Fernando Nogueira da Costa: ‘Leis da
economia digital’
As sete leis
universais são princípios filosóficos derivados do Hermetismo, tradicionalmente
atribuídos ao antigo sábio Hermes Trismegisto. Essas leis não são “herméticas”,
mas sim entendidas como princípios fundamentais para se aproximar da realidade
(“a verdade”) em diferentes níveis, tanto no plano físico quanto no mental e
espiritual.
Usarei aqui essas leis
como uma abordagem simbólica ou metafórica para entender as dinâmicas mais
profundas e as interações sistêmicas via moeda digitalizada nas economias
contemporâneas. Interpretarei essas leis como metáforas para a circulação da
moeda escriturada digitalmente, um fenômeno econômico e tecnológico.
A lei do mentalismo é:
“o todo é mente; o universo é mental”. Essa lei sugere a realidade ser
construída e influenciada pela mente e pelo pensamento. Tudo começa no campo
mental de acordo com uma das duas maiores tradições da filosofia ocidental: a
idealista. A outra é a materialista.
De acordo com esse
“mentalismo”, o sistema monetário digital é criado e moldado pelas ideias
humanas. Nesse sentido, o valor da moeda é, em última instância, uma construção
mental baseada na confiança e aceitação social.
A lei da
correspondência é: “o que está em cima é como o que está embaixo; o que está
dentro é como o que está fora”. Essa lei reflete a ideia de existirem padrões e
correlações entre diferentes níveis da realidade (microcosmo e macrocosmo).
Essa “correspondência”
aparece nas dinâmicas de fluxo de capital digital. Refletem padrões econômicos
maiores (resultante macro) e menores (decisões micro), como a relação entre a
economia global e a local.
A lei da vibração é:
“nada está parado; tudo se move; tudo vibra”. Tudo no universo está em
constante movimento e vibração, desde a matéria até as frequências mais sutis
do pensamento.
Essa “vibração”
monetária aparece por as transações financeiras digitais estarem em constante
movimento e transformação. O dinheiro nunca permanece estático, assim como o
fluxo constante de dados e informações circulantes no sistema financeiro
digital.
A lei da polaridade é:
“tudo é duplo; tudo tem dois polos; tudo tem o seu oposto”. Tudo tem dois
aspectos contrastantes, e os opostos seriam essencialmente a mesma coisa, em
diferentes polos.
A “polaridade” é comum
por haver diversos opostos no sistema econômico capitalista, antagônico por
definição, como abundância e escassez, riqueza e pobreza. A moeda digital
também é facilitadora tanto do crescimento da renda e riqueza quanto da
desigualdade, dependendo do seu uso.
A lei do ritmo é:
“tudo flui, para dentro e para fora; tudo tem suas marés; tudo sobe e desce”.
Essa lei reconhece os ciclos e movimentos de oscilação no universo se
refletirem também na vida cotidiana e nos processos naturais.
Como é esse “ritmo” na
economia financeira? O sistema monetário segue ciclos econômicos de crescimento
e recessão, quando não depressão, e as oscilações do mercado digital refletem
esses movimentos de expansão e contração.
A lei de causa e
efeito é: “toda causa tem seu efeito; todo efeito tem sua causa”. Essa lei
expressa o princípio de nada acontecer por acaso, mas sim como resultado de uma
cadeia de causas e efeitos.
A “causa e efeito”, na
atividade econômico-financeira é o objeto de pesquisa da ciência econômica.
Decisões econômicas e políticas (causas) afetam diretamente a circulação e o
valor da moeda digital (efeitos). Políticas monetárias ou mudanças na confiança
no sistema financeiro desencadeam efeitos em cadeia.
A sétima lei universal
é a lei de gênero: “o gênero está em tudo; tudo tem seus princípios masculino e
feminino”. Isso se refere à presença de energias criativas masculinas e
femininas em tudo no universo, não apenas em termos de biologia, mas como princípios
de criação e equilíbrio.
O “gênero” também é
metafórico. A criação de moeda digital envolve aspectos ativos (masculino) como
a emissão e circulação, e receptivos (feminino), como a aceitação e
armazenamento, sugerindo um equilíbrio entre forças criativas e estruturais no
sistema financeiro inseparável da economia capitalista.
A aplicação das sete
leis universais à circulação da moeda escriturada digitalmente em uma economia
sem papel moeda exige a confiança nas escriturações digitais em tempo real.
Desempenha um papel central na viabilização de todo o fluxo econômico, desde o
pagamento de salários até a acumulação de riqueza financeira via juros
compostos.
Em um sistema baseado
exclusivamente em moeda digital (escritural ou criptomoedas), todo o fluxo de
recursos ocorre de maneira virtual. A economia, portanto, depende de um sistema
de escrituração digital capaz de registrar, verificar e autenticar transações
em tempo real, garantindo a integridade e a confiança no processo.
