Shlomo Ben-Ami: ‘Gaza e o Apocalipse’
"Segundo alguns
israelenses, o ataque do Hamas em 7 de outubro de
2023 marcou o início da guerra de Gog e Magog, que, segundo a profecia bíblica, precede a chegada do messias.
Entretanto, os cristãos evangélicos americanos e o Hamas também anseiam por uma guerra redentora total", escreve Shlomo Ben-Ami, doutor em História
pela Universidade de Oxford, ex-embaixador
de Israel na Espanha entre 1987 e 1991 e ex-ministro
dos Negócios Estrangeiros durante o governo trabalhista de Ehud Barak.
<><> Eis o
artigo.
Ao longo da história,
crises e tragédias conduziram inevitavelmente a interpretações apocalípticas
que procuram imbuir as catástrofes temporais de um significado divino ou
redentor. Podemos ver isto nas doutrinas das principais religiões monoteístas,
e mesmo nas ideologias totalitárias modernas, como o comunismo e o nazismo.
De uma forma ou de outra, parece que os humanos estão inclinados a acreditar
que sem Satanás não há redentor.
Para compreender quão
perigosa esta lógica pode ser, basta olharmos para Gaza, onde uma
tragédia de proporções bíblicas exacerba as alucinações messiânicas de Israel,
do Hamas e dos cristãos evangélicos americanos.
O primeiro-ministro
israelense Benjamin Netanyahu e os seus aliados – os fanáticos teofascistas do Partido Religioso Sionista – veem a guerra de Gaza como o prelúdio para o domínio total sobre a Terra bíblica
de Israel, um território definido pela religião, que se estende desde
o Rio Jordão até o Mediterrâneo. Para figuras de extrema-direita
como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Gvir – líderes do sionismo religioso moderno e membros do
gabinete de Netanyahu –, os palestinos devem ser completamente erradicados de lá.
A fantasia
apocalíptica sionista consiste em três etapas: dominar o
território, construir o “Terceiro Templo” em Jerusalém
e substituir a democracia pelo Reino da Casa de David – segundo
a Bíblia Hebraica, designado por Deus para governar Israel.
Permitir o ataque constitucional do governo à democracia e aos direitos humanos
em Israel é apenas parte do acordo que fizeram com Netanyahu ao
serviço desse sonho.
Mas o regresso do
messias exigirá mais do que uma reforma judicial ou mesmo a construção de
colonatos. Envolverá “dores de parto messiânicas” – turbulência, sofrimento e
dor – e até mesmo uma batalha apocalíptica há muito profetizada: a Guerra de Gog e Magog, na
qual uma coligação de inimigos procura erradicar Israel, mas apenas consegue ser o prelúdio da chegada do messias.
Segundo alguns fanáticos, o ataque do Hamas em 7 de outubro, que desencadeou a atual guerra em Gaza, marcou o início desse combate.
Estas ideias refletem
uma teologia política que foi desenvolvida nos territórios palestinos ocupados
em seminários ministrados por rabinos que viam a vitória “milagrosa” de Israel na Guerra dos Seis Dias de 1967 como um “momento messiânico”. Na verdade, os fundadores
do sionismo religioso – o rabino Abraham Isaac Kook e seu filho, o rabino Zvi Yehuda Kook – estavam
entusiasmados com a ideia de conflito. “Quando há uma grande guerra no mundo”,
escreveu o pai, “o poder do messias desperta”, e o filho repetiu: “Toda guerra
é uma fase da redenção de Israel”.
Além de acolher a
guerra e a destruição de braços abertos, esta ideologia exonera efetivamente
o Estado de Israel de violações dos princípios morais universais e, claro, do
direito internacional. Em 1980, o rabino Israel Hess, defendendo a
erradicação dos palestinos, escreveu um artigo intitulado "Genocídio:
um dos mandamentos da Torá", no
qual menciona a ordem de Deus ao rei Saul para
matar todos os amalequitas. Mais recentemente, Smotrich queixou-se de que
“ninguém no mundo permitirá que dois milhões de pessoas morram de fome, mesmo
que seja legítimo e moral”. Para estes fanáticos, em vez das normas e valores
da humanidade, o que deveria guiar o comportamento israelense é “a palavra de
Deus”.
Os judeus messiânicos têm os seus homólogos nos Estados Unidos: os
evangélicos americanos também entendem que a guerra de Gaza é um catalisador para o seu plano divino e, longe de
temerem o apocalipse, anseiam pela sua chegada com a mesma intensidade que
os Kooks. Quando Israel se envolve numa grande guerra, declarou John Hagee, pastor influente, “erguei a cabeça e regozijai-vos”, pois “a
vossa redenção está próxima”.
