quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A invasão de Israel ao Líbano em 1982 que deu origem ao Hezbollah

O início da incursão terrestre de Israel contra o Hezbollah no Líbano na madrugada desta terça-feira (1/10) fez com que muitos resgatassem o histórico de ataques e invasões no país nas últimas décadas.

Em particular, historiadores e analistas têm olhado para a ocupação por Israel no início da década de 1980 como um momento importante para explicar o nascimento da organização que é alvo da operação israelense de 2024.

O surgimento do Hezbollah é associado às incursões israelenses no Líbano em 1978 e 1982, quando em meio a uma guerra civil um grupo de muçulmanos xiitas influenciados pelo Irã pegou em armas para deter a ocupação.

O governo iraniano e a Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC, na sigla em inglês) do Irã forneceram financiamento e treinamento à milícia emergente, que passou a adotar o nome Hezbollah, "partido de Deus" em árabe.

Após a retirada de Israel em 2000, o Hezbollah resistiu à pressão para se desarmar e continuou a se fortalecer, tornando-se a força militar mais poderosa da nação árabe.

O grupo também ganhou gradualmente influência no sistema político do Líbano e tem hoje poder de veto no Executivo do país.

•        Guerra civil libanesa

O pano de fundo do surgimento do Hezbollah e da ocupação israelense foi a guerra civil, que eclodiu em 1975 em meio a conflitos étnico-religiosos que ocorriam desde que a região estava sob controle do Império Otomano (séculos XIV-XX).

Mas muitos especialistas apontam o descontentamento latente em relação à grande presença armada palestina no sul país como o grande fator determinante na deflagração do conflito interno.

A ocupação israelense sobre a quase totalidade do território palestino obrigou um imenso contingente populacional a buscar refúgio nos países vizinhos. Milhares de palestinos migraram para o sul do Líbano, onde passaram a viver em situação precária.

No contexto dos conflitos entre árabes e israelenses pela posse do território palestino, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), liderada por Yasser Arafat, se instalou no sul do Líbano.

Os ataques palestinos e Israel se intensificaram durante a década de 1970, com disputas na fronteira e ataques militares israelenses contra alvos no Líbano.

As várias facções que compunham a OLP naquele momento foram responsáveis por diversos ataques terroristas contra alvos israelenses e outros ao redor do mundo, entre eles o atentado que deixou 17 mortos durante as Olimpíadas de Munique em 1972.

Ao mesmo tempo, divisões sectárias, pré-existentes ao Estado libanês, acentuavam os conflitos.

Para tentar equilibrar as divisões internas entre sunitas, xiitas, drusos e cristãos, o Pacto Nacional de 1943 distribuiu o poder público entre as diferentes comunidades religiosas.

De forma geral, a Presidência do país fica com cristãos maronitas, o primeiro-ministro é tradicionalmente um muçulmano sunita e a Presidência da Câmara dos Deputados é reservada a um muçulmano xiita.

Mas, segundo explica Haugbolle Sune, professor na Universidade Roskilde e autor de livros e artigos sobre a guerra civil no Líbano, questionamentos ao sistema e as disputas de privilégios e espaços políticos entre os grupos fomentaram a escalada do conflito armado.

Há um consenso entre os historiadores de que a guerra eclodiu como resultado de um período de crescente divisão entre os libaneses que apoiavam o "direito da resistência palestina de lançar ações contra Israel a partir do solo libanês e aqueles que se opunham a isso", escreveu Sune em um artigo de 2011 sobre o tema.

"Essa divisão se misturou a outros pontos de discordância, principalmente se o sistema de compartilhamento de poder em vigor desde o Pacto Nacional de 1943 era sustentável ou precisava de uma reforma radical, e se o Líbano deveria orientar suas alianças internacionais em direção ao mundo árabe e à União Soviética ou em direção ao Ocidente e seus aliados locais."

•        As incursões israelenses

Em meio aos conflitos internos, as forças israelenses invadiram o sul do Líbano em 1978, e novamente em 1982, para expulsar os guerrilheiros palestinos que usavam a região como base para atacar Israel.

Após a primeira incursão, as forças israelenses conseguiram estabelecer uma zona de ocupação estreita que ia até o rio Litani, que corre pela região do Vale do Bekaa e outras áreas do sul libanês.

Naquele momento, o governo de Israel afirmou que a invasão era uma resposta a um ataque de um grupo palestino que sequestrou e matou 38 israelenses em uma estrada na região costeira israelense.

Em resposta, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a Resolução 425, que pedia a retirada imediata das forças israelenses. Também estabeleceu a Força Interina da ONU no Líbano (Unifil), que opera até hoje.

