quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Moisés Mendes: ‘O diabo se diverte com a farsa do duelo bíblico’

O sarcasmo é uma invenção do diabo, a mais debochada de todas as criaturas bíblicas. Foi o diabo que levou Pablo Marçal, no debate Folha/UOL dessa segunda-feira, à armadilha de, ao tentar depreciar Tabata, atacar as mulheres com essas frases:

“Oh, Tabata, se mulher votasse em mulher, você ia ganhar no primeiro turno. A mulher não vota em mulher, a mulher é inteligente. Ele tem sabedoria, ela tem experiência”.

Foi o diabo, mesmo não tendo sido citado diretamente por nenhum deles, que empurrou Marçal e Ricardo Nunes para o duelo que deveria esclarecer qual dos dois conhece mesmo a Bíblia.

O diabo incitou Marçal a dizer que sabe de cor, sem precisar de colas, versículos da Bíblia adequados a todas as situações. Nunes caiu na arapuca e respondeu com o salmo 133:

“Oh, quão bom é que os irmãos habitem com união. É como o óleo precioso que desce sobre a cabeça e a barba de Aarão”.

O prefeito tinha a voz baixa e vacilante, ao se arriscar a citar um trecho longo e complexo, e Marçal respondeu na hora com a singeleza de um versículo pela metade do salmo 69: “O zelo pela sua casa me consumiu”.

E avisou, logo depois da citação: “O verdadeiro cristão vai para o confronto”. E assim estava inaugurado o primeiro debate sobre pretensos temas bíblicos, disfarçado de debate político, quase como um quiz show.

Marçal disse que Nunes não sabe nada da Bíblia, Nunes replicou que tem um grupo de oração que se reúne na sua casa, e Boulos e Tabata, sem grandes conhecimentos na área, foram alijados do game.

Marçal desafiou Nunes: “Mostra quem é o pai de Melquisedeque, mostra pra nós pelo menos dois filhos de José. Mostra pra nós que é assíduo na palavra e que é homem de oração”.

Nunes, disse o ex-coach, como se discursasse no Pico dos Marins em meio a chuvarada e ventania, não sabe que a Bíblia tem mais de 30 mil versículos. E o prefeito seria incapaz de citar pelo menos dois.

Disse várias vezes que pede perdão. Que esperou ser perdoado por Tabata, ao admitir que havia ofendido a memória do pai dela, mas a candidata não se manifestou e ele ficou chateado.

E pediu perdão também por ter “trabalhado para um canalha”, que o induziu quando jovem a cometer crimes, ao ser cobrado de novo pela condenação por aplicar golpes pela internet em velhinhas.

O Marçal bíblico investiu muito na ideia do perdão, para amaciar a própria imagem. Mas talvez seja tarde demais, mesmo que tenha dito: “Faço gestão do meu corpo, da minha alma e da minha casa”.

O diabo, esse ser sarcástico, apoderou-se do modelo do debate, que permitia o livre pensar, e patrocinou o que se sabia que uma hora iria acontecer.

O que eles apresentam como religiosidade dominou pelo menos metade do duelo. Sempre em tom de farsa e marketing, como uma ostentação neopentecostal rasa do que Nunes e Marçal se esforçam para dizer que são.

Faltou Datena, ausente, para incorporar algum personagem adequado aos temas do enfrentamento. Como a tentação da citação é irresistível, citemos João 8:44:

“Vocês pertencem ao pai de vocês, o diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira.”.

Esses trechos devem ser declamados por alguém com uma voz semelhante à de Cid Moreira, com gargalhadas diabólicas ao fundo.

 

•        Marçalismo e teologia coaching, a racionalidade neoliberal para as massas. Por Francisco Fernandes Oliveira

Em suas múltiplas críticas à religião, Nietzsche chegou a afirmar que o cristianismo nada mais é do que um platonismo vulgarizado para as massas. Ou seja, a principal crença do Ocidente consiste numa simplificação da filosofia de Platão, baseada na dicotomia corpo/espírito, com a separação entre mundo físico e mundo das ideias ("profano" e "sagrado", no caso do cristianismo)

Parafraseando o pensamento nietzschiano, e trazendo-o para o presente contexto, podemos dizer que a chamada “teologia coaching” (cujo maior expoente, sem dúvida, é o candidato a prefeito de São Paulo, Pablo Marçal) se trata da “racionalidade neoliberal” traduzida para o povo.