Quando as empresas
pagam salários, o dinheiro é transferido eletronicamente para as contas
correntes dos trabalhadores. Esse processo depende de escrituras digitais. Elas
documentam a transação, assegurando o depósito à vista ter sido corretamente
realizado e permitem a moeda digital ser validada e transferível.
Ao utilizar esse
dinheiro para gasto em consumo (compra de bens e serviços), novamente, a
transação é registrada digitalmente, e as partes envolvidas confiam no valor
ser transferido com segurança e precisão, sem intermediários físicos. O
processo de compra e venda digital depende da confiança mútua nos sistemas de
pagamento e escrituração.
Quando o dinheiro não
é gasto e, em vez disso, é aplicado em ativos financeiros (como investimentos
ou depósitos a prazo e de poupança), ele entra em processos seguidores das
mesmas regras de confiabilidade e escrituração digital. A acumulação de riqueza
via juros compostos, por exemplo, é um processo de matemática financeira
(prazo, juros e rendimentos periódicos até o valor futuro), registrado
digitalmente, onde a confiança reside no cálculo preciso do rendimento e na
credibilidade da instituição financeira com plataforma digital ofertante de tal
serviço de gestão do dinheiro.
A confiança nas
escriturações digitais, portanto, sustenta todo o ciclo econômico, permitindo
as transações acontecerem de forma fluida e segura. Além disso, essa confiança
deve ser protegida por mecanismos como criptografia, auditorias financeiras,
regulação estatal, supervisão bancária do Banco Central e confiança pública nas
instituições financeiras.
A ideia de o capital
ser trabalho acumulado tem raízes em teorias do valor clássicas, como as de
Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. Em um contexto de economia digital, essa
ideia continua a fazer sentido, mas com algumas adaptações.
O capital – entendido
como riqueza acumulada em forma de dinheiro, propriedades imobiliárias, ativos
financeiros – é visto como o resultado de um processo no qual o trabalho gera o
valor adicionado. Quando o trabalhador recebe salários digitais pelo seu esforço
produtivo, esses salários representam a recompensa pelo trabalho realizado.
O dinheiro
digitalizado representa uma forma de acumulação de valor criada pelo trabalho.
Mesmo na economia digital, o trabalho, seja físico, seja intelectual ou
criativo, gera um retorno financeiro. Esse retorno, se não for imediatamente
gasto, é acumulado e investido, tornando-se capital crescente com o tempo, por
meio de juros compostos ou investimentos.
Quando o capital é
investido, os juros compostos funcionam como multiplicadores de capital, porque
aumenta a quantidade de riqueza acumulada ao longo do tempo. Nesse sentido, o
dinheiro digital, gerado pelo trabalho, deve ser visto como uma forma de trabalho
acumulado, cujo valor se expande através dos mecanismos financeiros da economia
digital. Assim como o aluguel é o pagamento pelo usufruto de propriedade
imobiliário por um locador, os juros remuneram o custo de oportunidade por o
próprio possuidor não usufruir diretamente de seu uso.
Em uma economia sem
papel moeda, a distinção entre trabalho e capital não muda essencialmente, mas
a forma como o capital é gerido e acumulado sim. O capital continua a ser visto
como a materialização de trabalho passado, porém, agora ele existe predominantemente
em forma digital. Isso cria outras dinâmicas.
O dinheiro digital
circula mais rapidamente diante o dinheiro físico, acelerando o processo de
acumulação e investimento, mas também de consumo. O acesso ao capital se torna
ampliado ou restrito, dependendo de fatores como inclusão financeira digital,
ou seja, quem tem acesso a contas digitais, plataformas de investimento e
outros recursos financeiros digitais. E, claro, educação financeira!
A digitalização também
traz novos riscos, como ciberataques, fraudes digitais e a centralização de
dados. Esses “phishings” contínuos comprometem a confiança nas instituições
gerenciadoras o dinheiro digital.
Portanto, o capital em
uma economia digital pode ser entendido como uma extensão do trabalho
acumulado, medido, transacionado e multiplicado por meio de sistemas de
escrituração digital. A confiança nesse sistema de moeda digital e nas
plataformas de transação e investimento é fundamental para o capital continuar
a representar a riqueza criada pelo trabalho e, ao mesmo tempo, se tornar um
ativo (forma de manutenção de riqueza) fluido, disponível para reinvestimento,
consumo ou acumulação de reserva financeira em qualquer momento.
• IA: Em busca da “alma das máquinas”. Por
Cristian Arão
A inteligência
artificial (IA) tem causado fascínio e medo sempre que as suas inovações são
noticiadas. Sistemas capazes de interpretar e gerar textos, como o ChatGPT,
tornaram-se muito populares e ensejaram diversos debates acerca de sua
natureza, suas limitações e seus impactos sociais. No mundo contemporâneo,
essas tecnologias estão redefinindo diversos setores da sociedade, desde a
indústria até o cotidiano individual. Algoritmos complexos, capazes de aprender
e se adaptar autonomamente, assumem tarefas que antes eram consideradas
exclusivas do domínio humano.