Depois
de Israel ter interceptado uma série de mísseis lançados pelo Irã, Hagee declarou:
“Profeticamente, estamos à beira da guerra de Gog e Magog que Ezequiel descreveu
nos capítulos 38 e 39” (de acordo com a sua versão, é a “segunda” vinda
de Jesus Cristo, que ocorrerá depois que os judeus forem praticamente
aniquilados, e os cristãos fiéis e convertidos – e não os próprios judeus –
herdarão o reino de Deus na Terra). Isto explica por que Hagee e
os Cristãos Unidos por Israel (o mesmo grupo que pressionou o ex-presidente americano, Donald Trump, a transferir a embaixada do seu país para Jerusalém) exortaram
os legisladores dos EUA a não impedirem a escalada da guerra. Os
líderes evangélicos nos Estados Unidos pressionaram os seus aliados
do Partido Republicano para aumentarem a ajuda e as armas para
Israel.
Se os cristãos
evangélicos ecoam a ideologia dos judeus messiânicos, o Hamas reflete-a: a “terra da Palestina”, declara a carta de fundação do Hamas de 1988, é um habiz islâmico (um legado inalienável de
acordo com a lei islâmica), “consagrado para as futuras gerações muçulmanas”,
que não pode ser “desperdiçado” e que não pode ser “renunciado”. Nos
“princípios e políticas” que publicou em 2017, o Hamas reiterou que “rejeita
qualquer alternativa à libertação total e completa da Palestina, do rio ao
mar”.
Além disso, o Hamas diz: “O dia do julgamento não chegará até que os muçulmanos
confrontem os judeus”; quando um judeu se esconde atrás de “pedras e árvores”,
continua ele, essas pedras e árvores dirão: “Ó muçulmanos, ó Abdulla, atrás de
mim está um judeu, venha e mate-o”. No documento de 2017,
o Hamas declara que os “sionistas”, e não os “judeus”, são os seus
principais inimigos, mas deixa mais clara como sempre a sua rejeição das
“chamadas soluções pacíficas”.
Mas o Hamas não é um grupo jihadista comum. É verdade que o 7 de outubro utilizou o tipo de táticas
brutais associadas a grupos terroristas como o Estado Islâmico (ISIS), mas ao contrário desse grupo e da Al Qaeda,
o Hamas é um movimento puramente nacionalista, sem objetivos globais.
O ISIS chegou a ponto de acusar o Hamas de “desprezo e
apostasia” por se concentrar apenas na libertação da Palestina, algo que se afasta da doutrina fundamentalista.
Mas a recente nomeação
de Yahya Sinwar, alto
funcionário do Hamas em Gaza, como chefe do gabinete político do
movimento equivale a um golpe militar levado a cabo pela linha dura contra a
ala política do Hamas localizada fora de Gaza. Com Sinwar, o Hamas anseia
pela guerra e pela autodestruição, que entende como o único caminho para a
redenção. Os fanáticos religiosos israelenses e americanos compartilham esse
anseio. A menos que a diplomacia neutralize a ameaça de uma luta apocalíptica
pela Terra Santa, o desejo dos fanáticos poderá tornar-se realidade.
¨
Retorno a Gaza. Por Francesca Mannocchi
"Não é um acaso
que o lema do Netzah Yehuda seja: v'haya machanecha kadosh (e
seu acampamento será sagrado), uma citação da Torá, que é
tomada à letra pelos soldados do batalhão para sugerir que sua missão é
'sagrada'", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana.
É o meio da tarde
quando Yosef de Bresser, 22 anos, enche um galão com água e dirige em
direção à passagem de Erez, na fronteira com a Faixa de Gaza.
Ele sai do carro, pega
algumas pedras que coloca ao redor de duas árvores, depois pega o galão e
derrama a água em volta.
Em uma das duas
árvores está amarrada uma bandeira israelense. Ele as plantou na semana
passada, depois que o posto avançado ilegal que ele quer fundar foi desmontado
pela segunda vez. Ele chegou lá, na fronteira, com duas árvores, como para
dizer “voltaremos”. É por isso que o posto avançado que ele está construindo se
chama Elei Aza, ou Rumo a Gaza. Como para dizer: “estamos voltando”.