Por “racionalidade neoliberal” podemos entender o modo de ser constitutivo dos diferentes sujeitos na sociedade capitalista contemporânea, em que a lógica da concorrência, típica de empresas, invade todo o tecido social. Assim como os citados platonismo e cristianismo, esta racionalidade também tem suas dicotomias: menos Estado, mais mercado; menos sociedade, mais indivíduo; menos serviços públicos, mais serviços privados, e por aí vai.

No léxico da “racionalidade neoliberal”, marcado por eufemismos, empregado é “colaborador”, objetivo é “meta”, motorista de aplicativo é “empreendedor”, especulação é “capital financeiro” e exploração é “flexibilidade”.

Além disso, há o nefasto princípio da “meritocracia”, que parte do pressuposto de que todos nós temos as mesmas oportunidades na vida, sendo cada um exclusivamente responsável por sua situação econômica e social. Lembrando a famosa frase da grande pensadora contemporânea “Filha do Didi”: “Todo mundo tem 24 horas no dia. Por que algumas pessoas conseguem fazer tantas coisas, e outras parecem não sair do lugar?”

Claro que, para herdeiros de milionários, nepo babies e faria limers da vida, a racionalidade neoliberal soa como música para os ouvidos. Justifica todos os seus privilégios. Mas como explicar que pessoas da classe trabalhadora também adotem este tipo de pensamento? É aí que entram a teologia coaching e sua mais popular ramificação, o marçalismo. 

Como todo fenômeno emergente, ambos não surgiram “do nada”. Operam com determinados valores já presentes na sociedade. Como nos ensinou o velho Marx, a ideologia dominante, em cada época, é a ideologia da classe dominante. Consequentemente, a racionalidade neoliberal é incessantemente propagandeada nos mais diferentes setores, principalmente nos veículos de comunicação de massa, desde as telenovelas, passando pelos intervalos comerciais e chegando aos noticiários.

Não por acaso, a mais recente peça publicitária de uma famosa marca de desodorante é protagonizada por um motoboy, que afirma que seu dia, devido a labuta intensa, “parece ter mais de 24 horas”. É a romantização da (auto)exploração.

Portanto, muitas pessoas, bombardeadas praticamente o tempo todo pela propaganda da racionalidade neoliberal, acabam aderindo a tais preceitos (mesmo que sejam contrários aos seus interesses de classe).

Caso o clássico “Tempos Moderno”, de Chaplin, tivesse uma versão contemporânea, provavelmente o protagonista, se pertencesse à classe média, estaria preenchendo planilhas às 22 horas de uma sexta-feira e se matriculando no décimo quinto MBA. Se fosse das classes populares, ele não estaria apertando parafusos loucamente em uma fábrica, mas passando dias e noites em uma correria frenética como entregador de aplicativo.

Conforme aponta o filósofo Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. Enquanto no capitalismo industrial, marcado pelas instituições disciplinares às quais se referia Foucault, o verbo norteador era “dever”, no capitalismo financeiro, o verbo predominante é “poder”. Eu posso me esforçar mais, eu posso trabalhar mais, eu posso me especializar mais. “Vive-se com a angústia de não estar fazendo tudo o que poderia ser feito, e se você não é um vencedor, a culpa é sua”, afirmou Han, em entrevista ao El País. Trata-se da clássica premissa: “Estude, enquanto eles dormem. Trabalhe, enquanto eles se divertem. Lute, enquanto eles descansam”.