Na época, os israelenses armaram e financiaram o Exército do Sul do Líbano (SLA), composto por cristãos libaneses. Grupos palestinos, enquanto isso, eram apoiados pela Síria.

Os atentados ligados à OLP continuaram nos anos seguintes, ainda que com menos intensidade e mortalidade do que alguns dos praticados durante a década de 1970.

Em junho de 1982, um ataque no centro de Londres conduzido por dois jordanianos e um iraquiano ligados ao extremista palestino Abu Nidal quase matou o embaixador de Israel no Reino Unido, Shlomo Argov.

Os então primeiro-ministro e ministro da Defesa israelenses, Menachem Begin e Ariel Sharon, retaliaram com a chamada Operação Paz para a Galileia.

E em 6 de junho de 1982, Israel invadiu o Líbano pela segunda vez, dessa vez em uma incursão de maior escala, que chegou até Beirute.

A operação militar é hoje descrita por alguns especialistas como a mais desastrosa da história de Israel e apelidada de "Vietnã israelense", em alusão à invasão dos EUA ao país asiático.

Em meio à incursão, as forças israelenses sitiaram por sete semanas a parte ocidental da capital libanesa, onde a OLP mantinha sua sede, cortando comida, água e energia.

Os EUA, cada vez mais críticos aos ataques israelenses a alvos civis, intermediaram um acordo a partir do qual os líderes da OLP e cerca de 14 mil combatentes deixaram o Líbano para a Tunísia em agosto e setembro de 1982.

Mas a situação ficou mais crítica depois que o recém-eleito presidente do Líbano e aliado de Israel, Bashir Gemayel, foi assassinado em um atentado com uma bomba em Beirute.

Logo após o anúncio da morte de Gemayel, Begin e Sharon decidiram invadir Beirute Ocidental e pouco mais de 24 horas depois anunciaram a tomada militar da cidade.

Foi nesse momento que também ocorreu o que é considerado o episódio de maior atrocidade dos 15 anos de guerra civil no Líbano: os massacres nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, que deixaram um número estimado 800 e 3,5 mil mortos.

Os assassinatos foram cometidos por combatentes da milícia das Forças Libanesas (LF, na sigla em inglês), ligada ao grupo cristão Falange, em um ato de vingança pela morte do presidente Bashir Gemayel, que também era líder das LF.

O Exército israelense foi acusado de ajudar a milícia durante o massacre - ou pelo menos de não intervir para evitar as mortes.

Ariel Sharon renunciou ao cargo de ministro da Defesa diante de fortes críticas - ele foi eleito primeiro-ministro posteriormente, em fevereiro de 2001.

Um inquérito judicial israelense sobre o massacre, publicado em fevereiro de 1983, condenou o papel do governo Begin no caso e rejeitou o argumento de que Israel não poderia ser responsabilizado diretamente.

Após as mortes nos campos de Sabra e Shatila, o governo israelense se viu sob forte pressão dos governos dos EUA e da Europa e da opinião pública interna. Israel então retirou suas forças de Beirute, antes de uma retirada final em 2000.

•        Como surgiu o Hezbollah?

A saída israelense deixou um governo libanês fraco e instável, incapaz de impedir que a Síria apertasse seu controle sobre o país, ou que o Hezbollah, com apoio iraniano, se estabelecesse no sul.

As origens precisas do grupo são difíceis de identificar, mas seus precursores surgiram ainda durante a ocupação, quando muçulmanos xiitas, influenciados pelo governo teocrático do Irã, passaram a combater as forças israelenses.

Essas lideranças romperam com o Movimento Amal, um grupo político que se tornou uma das mais importantes milícias muçulmanas xiitas durante a guerra civil libanesa, e formaram um movimento que foi denominado Amal Islâmico.

Vendo uma oportunidade de expandir a sua influência nos estados árabes, o Irã decidiu financiar e treinar a milícia emergente.

Pouco depois, essa organização aliou-se a outros grupos e criou o Hezbollah.

O grupo anunciou oficialmente a sua criação em 1985, publicando uma "carta aberta" que identificava os Estados Unidos e a antiga União Soviética (URSS) como os principais inimigos do Islã.

No polêmico manifesto, o Hezbollah também levantou a destruição de Israel como um objetivo fundamental.

"É o inimigo odiado que temos de combater até que os odiados consigam o que merecem", diz o texto.

"Este inimigo é o maior perigo para as nossas gerações futuras e para o destino das nossas terras, especialmente porque glorifica as ideias de colonização e expansão, iniciadas na Palestina."

