terça-feira, 27 de agosto de 2024

Shlomo Ben-Ami: ‘Gaza e o Apocalipse’

"Segundo alguns israelenses, o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 marcou o início da guerra de Gog e Magog, que, segundo a profecia bíblica, precede a chegada do messias. Entretanto, os cristãos evangélicos americanos e o Hamas também anseiam por uma guerra redentora total", escreve Shlomo Ben-Ami, doutor em História pela Universidade de Oxford, ex-embaixador de Israel na Espanha entre 1987 e 1991 e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros durante o governo trabalhista de Ehud Barak.

<><> Eis o artigo.

Ao longo da história, crises e tragédias conduziram inevitavelmente a interpretações apocalípticas que procuram imbuir as catástrofes temporais de um significado divino ou redentor. Podemos ver isto nas doutrinas das principais religiões monoteístas, e mesmo nas ideologias totalitárias modernas, como o comunismo e o nazismo. De uma forma ou de outra, parece que os humanos estão inclinados a acreditar que sem Satanás não há redentor.

Para compreender quão perigosa esta lógica pode ser, basta olharmos para Gaza, onde uma tragédia de proporções bíblicas exacerba as alucinações messiânicas de Israel, do Hamas e dos cristãos evangélicos americanos.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e os seus aliados – os fanáticos teofascistas do Partido Religioso Sionista – veem a guerra de Gaza como o prelúdio para o domínio total sobre a Terra bíblica de Israel, um território definido pela religião, que se estende desde o Rio Jordão até o Mediterrâneo. Para figuras de extrema-direita como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir – líderes do sionismo religioso moderno e membros do gabinete de Netanyahu –, os palestinos devem ser completamente erradicados de lá.

A fantasia apocalíptica sionista consiste em três etapas: dominar o território, construir o “Terceiro Templo” em Jerusalém e substituir a democracia pelo Reino da Casa de David – segundo a Bíblia Hebraica, designado por Deus para governar Israel. Permitir o ataque constitucional do governo à democracia e aos direitos humanos em Israel é apenas parte do acordo que fizeram com Netanyahu ao serviço desse sonho.

Mas o regresso do messias exigirá mais do que uma reforma judicial ou mesmo a construção de colonatos. Envolverá “dores de parto messiânicas” – turbulência, sofrimento e dor – e até mesmo uma batalha apocalíptica há muito profetizada: a Guerra de Gog e Magog, na qual uma coligação de inimigos procura erradicar Israel, mas apenas consegue ser o prelúdio da chegada do messias. Segundo alguns fanáticos, o ataque do Hamas em 7 de outubro, que desencadeou a atual guerra em Gaza, marcou o início desse combate.

Estas ideias refletem uma teologia política que foi desenvolvida nos territórios palestinos ocupados em seminários ministrados por rabinos que viam a vitória “milagrosa” de Israel na Guerra dos Seis Dias de 1967 como um “momento messiânico”. Na verdade, os fundadores do sionismo religioso – o rabino Abraham Isaac Kook e seu filho, o rabino Zvi Yehuda Kook – estavam entusiasmados com a ideia de conflito. “Quando há uma grande guerra no mundo”, escreveu o pai, “o poder do messias desperta”, e o filho repetiu: “Toda guerra é uma fase da redenção de Israel”.

Além de acolher a guerra e a destruição de braços abertos, esta ideologia exonera efetivamente o Estado de Israel de violações dos princípios morais universais e, claro, do direito internacional. Em 1980, o rabino Israel Hess, defendendo a erradicação dos palestinos, escreveu um artigo intitulado "Genocídio: um dos mandamentos da Torá", no qual menciona a ordem de Deus ao rei Saul para matar todos os amalequitas. Mais recentemente, Smotrich queixou-se de que “ninguém no mundo permitirá que dois milhões de pessoas morram de fome, mesmo que seja legítimo e moral”. Para estes fanáticos, em vez das normas e valores da humanidade, o que deveria guiar o comportamento israelense é “a palavra de Deus”.

Os judeus messiânicos têm os seus homólogos nos Estados Unidos: os evangélicos americanos também entendem que a guerra de Gaza é um catalisador para o seu plano divino e, longe de temerem o apocalipse, anseiam pela sua chegada com a mesma intensidade que os Kooks. Quando Israel se envolve numa grande guerra, declarou John Hagee, pastor influente, “erguei a cabeça e regozijai-vos”, pois “a vossa redenção está próxima”.

