Fumaça impõe “experimento natural” na
Amazônia
É de manhã e José
Roberto Galdino, de 54 anos, se balança numa rede dentro do seu barco-casa de
madeira, que possui três andares, e está ancorado, sem previsão de partida, em
uma praia da margem direita do rio Negro, no Porto de Manaus, região central da
capital da fumaça na Amazônia. “A fumaceira à noite aqui é mais complicada, dá
tosse. Se eu levar você [de barco] às 10 horas da noite para olhar do outro
lado [do rio], tem dia que tu não enxerga nada, e desse lado também, porque é
uma cidade aqui, mas tu não enxerga as luzes”, diz o comandante sobre a névoa
das queimadas que encobre a cidade amazonense.
De janeiro até esta
segunda-feira, 30 de setembro, foram registrados no estado do Amazonas mais de
22 mil focos de fogo das queimadas – é o pior número em 26 anos do
monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que começou
em 1998.
A fumaça das queimadas
– prática de madeireiros e fazendeiros após os desmatamentos ilegais da
floresta ou das áreas agropecuárias, além dos incêndios criminosos em áreas de
conservação e em terras indígenas -, emite gases tóxicos como o gás carbônico
(CO2), metano (CH4), monóxido de carbono (CO) e nitroso de oxigênio (N2O).
Esses gases também contribuem no processo de aquecimento global permanecendo
décadas na atmosfera.
Na saúde humana, como
a do comandante Galdino, que acorda e dorme dentro do barco-casa, respirando
fumaça, os gases tóxicos provocam danos irreversíveis.
“Isso é mais ou menos
como se fosse um experimento natural, sabia? É como se você pegasse um monte de
gente e colocasse num ambiente cheio de fumaça, depois você conta quantos
morreram, é isso que nós vamos saber depois, nós vamos olhar para trás e ver o
que aconteceu”, afirma o médico Paulo Saldiva, patologista e professor da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista à
agência Amazônia Real.
Membro dos comitês da
Organização Mundial da Saúde (OMS) que estabeleceram os padrões de qualidade do
ar e definiu o potencial da poluição atmosférica que causa o câncer, Saldiva
diz que nunca viu tanta fumaça pairando no Brasil.
“Os efeitos são de
como fumar 4 a 5 cigarros por dia
involuntariamente. Se essa situação persistir você vai ter seguramente maior
número de casos de doenças respiratórias e cardiovasculares”, explica o médico,
de 70 anos de idade, dos quais 20 anos
dedicados às pesquisas sobre os impactos das queimadas na saúde humana.
“Você está fumando
alguns cigarros por dia sem ter escolha e diferente porque a dose é maior
porque o cigarro se acende um, espera um pouco, não se fuma as 24 horas do dia,
aqui a concentração é muito menor que do cigarro, mas o tempo de exposição vai durar semanas
contínuas”, explica Saldiva.
Como o meio de
trabalho de Galdino é o barco-casa, ele é obrigado, de qualquer forma, a ficar
respirando o ar insalubre que paira sob o rio Negro no Porto de Manaus. “É a
primeira vez em 40 anos trabalhando com navegação que vivencio esse cenário.
Fico pedindo pra chover, chove, mas não ameniza. Quando chove, não demora muito
para a neblina retornar novamente. Tem vez que fica cheiro de fumaça na roupa.
Não tem como fazer nada. É assim, não tem como fazer nada, infelizmente a
situação é essa”, conta o comandante.
Além das queimadas, a
estiagem extrema que afeta o Amazonas está na iminência de bater um novo
recorde da seca, em menos de um ano, com as águas dos rios baixando e
evaporando, transformando a paisagem dos leitos em bancos de areia.
Hoje, o nível do rio
Negro chegou 13,19 metros e está a 0,40 centímetros para alcançar a marca
histórica de 2023, quando a cota baixou para 12,70 metros, um recorde em 121
anos de medição na estação hidrológica do Porto de Manaus, que iniciou em 1902.
“A fumaça esculhamba
tudo porque, às vezes, tu quer uma mercadoria para levar para um interior
desse, tu não consegue chegar na data marcada, a seca atrapalha, a fumaça
atrapalha, o que tu tirava em cinco, seis dias de viagem, tu vai tirar em 10
dias”, afirma o comandante Galdino, que está há mais de um mês sem trabalho por
causa da falta de navegabilidade dos rios.
O comandante explica
como a fumaça e a seca prejudicam a navegabilidade entre os municípios, dos quais os acessos são os rios.