O governo dos EUA culpa o grupo por orquestrar os atentados à embaixada dos EUA e ao quartel da Marinha americana em Beirute, em 1983, que juntos deixaram 258 americanos e 58 militares franceses mortos e levaram à retirada das forças de manutenção da paz ocidentais.

Após o Exército sírio ter imposto a paz no Líbano em 1990, pondo fim à guerra civil, o Hezbollah continuou a sua guerra de guerrilha no sul do país.

Mas, gradualmente, também começou a desempenhar um papel ativo na política libanesa.

Em 1992, participou pela primeira vez nas eleições nacionais, obtendo mais assentos do que qualquer outro partido.

A organização emitiu um novo manifesto político em 2009, após conquistar 10 assentos no Parlamento, para destacar a "visão política" do grupo.

O Hezbollah retirou do manifesto de 1985 a referência à necessidade de criação de uma república islâmica, mas manteve sua linha dura contra Israel e os Estados Unidos e insistiu que precisava manter suas armas.

Antes do atual conflito, o grupo militante libanês havia entrado em confronto direto pela última vez com Israel em 2006. Naquele ano, militantes do Hezbollah lançaram um ataque transfronteiriço no qual oito soldados israelenses foram mortos e outros dois raptados.

O Hezbollah exigiu a libertação dos prisioneiros libaneses em troca de soldados israelenses. Mas a resposta de Israel ao ataque foi rápida e firme.

Aviões de guerra israelenses bombardearam redutos do Hezbollah no sul do Líbano e nos subúrbios ao sul de Beirute, enquanto o Hezbollah disparou cerca de 4 mil foguetes contra Israel.

Mais de 1.125 libaneses, a maioria deles civis, morreram durante os 34 dias de conflito, bem como 119 soldados israelenses e 45 civis.

Desde então, o Hezbollah aprimorou e expandiu o seu arsenal, recrutando dezenas de novos combatentes.

 

•        A impotência do Líbano diante do conflito Israel-Hezbollah

O grupo militante palestino Hamas disse que um ataque aéreo israelense nesta segunda-feira (30/09) matou seu líder no Líbano, na cidade de Tyre, e outra organização palestina informou que três de seus líderes foram mortos em um ataque no centro de Beirute – o primeiro desse tipo dentro dos limites da capital desde o início do conflito, em outubro passado.

As mortes foram as mais recentes em uma onda de duas semanas de intensos ataques israelenses contra alvos do Hezbollah no Líbano, parte de um conflito que agora se estende também dos territórios palestinos de Gaza e da Cisjordânia ocupada ao Iêmen.

O Hamas disse que seu líder no Líbano, Fateh Sherif Abu el-Amin, foi morto junto com sua esposa, filho e filha em um ataque que teve como alvo sua casa em um campo de refugiados na cidade libanesa de Tyre, na madrugada de segunda-feira.

Outro grupo, a Frente Popular para a Libertação da Palestina (PFLP), disse que três de seus líderes foram mortos em um ataque que teve como alvo o distrito de Kola, em Beirute.

Essa foi a primeira vez que Israel atacou Beirute além dos subúrbios ao sul da cidade, em uma campanha que culminou com o assassinato na semana passada do líder veterano do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em uma sucessão de pesados ataques aéreos.

O ataque contra a PFLP atingiu o andar superior de um prédio de apartamentos, segundo testemunhas. Não houve comentário imediato dos militares israelenses.

Os últimos ataques indicam que Israel não tem intenção de desacelerar sua ofensiva em várias frentes, mesmo depois de eliminar Nasrallah, que era o aliado mais poderoso do Irã em seu "Eixo de Resistência" contra a influência israelense e americana na região.

O Ministério da Saúde do Líbano afirma que mais de mil libaneses foram mortos e 6 mil ficaram feridos nas últimas duas semanas, sem especificar quantos eram civis. Um milhão de pessoas – um quinto da população – fugiram de suas casas, segundo o governo.

A escalada colocou Beirute no limite, com os libaneses temerosos de que Israel amplie sua campanha militar.

<><> Governo impotente

Israel está travando uma "guerra suja" contra o Líbano, declarou semana passada o primeiro-ministro do país, Nadschib Mikati, durante a sessão de emergência do Conselho de Segurança da ONU em Nova York. Ele acusou Israel de promover uma escalada sem precedentes no Líbano que matou em poucos dias centenas de civis, "incluindo jovens, mulheres e crianças". O premiê afirmou ter confiança de que um comunicado conjunto da França e dos EUA, também apoiado por outros países, contribuiria para dar um fim à "guerra". Mas Israel rejeitou o plano.