Já no âmbito religioso, a racionalidade neoliberal encontrou enorme aderência na chamada “teologia da prosperidade”, doutrina teológica neopentecostal segundo a qual a abundância material é o desejo de Deus para seus fiéis. Nessa lógica, o acúmulo de bens materiais – que certamente seria reprovado por Jesus, com seus ideais de desapego – é visto como algo positivo. São os “prósperos empreendimentos” com a benção dos céus.

Como, no capitalismo, nada é tão ruim que não possa piorar, de acordo com o jornalista e teólogo Ranieri Costa, a teologia da prosperidade gerou uma espécie de ramificação laica: a teologia coaching. Só que, diferentemente de sua antecessora, na teologia coaching, o indivíduo “não se deu bem na vida porque não teve fé suficiente”; “mas por não ter se esforçado o suficiente”. Em outras palavras, o que antes era responsabilidade de Deus e de uma intervenção divina, agora é responsabilidade e está dentro do próprio homem (uma versão século XXI daquilo outrora conhecido como “self-made man”).

É inegável que as mentiras da teologia coaching têm forte apelo nas classes populares. Diante da situação cotidiana adversa, as pessoas querem se apegar a soluções fáceis. No capitalismo, o sonho de todos é enriquecer. Se for mais rápido, por meio de apostas online, seguindo um manual escrito por um coach picareta ou ajuda divina, melhor ainda! Remetendo a Bourdieu, a magia é o único apego para quem não tem perspectiva.

E assim figuras como Marçal chegam às periferias. Com uma linguagem supostamente da “quebrada”, ele consegue seduzir muitos jovens, público em fase de autoafirmação e mais vulnerável ao bombardeio publicitário nosso de cada dia. Desse modo, Marçal fala, para o “mano” – de uma maneira simples, acessível e direta – que, se ele se esforçar e seguir a cartilha coach, vai ter o mesmo padrão de vida do “playboy”.

No entanto, Bauman dizia que o consumo é uma festa em que todos são convidados, mas nem todos podem entrar. Além disso, é importante lembrar que, na corrida para o sucesso, o mano largou quilômetros de distância atrás do playboy.

Por outro lado, diante dessa realidade, é importante que os setores progressistas se mobilizem para desmascarar as linhas de pensamento que defendem a racionalidade neoliberal junto à população. Mostrar que o sistema econômico que tanto apregoam é o maior responsável pela exploração e autoexploração dos trabalhadores, por suas condições de vida adversas (e não o suposto esforço ineficiente das pessoas).

Caso contrário, se essa empreitada não for bem-sucedida, como aponta um meme bastante compartilhado nas redes sociais, porém de autoria desconhecida, o produto mais bem acabado e produzido em larga em escala do capitalismo continuará sendo o “pobre de direita”.

 

•        Marçal usa a estratégia do pitbull. Por Alex Solnik

Marçal está brincando de “o médico e o monstro”.

Depois de ter se comportado de forma civilizada no debate da Record, no modo “médico”, voltou ao normal, hoje, no debate do UOL, quando mais uma vez pôs na vitrine o seu “pior lado”, tendo como alvo Nunes, de quem precisa desesperadamente tirar intenções de votos para ir ao segundo turno.

Tal qual um pitbull que quando crava os dentes no calcanhar de sua vítima, não larga mais, ele passou os últimos minutos do debate repetindo a mesma pergunta sobre o B.O. da mulher de Nunes, há dez anos, por violência doméstica.

Nunes ficou acuado, sem responder, deixou claro que era seu calcanhar de Aquiles, um prato cheio para Marçal, que não tem o menor pudor em espezinhar seus oponentes nos pontos mais vulneráveis.

Não há dúvida que Marçal vai usar e abusar dessa fragilidade de Nunes nesta reta final e no próximo e último debate, quinta-feira, na Globo, sua última chance de abater o inimigo e a melhor, a três dias da hora do voto, período em que grande parte do eleitorado escolhe definitivamente seu candidato.

Mas terá de calibrar as dentadas para seu lado “médico” prevalecer sobre o “monstro” porque esse eleitor de última hora costuma votar na moderação, não nos extremos.

 

Fonte: Brasil 247

 

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