Em meio ao avanço
acelerado da tecnologia, o aprendizado de máquina tem se destacado como uma
força motriz, permitindo que as inteligências artificiais aprendam de maneira
aparentemente autônoma. Este fenômeno tem gerado tanto fascínio quanto
inquietação, pois nos confrontamos com a ideia de sistemas automatizados que
parecem operar independentemente. No entanto, é crucial entender que essa
suposta autonomia é, em grande parte, uma ilusão. Embora os algoritmos possam
aprender e se adaptar, eles ainda dependem fortemente do trabalho humano para
funcionar corretamente. Este trabalho muitas vezes permanece invisível, oculto
atrás da cortina da tecnologia.
A realidade por trás
dessa tecnologia costuma ser mais banal e precária do que normalmente
noticia-se. A revolução nessa área, que ocorreu no final dos anos 1990, fez com
que as máquinas pudessem, de certa forma, aprender “sozinhas”, daí o nome
machine learning (aprendizado de máquina). Porém, esse aprendizado, para ser
mais efetivo e acurado, demanda muitos ajustes provenientes do trabalho humano.
Sem esses constantes arranjos e redirecionamentos, a precisão das máquinas em
tarefas complexas é bastante insatisfatória, nos explica David Sumpter em
Dominados pelos números.
Há, portanto, toda uma
rede de trabalhadores que, além de programarem as IAs, realizam diversas
tarefas que acreditamos que são automatizadas. Esses trabalhadores são como
fantasmas, porque seu trabalho é invisível para a sociedade. Esse termo
“trabalho fantasma” foi cunhado por Mary L. Gray e Siddharth Suri no livro
“Ghost Work: How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass”
(Trabalho Fantasma: Como Impedir o Vale do Silício de Construir uma Nova
Subclasse Global). Após pesquisa com milhares de trabalhadores na Índia e nos
Estados Unidos, os autores concluem que por trás da aparente autonomia das
inteligências artificiais, existe um exército de indivíduos lendo textos,
analisando fotos, avaliando as respostas geradas pela IA, dentre outras
microtarefas indispensáveis para o bom funcionamento dos algoritmos.
Essa estrutura esconde
intencionalmente o trabalho humano, segundo Gray e Suri. Com isso, mantém-se a
aura mística da tecnologia e passamos a enxergar cada vez mais a inteligência
artificial como algo realmente autônomo; é um truque parecido com o Turco Mecânico.
O Turco Mecânico foi uma invenção do cientista Wolfgang von Kempelen,
apresentada como a primeira máquina capaz de jogar xadrez. Porém, a invenção
consistia em uma caixa que escondia um jogador que operava as peças.
Curiosamente, o nome do programa que a Amazon usa para essas microtarefas é
justamente Mechanical Turk (https://www.mturk.com/).
Diante disso, Hamid
Ekbia e Bonnie Nardi em Heteromação1 e outras histórias sobre computação e
capitalismo (em tradução livre), afirmam que não existe de fato uma automação,
porque a máquina não é completamente autônoma ou independente. Em vez disso,
ela depende da intervenção ou supervisão humana em muitos níveis. Há, portanto,
muito trabalho humano em um contexto em que as pessoas não recebem os devidos
créditos. Embora a IA não seja exatamente um Turco Mecânico, pois existe algum
nível de automação que dialoga com o trabalho humano, é importante compreender
como o ser humano costuma ser escondido nesse sistema. Por trás da suposta
autonomia das máquinas, há uma real exploração do trabalhador e até dos
usuários que contribuem com reviews, comentários, produção de conteúdo etc.
Em suma, a revolução
da inteligência artificial não é apenas um testemunho de avanços tecnológicos
impressionantes, mas também revela uma camada oculta de trabalho humano
essencial para seu funcionamento. Embora as IAs, como o ChatGPT, possam parecer
autônomas, elas ainda são profundamente dependentes de uma vasta rede de
trabalhadores invisíveis, cuja contribuição é muitas vezes subestimada ou
ignorada. A realidade por trás da tecnologia é que, em vez de uma autonomia
pura e imaculada, temos um processo onde o trabalho humano continua a
desempenhar um papel crucial. A consciência dessa dinâmica é vital para uma
compreensão mais completa da inteligência artificial e para assegurar que o
progresso tecnológico não ofusque a importância e o reconhecimento de quem está
por trás desse desenvolvimento. A próxima etapa no avanço da IA deve, portanto,
incluir uma reflexão ética e uma valorização justa dos indivíduos que sustentam
essa era de inovação.
Fonte: A Terra é
Redonda/Outras Palavras
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