Depois de Israel ter interceptado uma série de mísseis lançados pelo Irã, Hagee declarou: “Profeticamente, estamos à beira da guerra de Gog e Magog que Ezequiel descreveu nos capítulos 38 e 39” (de acordo com a sua versão, é a “segunda” vinda de Jesus Cristo, que ocorrerá depois que os judeus forem praticamente aniquilados, e os cristãos fiéis e convertidos – e não os próprios judeus – herdarão o reino de Deus na Terra). Isto explica por que Hagee e os Cristãos Unidos por Israel (o mesmo grupo que pressionou o ex-presidente americano, Donald Trump, a transferir a embaixada do seu país para Jerusalém) exortaram os legisladores dos EUA a não impedirem a escalada da guerra. Os líderes evangélicos nos Estados Unidos pressionaram os seus aliados do Partido Republicano para aumentarem a ajuda e as armas para Israel.

Se os cristãos evangélicos ecoam a ideologia dos judeus messiânicos, o Hamas reflete-a: a “terra da Palestina”, declara a carta de fundação do Hamas de 1988, é um habiz islâmico (um legado inalienável de acordo com a lei islâmica), “consagrado para as futuras gerações muçulmanas”, que não pode ser “desperdiçado” e que não pode ser “renunciado”. Nos “princípios e políticas” que publicou em 2017, o Hamas reiterou que “rejeita qualquer alternativa à libertação total e completa da Palestina, do rio ao mar”.

Além disso, o Hamas diz: “O dia do julgamento não chegará até que os muçulmanos confrontem os judeus”; quando um judeu se esconde atrás de “pedras e árvores”, continua ele, essas pedras e árvores dirão: “Ó muçulmanos, ó Abdulla, atrás de mim está um judeu, venha e mate-o”. No documento de 2017, o Hamas declara que os “sionistas”, e não os “judeus”, são os seus principais inimigos, mas deixa mais clara como sempre a sua rejeição das “chamadas soluções pacíficas”.

Mas o Hamas não é um grupo jihadista comum. É verdade que o 7 de outubro utilizou o tipo de táticas brutais associadas a grupos terroristas como o Estado Islâmico (ISIS), mas ao contrário desse grupo e da Al Qaeda, o Hamas é um movimento puramente nacionalista, sem objetivos globais. O ISIS chegou a ponto de acusar o Hamas de “desprezo e apostasia” por se concentrar apenas na libertação da Palestina, algo que se afasta da doutrina fundamentalista.

Mas a recente nomeação de Yahya Sinwar, alto funcionário do Hamas em Gaza, como chefe do gabinete político do movimento equivale a um golpe militar levado a cabo pela linha dura contra a ala política do Hamas localizada fora de Gaza. Com Sinwar, o Hamas anseia pela guerra e pela autodestruição, que entende como o único caminho para a redenção. Os fanáticos religiosos israelenses e americanos compartilham esse anseio. A menos que a diplomacia neutralize a ameaça de uma luta apocalíptica pela Terra Santa, o desejo dos fanáticos poderá tornar-se realidade.

 

¨      Retorno a Gaza. Por Francesca Mannocchi

"Não é um acaso que o lema do Netzah Yehuda seja: v'haya machanecha kadosh (e seu acampamento será sagrado), uma citação da Torá, que é tomada à letra pelos soldados do batalhão para sugerir que sua missão é 'sagrada'", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana.

É o meio da tarde quando Yosef de Bresser, 22 anos, enche um galão com água e dirige em direção à passagem de Erez, na fronteira com a Faixa de Gaza.

Ele sai do carro, pega algumas pedras que coloca ao redor de duas árvores, depois pega o galão e derrama a água em volta.

Em uma das duas árvores está amarrada uma bandeira israelense. Ele as plantou na semana passada, depois que o posto avançado ilegal que ele quer fundar foi desmontado pela segunda vez. Ele chegou lá, na fronteira, com duas árvores, como para dizer “voltaremos”. É por isso que o posto avançado que ele está construindo se chama Elei Aza, ou Rumo a Gaza. Como para dizer: “estamos voltando”.