“Correm o risco de ficar sem insumos básicos e até sem energia pela falta do
óleo diesel que é transportado nas embarcações. Devido à fumaça, já não é mais
possível começar a navegar às seis horas da manhã como de costume. Em longas
viagens, geralmente o barco dá uma pausa à noite e retoma as atividades bem
cedo”, diz Galdino.
Durante o mês de
setembro, choveu 72 milímetros (mm) em Manaus, o que representa 56% da média
normal para o mês, conforme informações de estações meteorológicas e satélite
do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC).
• Mais câncer, infarto, bronquite
Diferente de um vírus,
como a Covid-19 que provocou uma pandemia mundial, a fumaça das queimadas não é
evidente em exames corriqueiros, mas a longo prazo gera manchas evidentes,
enfisema, bronquite e câncer nas pessoas. O câncer, em um fumante, demora em
torno de 20 a 30 anos para aparecer e seu pico é na faixa etária dos 50, mas
dependendo da genética da pessoa ele pode não depender desse tempo de latência.
“Hoje a maior causa de
câncer em não fumante é poluição do ar.
É algo em escala global, de 10 a 20% dos novos casos de câncer,
principalmente em mulheres não fumantes, são atribuíveis à poluição do ar no
mundo”, explica o médico Paulo Saldiva.
Outro ponto é que há
possibilidade de diferenciar a origem do câncer. “Esses cânceres eles têm uma
assinatura molecular distinta do câncer do tabaco, o tabaco que muda as
mutações de genes são um pouco diferentes dessa que dependem de uma via
inflamatória, então sim, a poluição do ar é um agente promotor de câncer
certamente de pulmão e provavelmente de bexiga, os mesmos que o cigarro dá”,
afirma o especialista em patologia.
Além de câncer, outras
infecções respiratórias se instalam e podem surgir doenças cardiovasculares com
um pulmão enfraquecido onde os brônquios se fecham [tubos por onde passa o
oxigênio] e dificultam a passagem do sangue bombeado pelo pulmão. “O coração
tem que bater contra um pulmão inflamado”, ressalta o médico.
O fechamento dos
brônquios, que ocorre com excesso em pessoas asmáticas, acaba acontecendo em
quem respira fumaça intensa. “Quando
você fecha o brônquio o vaso correspondente do lado do brônquio também fecha
para que o que entrou não seja mandado para fora do corpo, espalhado”,
complementa.
“Se o coração tiver
insuficiência cardíaca ou uma doença crônica pode significar que ele não
aguente, ele já está ali no limite”, ressalta Saldiva.
Outro fator que
acontece no processo inflamatório é um aumento na coagulabilidade do sangue. A
umidade do pulmão, segundo o médico, tem que estar na ordem dos 90, 95%. Com a
baixa umidade do ambiente devido às queimadas e seca, o pulmão precisa
compensar e gastar mais água, fazendo com que haja uma concentração maior de
sangue.
“Isso significa maior
risco de trombo, se o trombo se faz de
uma coronária ou numa artéria cerebral, pode dar complicação, se pegar numa
artéria coronária que é do coração dá infarto do miocárdio, se for num vaso cerebral
dar infarto cerebral”, diz.
Há ainda a questão da
ventilação nasal. Saldiva diz que quem bebe cerca de dois litros de água por
dia, ventila em média por dia 1.400 litros de ar em 24 horas, o que é muito
para se “consumir” de uma qualidade do ar em nível “péssimo”.
“O que entra no pulmão
tem uma velocidade de absorção comparada ao do intestino, é quase como se fosse
uma injeção endovenosa, então a superfície do pulmão é em torno de 100 metros
quadrados, é como manter uma quadra de tênis limpa com essa fuligem caindo em
cima, as pessoas que têm cortina, que tem uma superfície muito menor deve estar
sujando, o chão das casas deve estar sujo com essa fuligem, imagina o pulmão
com 100 metros quadrados”, conclui.
• O que dizem as autoridades
Procurados pela
agência Amazônia Real, o Governo do Amazonas, a Prefeitura de Manaus e até
a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz)
nacional não disponibilizam dados sobre as doenças respiratórias que afetam a
população pela fumaça dos incêndios florestais na Amazônia.
A Secretaria de Saúde
(SES) do Estado, afirma que entre julho e agosto de 2024 foram registrados 697
casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Comparado com o ano de 2023,
houve um aumento de quase 8%. A SES não informou se há registro de quantas
pessoas desenvolveram a doença por causa
da fumaça.