Depois de esvaziar o
galão, Yosef se aproxima dos soldados de plantão na fronteira. A área
está cercada por suas bandeiras e, no muro ao redor da base, o nome Netzah
Yehuda. São amigáveis uns com os outros. Ao longe, o eco da artilharia israelense apontando para Gaza. “Bum Bum Bum”, todos repetem, rindo do barulho
das armas. Yosef de Bresser explica aos soldados para onde mudaram o
posto avançado, para reconstruí-lo novamente, perto da entrada da floresta de
Yad Mordechai. De lá, Gaza não só fica a apenas dois quilômetros de distância,
mas dá para ver. Os soldados os incentivam, “iremos visitá-los”, dizem a eles,
“continuem”.
Não se entende onde
terminam os colonos e começam os soldados do Netzah Yehuda.
<><> Os
extremistas no exército
O Netzah
Yehuda é uma divisão ultraortodoxa do exército israelense. Foi criada em
1999 como uma unidade de combate exclusivamente masculina com o objetivo de
integrar nas fileiras do exército a comunidade ultraortodoxa, os haredim,
tradicionalmente isentos do alistamento.
Os recrutas vêm, em
grande parte, de origens desfavorecidas, pobres e marginalizadas, muitos deles
são os “jovens das colinas”, ou seja, colonos de segunda geração nascidos e
criados em postos avançados ilegais nos territórios palestinos ocupados da
Cisjordânia. Não é um acaso que o lema do Netzah
Yehuda seja: v'haya machanecha kadosh (e seu acampamento
será sagrado), uma citação da Torá, que é
tomada à letra pelos soldados do batalhão para sugerir que sua missão é
“sagrada”. Uma forma de justificar, como segundo passo, a cultura de uma
violência desenfreada contra as populações não judias, tanto que foram acusados pelos Estados Unidos de graves
violações de direitos humanos contra
os palestinos na Cisjordânia ocupada bem antes de 7 de outubro.
Violações que levaram
os EUA, em abril, a ameaçar Israel de impor sanções à unidade e
aos seus membros. De particular importância para os EUA foi um fato
que remonta a 2022.
Omar Assad, 80 anos,
um palestino-estadunidense, morreu depois que os soldados do Netzah
Yehuda o detiveram à força e o deixaram no frio a noite toda em um
canteiro de obras que servia como um posto de controle improvisado
na Cisjordânia. No final de 2022, o Netzah Yehuda, que estava lotado
na Cisjordânia ocupada, foi transferido para as Colinas de Golã,
controladas por Israel. O porta-voz do exército disse que se tratava de
uma decisão operacional, mas o secretário de Estado dos EUA, Blinken, escreveu que se
tratava de um reconhecimento de que o batalhão havia “adotado uma conduta
incoerente com as regras do exército israelense”. Ou seja, a conduta da unidade
era violenta e abusiva demais para os padrões do exército. Que sabia. E, no
entanto, esses fatos não impediram que os soldados do Netzah
Yehuda fossem transferidos para Gaza, onde estão lutando desde o
início da guerra. Muitos membros, de acordo com uma investigação recente
da CNN, foram promovidos a cargos de chefia nas Forças Armadas e agora
~são ativos no treinamento das tropas terrestres israelenses e na gestão das
operações em Gaza. Em 16 de abril, o Netzah Yehuda participou de uma
operação na escola Mahdiyya Al-Shawwa em Beit Hanoun, no
norte da Faixa, onde milhares de palestinos haviam sido deslocados. De acordo
com testemunhas oculares que falaram à CNN, os soldados cercaram a escola,
“dispararam excessivamente” contra o complexo e forçaram os homens a se despir
antes de prendê-los.
Uma unidade, portanto,
agindo mais como uma milícia independente do que como uma parte do comando
central.
Quando Yosef de
Bresser se despede dos soldados em Erez, ele se vira e diz: “Eles
estão com a gente. Mesmo que, de vez em quando, tenham que fingir que estão
contra nós. Eles entendem por que estamos aqui, estamos aqui pelos mesmos
motivos que eles. Fora os árabes de Gaza. Gaza deve retornar para os únicos a quem cabe por direito, os
judeus”.
<><> Elei
Aza, Rumo a Gaza
Yosef de
Bresser é um “jovem das colinas”, como muitos dos soldados do Netzah
Yehuda. Nascido e criado em Yitzhar, um assentamento
da Cisjordânia conhecido pela violência contra seus vizinhos
palestinos, já foi preso cerca de 20 vezes.