O discurso mostra que o governo libanês é praticamente impotente diante do conflito entre Israel e o Hezbollah. Não tem influência significativa nem sobre as ações de Israel nem sobre as do Hezbollah. Mais uma vez se torna evidente, e de forma particularmente dramática, a fraqueza crônica do governo e do Estado no Líbano.

Essa fraqueza tem uma longa história. "O Líbano foi fundado no início do século 20 como um Estado de maronitas cristãos em aliança com a potência protetora francesa", diz Markus Schneider, diretor do escritório da Fundação Friedrich Ebert em Beirute. "O defeito de nascença foi o fato de incluir desde o início grandes áreas com populações não maronitas. O confessionalismo foi, em última análise, um compromisso para integrar as outras partes da população. No entanto, ele impediu a formação de um Estado-nação forte."

Essa estrutura confessional foi reforçada pela guerra civil libanesa que eclodiu em 1975, que colocou umas contra as outras as três maiores confissões do país – xiitas, sunitas e cristãos maronitas. Após o fim da guerra, em 1990, foi implantado um sistema confessional equilibrado para igualar os interesses dos grupos populacionais individuais.

"No entanto, esse sistema fez com que esses grupos tentassem repetidamente fazer valer seus próprios interesses às custas dos outros grupos", diz Marcus Schneider. "Isso continua a enfraquecer o Estado. Isso pode ser visto, por exemplo, no fato de que desde 2022 o país não consegue chegar a um acordo sobre um presidente."

As divisões também facilitam a corrupção desenfreada. "Se não há um Estado forte que tome medidas contra as forças centrífugas em seu próprio país e em suas próprias instituições, surge facilmente um sistema oligárquico no qual todos servem a seus próprios interesses", diz Schneider.

<><> País sofre com o Hezbollah

O país também sofre com o Hezbollah, movimento xiita que é classificado como uma organização terrorista pelos EUA, pela Alemanha e por vários Estados árabes sunitas. Fundado em 1982 durante a guerra civil libanesa, ele foi desde o início maciçamente apoiado pelo Irã, inclusive e principalmente militarmente. Em 2022, o Wilson Center, com sede em Washington, descreveu o braço armado do Hezbollah como "o ator militar não estatal mais poderoso do Oriente Médio e, possivelmente, do mundo inteiro".

Foi também o Hezbollah que começou a disparar contra Israel após o início da guerra de Gaza, em outubro – sem qualquer consulta prévia ao restante da população libanesa. "Basicamente, o Hezbollah tomou a classe política do Líbano como refém", diz a especialista em Oriente Médio Kelly Petillo, do think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores.

<><> Fraqueza do Exército

A fraqueza do Estado também se reflete na passividade das Forças Armadas Libanesas (LAF). No sul do Líbano, em particular, elas se encontram em um dilema. Com base na Resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU, ela está cooperando com a força de manutenção da paz da ONU (Força Interina das Nações Unidas no Líbano, Unifil). Ambas as forças são compostas por 15 mil soldados cada.

A presença das tropas está ligada à Guerra do Líbano em 2006. Naquela época, Israel ocupou posições no sul do Líbano. Após a retirada israelense, as duas forças armadas deveriam cooperar para garantir que nenhuma milícia armada libanesa se deslocasse para essas posições. Somente tropas autorizadas pelo governo libanês deveriam estar presentes no local. No entanto, até o momento, o Hezbollah descumpriu esse acordo e ainda está presente na área.

Em termos militares, o Exército libanês é relativamente impotente. Na classificação do Índice Global de Poder de Fogo, que compara a força dos exércitos nacionais em todo o mundo, o Exército libanês está em 118º lugar entre 145. Ele não seria capaz de oferecer nenhuma resistência séria ao Exército israelense, que está em 17º lugar no índice, nem estaria em posição de conter militarmente o Hezbollah. "Isso provavelmente arrastaria o Líbano para uma guerra civil", diz Schneider.

Entretanto, o maior problema do Exército libanês é, e continua sendo, político. Como não está nas mãos de um único grupo confessional, o Exército é geralmente considerado como uma das poucas instituições não confessionais do país, segundo Schneider. "Mas é claro que o Exército também foi enfraquecido pela crise nacional e econômica. Por isso, vem recebendo apoio financeiro, por exemplo, no que diz respeito a salários. Por trás disso está a preocupação de que um colapso do Exército também possa derrubar o próprio Estado libanês. Mas é claro que o Exército não pode resolver os problemas políticos do Estado."

 

Fonte: BBC News Brasil/DW Brasil

 

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