o médico, enquanto o segundo lugar é ocupado pelo Google. Redes sociais como Youtube, Instagram e Facebook também foram mencionadas.

Por isso, é necessário investir na disseminação de informação de qualidade sobre planejamento reprodutivo, desde os métodos contraceptivos disponíveis, o acesso – seja pela rede pública ou privada –, contraindicações e, claro, sempre direcionando a pessoa a buscar um profissional de saúde de sua confiança.

Em outras palavras, é preciso qualificar o debate, como defende Sales: “A prevalência de uso de contraceptivos no Brasil é mais de 80%, mas a maior parte desses métodos são de curta duração, ou seja, dependem de a pessoa lembrar de usar e usar adequadamente. Então, a porcentagem de mulheres que engravidam sob esses métodos ainda é alta. Falta informação e acesso a outras opções, como o dispositivo intrauterino (DIU) e o implante.”

•        Caminho é longo, mas otimista

Apesar dos obstáculos a serem superados, o futuro é visto por uma lente otimista. A própria ampliação do debate nos últimos anos já é vista como uma conquista, como destaca Baes, ao observar uma maior participação de entidades na construção do diálogo sobre planejamento reprodutivo.

“Temos notado que a quantidade de entidades, sejam elas públicas ou privadas, mais preocupadas com esse tópico aumentou. Elas estão mais preocupadas em contribuir para o debate, em buscar mais opções para essas mulheres, em construir pontes e gerar informação e conhecimento. Há uma mobilização maior, mas ainda há muito trabalho a fazer”, afirma.

Baes defende que a mulher deve ter todas as informações disponíveis para que possa fazer a escolha do método junto do seu profissional, não apenas acatar uma decisão sem ter participação ativa. Isso esbarra em outro desafio: a capacitação dos profissionais. “Há profissionais com muito conhecimento, mas que precisam ouvir mais a paciente para entender qual método contraceptivo é o mais recomendado, qual informação essa pessoa está precisando. A orientação médica deve levar em conta essa personalização”, completa.

Para Sales, o futuro do planejamento reprodutivo acessível e bem-sucedido no país passa pela presença de mulheres nos cargos de tomada de decisão em saúde: “A maior parte das decisões sobre a saúde feminina sempre foi tomada por homens, e talvez isso simplesmente não seja prioridade para eles. Precisamos da presença de mulheres não apenas diretamente na política, mas também nos cargos de decisões dentro dos sistemas de saúde, como em operadoras de convênios, auditorias, nas agências reguladoras. Isso faz diferença.”

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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