Segundo a secretaria,
de julho a agosto de 2022 foram registrados 1.072 casos de SRAG. Após a
Amazônia Real reenviar a mesma solicitação dias depois, a secretaria repassou
um número diferente: 762 casos de SRAG para o ano de 2022.
A reportagem perguntou
ao Ministério da Saúde, por meio de sua assessoria de imprensa, se o órgão vai
desenvolver uma nova categoria de dados sobre os índices de SRAG relacionados
ao impacto da fumaça na saúde humana. O MS não respondeu até o fechamento desta
matéria.
• Viver o “normal” no caos climático
Na fumaça das
queimadas é também encontrado o material particulado (PM2,5), que é um conjunto
de poluentes que se mantém suspenso na atmosfera devido ao seu pequeno tamanho.
A OMS diz que o PM2,5
é capaz de penetrar profundamente nos pulmões e entrar na corrente sanguínea,
causando impactos cardiovasculares, cerebrovasculares (AVC) e respiratórios. A
organização estabelece que a concentração anual média de material particulado
não deva ultrapassar o limite de 5 µg/m³ (microgramas por metro cúbico) para
minimizar riscos à saúde. A média de 24 horas para este poluente é de 15 µg/m³.
Na sexta-feira (27), o
nível da qualidade do ar em Manaus amanheceu “muito ruim”, com índice de 92.7
µg/m³, de acordo com o Sistema Eletrônico de Vigilância Ambiental (AppSelva),
da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Antes, dia 19, o nível da poluição
chegou a marcar péssimo com 159 µg/m³. Uma chuva que caiu neste fim de semana
amenizou a fumaça. A qualidade do ar está hoje em 29.7 µg/m³, mas longe do
recomendado pela OMS.
Mas, para os
manauaras, é preciso continuar vivendo como se o fim não fosse uma realidade
próxima, então a população continua no vai e vem do dia a dia, no Porto de
Manaus, mesmo correndo mais riscos, como é o caso de Ana Cristina Soares, de 44
anos, moradora da comunidade Bom Retiro, que fica no baixo rio Amazonas. Ela
conta que fez um transplante de medula óssea e precisou ir para Manaus cuidar
da saúde.
“Eu tenho muito
cuidado usando máscara direto e eu indico às pessoas que usem máscara para não
estar pegando vírus e passando para outras pessoas também, que tenham muito
cuidado mesmo. Eu sinto que a minha garganta está um pouco pesada por causa da
fumaça mesmo”, diz Ana.
Mais a frente, no
Porto de Manaus, Maria Inácia da Silva, 45, apressa os passos em direção à uma
balsa. De máscara e com uma voz rouca, ela conta como foi tentar atendimento
num Serviço de Pronto Atendimento (SPA) em Manaus.
“Me atenderam, mas
como tem uma demanda muito grande de pessoas assim, se sentindo mal, ele
[médico] só passou medicamento mesmo. Eu estou tomando e evitando sair. Ele
passou Ibuprofeno e Nimesulida, eu tomei uma injeção anti-inflamatória, por
causa da garganta que está muito inflamada”, explica.
Maria Inácia é
asmática e descreveu um cenário de superlotação do hospital em que foi à
Amazônia Real. “Estava muito lotado, todo mundo está na mesma gravidade que a
minha situação. Então o que me recomendam é que eu não vá mais [no SPA],
entendeu? Que eu me cuide em casa, é
isso que eu estou fazendo, mas no hospital está lotado de verdade, está
cheio por conta disso”, relata.
O motivo de estar no
porto, envolvia tanto a fumaça, quanto a seca histórica que mais uma vez o
Amazonas vive. Ela foi buscar o seu pai, que chegava de viagem do Lago do Jari,
no rio Purus, até a capital para não correr o risco de ficar isolado sem água,
comida e atendimento médico. Era uma das últimas viagens que as embarcações
conseguiriam fazer da região à capital. O relato de Maria inácia, coletado em 5
de setembro, já apontava para um caos instalado de seca e fumaça extrema
assolando a região.
Nos tempos de crise da
fumaça, é a “Banca da Japonesa”, localizada no mercado Adolpho Lisboa, a mais
procurada para o tratamento de doenças pela medicina tradicional em Manaus. O
movimento é grande e não para, e aumentou mais ainda com a procura de produtos
que minimizem os efeitos da fumaça.
Segundo Angela Takeda,
empreendedora da banca, alguns produtos mais comprados pelos manauaras são:
colírio para os olhos, xarope e remédio para o pulmão. Ela afirma que as
pessoas, principalmente os ribeirinhos, chegam relatando ardência nos olhos,
dificuldade para respirar e secreções nas vias aéreas.