Em suas costas, tem um
mapa de Israel tatuado com uma estrela de Davi cobrindo-o
inteiramente, como para dizer: é a nós, aos judeus, que cabe toda a terra. No
lado direito do pescoço, tem um punho erguido contra uma Estrela de Davi azul,
o símbolo da Liga de Defesa Judaica, um grupo fundado nos Estados
Unidos pelo rabino extremista religioso Meir Kahane e designado
como organização terrorista pelos próprios Estados Unidos. Essas tatuagens o
representam exatamente como as ações que ele vem realizando há meses. Em
fevereiro, ele bloqueou o acesso das ajudas humanitárias à passagem de Kerem Shalom por dias - “eles não podem ter nada, nem água, nem comida,
nem combustível”, disse ao La Stampa na época e repete com mais força
hoje. Para ele, aqueles que fornecem ajuda são cúmplices dos terroristas. E
ninguém dentro de Gaza merece ser salvo.
No início de julho,
de Bresser e seus amigos, “jovens das colinas”, mas também moradores
dos kibutzim que fazem fronteira com Gaza, começaram a construir
um posto avançado. Algumas tendas, uma geladeira, alguns geradores de energia,
cadeiras de plástico, malas com roupas e cobertores e brinquedos para as
crianças. No mais, pás para cavar espaço para os canos de água e as ferramentas
para erguer as casas de madeira que substituirão as tendas.
O substituto de um
assentamento que, embora embrionário, grita bem alto as intenções dos ativistas
religiosos de extrema direita.
Evacuado à força duas
vezes e reconstruído duas vezes, porque, como explica de Bresser, após a
primeira evacuação, os membros do grupo foram convocados pelas forças da ordem,
que lhes indicaram um novo local para se estabelecerem. Hoje, há vinte deles vivendo
lá, inspirados no kahanismo e nos colonos radicais da Cisjordânia. Na
semana passada, 14 deles tentaram violar a fronteira com a Faixa de Gaza.
Queriam rezar dentro de Gaza no 19º aniversário do desmantelamento dos
assentamentos judaicos de Gaza. Sete foram presos. Entre eles, de Bresser.
“Era a nossa oração, shacharit. Temos o direito de rezar na nossa terra,
porque isso é Gaza. Os árabes não entendem a língua da morte, eles só entendem
uma língua, a língua da terra. E nós a tiraremos deles. Porque o merecem e
porque nos pertence”.
De Bresser está
confiante de que ninguém os mandará embora de lá. Enquanto ele fala ao La
Stampa, um carro de polícia se aproxima com os guardas florestais. Eles são
joviais e lhes entregam um papel dizendo: “vocês não deveriam estar aqui!”. E eles
respondem: “mesmo assim, podemos”. Eles riem.
De
Bresser explica o projeto do posto avançado à polícia, que vai embora.
“Estamos aqui porque o país precisa saber que realmente há alguém pronto para
voltar. Somos jovens, somos muitos e ficaremos felizes em retomar o que é
nosso”.
Isso é o que eles
querem dizer às pessoas, mas também à política. Para Smotrich, para Ben Gvir,
que sempre foram a favor do retorno dos assentamentos em Gaza. Uma forma de
dizer a eles que o apoio moral basta, é necessário dinheiro.
Enquanto Yosef de
Bresser constrói Elei Aza, Geffen, 32 anos, cuida das crianças.
Era uma jovem professora de jardim de infância, tem dois filhos de cinco e três
anos e está esperando o terceiro. Nascerá em novembro e espera que até lá as
casas de madeira estejam prontas no posto avançado e que haja uma maneira de se
aquecer. Ela deixou o magistério porque acha injusto que o Estado decida o que
pode ou não ser ensinado às crianças. Ela mesma quer, como as outras mulheres
que conhece e que, como ela, vivem nos postos avançados, ensinar a seus filhos
os únicos valores que importam. “O que eu gostaria, para o futuro de meus
filhos, é que eles não precisem mais se misturar com outras pessoas. Os árabes
de Gaza devem ir embora.” Geffen acha que o governo é
demasiado incerto, a ação militar é tímida e que não há motivo para refrear as
ações dos soldados. Acha que a conduta do governo fortalece
o Hamas em vez de enfraquecê-lo porque, segundo ela, “toda essa
conversa sobre acordos fará com que o Hamas acredite que pode conseguir o que
quer”. Pensa que, para todos os árabes, perder a vida não importa. A única
coisa que importa para eles é perder a terra. É por isso que, segundo ela, é
inútil discutir a contagem das mortes.
Dez mil, vinte mil,
quarenta mil. Epidemias, doenças. São apenas números. A única coisa que precisa
ser discutida é como tirar toda a terra que lhes restou, o mais rápido
possível.
Fonte: Nueva
Sociedad/La Stampa – tradução de Luisa Rabolini, em
IHU
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