Depois de esvaziar o galão, Yosef se aproxima dos soldados de plantão na fronteira. A área está cercada por suas bandeiras e, no muro ao redor da base, o nome Netzah Yehuda. São amigáveis uns com os outros. Ao longe, o eco da artilharia israelense apontando para Gaza. “Bum Bum Bum”, todos repetem, rindo do barulho das armas. Yosef de Bresser explica aos soldados para onde mudaram o posto avançado, para reconstruí-lo novamente, perto da entrada da floresta de Yad Mordechai. De lá, Gaza não só fica a apenas dois quilômetros de distância, mas dá para ver. Os soldados os incentivam, “iremos visitá-los”, dizem a eles, “continuem”.

Não se entende onde terminam os colonos e começam os soldados do Netzah Yehuda.

<><> Os extremistas no exército

O Netzah Yehuda é uma divisão ultraortodoxa do exército israelense. Foi criada em 1999 como uma unidade de combate exclusivamente masculina com o objetivo de integrar nas fileiras do exército a comunidade ultraortodoxa, os haredim, tradicionalmente isentos do alistamento.

Os recrutas vêm, em grande parte, de origens desfavorecidas, pobres e marginalizadas, muitos deles são os “jovens das colinas”, ou seja, colonos de segunda geração nascidos e criados em postos avançados ilegais nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia. Não é um acaso que o lema do Netzah Yehuda seja: v'haya machanecha kadosh (e seu acampamento será sagrado), uma citação da Torá, que é tomada à letra pelos soldados do batalhão para sugerir que sua missão é “sagrada”. Uma forma de justificar, como segundo passo, a cultura de uma violência desenfreada contra as populações não judias, tanto que foram acusados pelos Estados Unidos de graves violações de direitos humanos contra os palestinos na Cisjordânia ocupada bem antes de 7 de outubro.

Violações que levaram os EUA, em abril, a ameaçar Israel de impor sanções à unidade e aos seus membros. De particular importância para os EUA foi um fato que remonta a 2022.

Omar Assad, 80 anos, um palestino-estadunidense, morreu depois que os soldados do Netzah Yehuda o detiveram à força e o deixaram no frio a noite toda em um canteiro de obras que servia como um posto de controle improvisado na Cisjordânia. No final de 2022, o Netzah Yehuda, que estava lotado na Cisjordânia ocupada, foi transferido para as Colinas de Golã, controladas por Israel. O porta-voz do exército disse que se tratava de uma decisão operacional, mas o secretário de Estado dos EUA, Blinken, escreveu que se tratava de um reconhecimento de que o batalhão havia “adotado uma conduta incoerente com as regras do exército israelense”. Ou seja, a conduta da unidade era violenta e abusiva demais para os padrões do exército. Que sabia. E, no entanto, esses fatos não impediram que os soldados do Netzah Yehuda fossem transferidos para Gaza, onde estão lutando desde o início da guerra. Muitos membros, de acordo com uma investigação recente da CNN, foram promovidos a cargos de chefia nas Forças Armadas e agora ~são ativos no treinamento das tropas terrestres israelenses e na gestão das operações em Gaza. Em 16 de abril, o Netzah Yehuda participou de uma operação na escola Mahdiyya Al-Shawwa em Beit Hanoun, no norte da Faixa, onde milhares de palestinos haviam sido deslocados. De acordo com testemunhas oculares que falaram à CNN, os soldados cercaram a escola, “dispararam excessivamente” contra o complexo e forçaram os homens a se despir antes de prendê-los.

Uma unidade, portanto, agindo mais como uma milícia independente do que como uma parte do comando central.

Quando Yosef de Bresser se despede dos soldados em Erez, ele se vira e diz: “Eles estão com a gente. Mesmo que, de vez em quando, tenham que fingir que estão contra nós. Eles entendem por que estamos aqui, estamos aqui pelos mesmos motivos que eles. Fora os árabes de Gaza. Gaza deve retornar para os únicos a quem cabe por direito, os judeus”.

<><> Elei Aza, Rumo a Gaza

Yosef de Bresser é um “jovem das colinas”, como muitos dos soldados do Netzah Yehuda. Nascido e criado em Yitzhar, um assentamento da Cisjordânia conhecido pela violência contra seus vizinhos palestinos, já foi preso cerca de 20 vezes.