“Geralmente são os
ribeirinhos os mais afetados, e o pessoal da cidade mesmo, na cidade você abriu
a janela e já dá de cara com a fumaça, então o pessoal está com problema de
visão, está com problema de pulmão”, explica.
Ela acredita que se
nada for feito, a saúde das pessoas tende a só piorar e a procura aumentar.
“Enquanto nossos dirigentes não tomarem providências, a tendência é ir para baixo, e afundar cada vez mais. Em
vez de estarem brigando por causa de eleição, eles [governantes] deveriam
priorizar a causa dessa fumaça aí porque com certeza tem gente grande por trás
disso”, diz Takeda.
• UNICEF fez recomendação
Durante os incêndios
florestais e seca de 2023, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
emitiu uma recomendação ao governo do Amazonas, que havia declarado, como neste
ano, emergência para 100% dos 62 municípios. Mais de 600 mil pessoas foram
afetadas pela seca.
Na ocasião, o UNICEF
alertou para uma nova seca este ano. “As
ações em andamento se concentram em estratégias de redução de riscos e de
fortalecimento das capacidades das respostas locais, dada a alta probabilidade de
outra seca extrema, a partir do segundo semestre de 2024. Para isso, o UNICEF
está trabalhando em abordagens e metodologias de ação antecipada e sistemas
adaptados a eventos climáticos extremos para mitigar o impacto sobre os
serviços essenciais para crianças, adolescentes e mulheres, especialmente
meninas adolescentes e mulheres grávidas e lactantes”.
Procurado pela
Amazônia Real, o UNICEF disse, por meio de sua assessoria, que está dialogando
com a Fundação de Vigilância a Saúde e a Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Urbano e Metropolitano (Sedurb) do Governo do Amazonas sobre
cuidados com a água, infecções respiratórias e prevenção durante a crise
climática.
Quando questionada se
o governo do Amazonas cumpriu com as estratégias e recomendações emitidas desde
o ano passado, o UNICEF disse, em nota enviada à reportagem, que não tinha como
avaliar o cumprimento das ações. “Não temos como fazer este tipo de avaliação,
até porque fazemos recomendações e orientações. Cada município enfrenta
realidades distintas cujas respostas também diferem dependendo da capacidade,
tamanho da demanda, etc. O que sei é que alguns municípios conseguiram se
organizar melhor que outros”, diz a nota.
De acordo com o
governo do Amazonas, 560 mil pessoas estão afetadas pela seca deste ano e
precisam de apoio humanitária como água potável, alimentos e atendimento de
saúde.
Já o Ministério da
Saúde informou que produz anualmente informes epidemiológicos sobre focos de
calor e a qualidade do ar no Brasil, utilizando dados do Serviço de
Monitoramento da Atmosfera do Copernicus (CAMS) e desde julho de 2024 os
Informes de Queimadas são divulgados semanalmente aos gestores estaduais e
municipais, com recomendações de ações relacionadas às queimadas e orientações
para a saúde pública.
Houve também a sanção
da Lei 14.850/24 pelo presidente, que cria a Política Nacional de Qualidade do
Ar, estabelecendo que o monitoramento da qualidade do ar é responsabilidade dos
órgãos ambientais, em conjunto com os estados.
“Em junho deste ano, o
ministério lançou o painel de monitoramento da Poluição Atmosférica e Saúde
Humana, que ajuda a identificar áreas com maior exposição ao material
particulado fino e a calcular seus impactos na saúde”, informou o Ministério.
Ainda em julho, foi
instituída a Sala de Situação Nacional de Emergências Climáticas em Saúde,
para auxiliar os estados no
planejamento, coordenação e articulação de medidas para responder a eventos
climáticos e realizar uma resposta rápida para emergências climáticas.
“Com relação ao estado
do Amazonas, o Ministério da Saúde encaminhou profissionais da Força Nacional
do SUS e técnicos de demais secretarias para analisar a realidade do local e
contribuir com estratégias de enfrentamento à emergência climática, bem como
questões de logística para a distribuição de insumos e demais necessidades
apresentadas”, diz.
Procurada, a
Secretaria de Saúde do Amazonas (Ses-AM), disse que juntamente com a FVS, está
intensificando as ações de monitoramento e fortalecendo a assistência à saúde
para o enfrentamento das queimadas durante a estiagem.
Fonte: Amazônia Real
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