Em suas costas, tem um mapa de Israel tatuado com uma estrela de Davi cobrindo-o inteiramente, como para dizer: é a nós, aos judeus, que cabe toda a terra. No lado direito do pescoço, tem um punho erguido contra uma Estrela de Davi azul, o símbolo da Liga de Defesa Judaica, um grupo fundado nos Estados Unidos pelo rabino extremista religioso Meir Kahane e designado como organização terrorista pelos próprios Estados Unidos. Essas tatuagens o representam exatamente como as ações que ele vem realizando há meses. Em fevereiro, ele bloqueou o acesso das ajudas humanitárias à passagem de Kerem Shalom por dias - “eles não podem ter nada, nem água, nem comida, nem combustível”, disse ao La Stampa na época e repete com mais força hoje. Para ele, aqueles que fornecem ajuda são cúmplices dos terroristas. E ninguém dentro de Gaza merece ser salvo.

No início de julho, de Bresser e seus amigos, “jovens das colinas”, mas também moradores dos kibutzim que fazem fronteira com Gaza, começaram a construir um posto avançado. Algumas tendas, uma geladeira, alguns geradores de energia, cadeiras de plástico, malas com roupas e cobertores e brinquedos para as crianças. No mais, pás para cavar espaço para os canos de água e as ferramentas para erguer as casas de madeira que substituirão as tendas.

O substituto de um assentamento que, embora embrionário, grita bem alto as intenções dos ativistas religiosos de extrema direita.

Evacuado à força duas vezes e reconstruído duas vezes, porque, como explica de Bresser, após a primeira evacuação, os membros do grupo foram convocados pelas forças da ordem, que lhes indicaram um novo local para se estabelecerem. Hoje, há vinte deles vivendo lá, inspirados no kahanismo e nos colonos radicais da Cisjordânia. Na semana passada, 14 deles tentaram violar a fronteira com a Faixa de Gaza. Queriam rezar dentro de Gaza no 19º aniversário do desmantelamento dos assentamentos judaicos de Gaza. Sete foram presos. Entre eles, de Bresser. “Era a nossa oração, shacharit. Temos o direito de rezar na nossa terra, porque isso é Gaza. Os árabes não entendem a língua da morte, eles só entendem uma língua, a língua da terra. E nós a tiraremos deles. Porque o merecem e porque nos pertence”.

De Bresser está confiante de que ninguém os mandará embora de lá. Enquanto ele fala ao La Stampa, um carro de polícia se aproxima com os guardas florestais. Eles são joviais e lhes entregam um papel dizendo: “vocês não deveriam estar aqui!”. E eles respondem: “mesmo assim, podemos”. Eles riem.

De Bresser explica o projeto do posto avançado à polícia, que vai embora. “Estamos aqui porque o país precisa saber que realmente há alguém pronto para voltar. Somos jovens, somos muitos e ficaremos felizes em retomar o que é nosso”.

Isso é o que eles querem dizer às pessoas, mas também à política. Para Smotrich, para Ben Gvir, que sempre foram a favor do retorno dos assentamentos em Gaza. Uma forma de dizer a eles que o apoio moral basta, é necessário dinheiro.

Enquanto Yosef de Bresser constrói Elei Aza, Geffen, 32 anos, cuida das crianças. Era uma jovem professora de jardim de infância, tem dois filhos de cinco e três anos e está esperando o terceiro. Nascerá em novembro e espera que até lá as casas de madeira estejam prontas no posto avançado e que haja uma maneira de se aquecer. Ela deixou o magistério porque acha injusto que o Estado decida o que pode ou não ser ensinado às crianças. Ela mesma quer, como as outras mulheres que conhece e que, como ela, vivem nos postos avançados, ensinar a seus filhos os únicos valores que importam. “O que eu gostaria, para o futuro de meus filhos, é que eles não precisem mais se misturar com outras pessoas. Os árabes de Gaza devem ir embora.” Geffen acha que o governo é demasiado incerto, a ação militar é tímida e que não há motivo para refrear as ações dos soldados. Acha que a conduta do governo fortalece o Hamas em vez de enfraquecê-lo porque, segundo ela, “toda essa conversa sobre acordos fará com que o Hamas acredite que pode conseguir o que quer”. Pensa que, para todos os árabes, perder a vida não importa. A única coisa que importa para eles é perder a terra. É por isso que, segundo ela, é inútil discutir a contagem das mortes.

Dez mil, vinte mil, quarenta mil. Epidemias, doenças. São apenas números. A única coisa que precisa ser discutida é como tirar toda a terra que lhes restou, o mais rápido possível.

 

Fonte: Nueva Sociedad/La Stampa – tradução de Luisa Rabolini, em IHU

 

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