Ruas
paulistas: entre o cacetete da polícia e o avental do Padre
Todos
os dias, nas ruas do centro de São Paulo, um Padre reza o hino da década de 80
dos Titãs.
Chamando
pessoas que estão morando nas ruas pelo nome e olhando nos seus olhos, ele pergunta:
VOCÊ TEM FOME DE QUE?
Todos
os dias, nas ruas do centro de São Paulo, onde a maioria enxerga “ninguéns”,
alguém reconhece sujeitos desejantes com fomes muitas, para além das sopas que
também ajuda a servir.
“Para
ter afeto é preciso conviver”. COM VIVER, repete pausadamente o Padre, que usa
avental, em vez da batina, para não esquecer que trocou o poder pelo servir.
Fome.
De que?
“Eu
mostrava as roupas doadas e deixava que as pessoas escolhessem as que
gostassem. Foi quando perguntei porque Brisa, a menina trans, não estava
escolhendo nada. Ela então me disse: – ah, eu tenho o meu lookinho próprio”,
contou o padre a um dos maiores psicanalistas brasileiros, como exemplo de seu
trabalho de saciar a fome de subjetividades. Fome de ter preferências, gostos e
quereres quando o mundo transforma pessoas em números.
O
encontro antológico entre Padre Júlio Lancellotti e o psicanalista Christian
Dunker é daqueles que se assiste quase sem respirar, para tentar absorver ao
máximo as palavras de um diálogo que alimenta nossa fome insaciável de entender
o mundo e acreditar nas pessoas.
Há
exatos 20 (vinte) anos, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, 15 (quinze)
pessoas que dormiam na Praça da Sé, no centro de São Paulo, foram, na calada da
noite, atacadas com golpes na cabeça. Dessas, sete morreram e as outras ficaram
com sequelas irreversíveis. O Ministério Público de São Paulo, na época, acusou
cinco policiais militares e um segurança particular de terem praticado o
massacre para silenciar testemunhas que sabiam de seus envolvimentos com o
crime organizado da região, mas parte das denúncias sequer foi recebida e
ninguém foi condenado diretamente por esses fatos.
Cacetadas
na cabeça.
A
gigantesca covardia do gesto e o grau de vulnerabilidade que ele desnudou ainda
ressoa na memória coletiva dos corpos que dormem nas ruas de São Paulo.
Movimentos sociais, a partir dessa tragédia, se organizaram. Foi instituído o
dia da luta da pessoa em situação de rua. O cacetete, de alguma forma, fecundou
palavras pelo não apagamento de milhares de vidas que, cada vez em maior
número, vivem nas ruas do país.
O
Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a população em situação de
rua – POLOS/UFMG informou que se estima que o Brasil tenha mais de 300000 mil
pessoas vivendo nas ruas sendo que, destas, 81760 pessoas se concentram em São
Paulo. Os números, embora dramáticos, estão aquém da realidade já que São
Paulo, segundo a mesma pesquisa acadêmica, tem apenas 78% de nível de
atualização do seu CADÚNICO.
Centenas
de milhares de pessoas, pois, atualmente, no Brasil, são vítimas, vale repetir,
vítimas, de um país constituído na barbárie de séculos de escravização e
objetificação, e que se perpetua em um sistema individualista sob uma lógica de
exclusão, e estão aí, perambulando pelas ruas e provocando aversão, aflição,
hostilidade, nojo e medo.
Aversão,
aflição, hostilidade, nojo e medo. Medo.
• Aporofobia!
Baseado
no grego a – poros, o termo foi cunhado pela escritora espanhola Adela Cortina
e descrito em detalhes no livro Aporofobia, a Aversão ao Pobre: Um Desafio Para
a Democracia. No Brasil, o termo se difundiu sobretudo pela fala do Padre Júlio
Lancellotti.
O
padre, que se diz avesso a poder, vem distribuindo comida para os pobres e
palavras para os ricos.
Além
de difundir nome ao sentimento que todos querem apagar, o Padre, com seus
discursos, foi também o principal responsável pela Lei 14.489, promulgada em
dezembro de 2022, que visa proibir a dita arquitetura hostil nas cidades. É
surpreendente a capacidade criativa das pessoas para criar bancos descômodos
para que ninguém neles possa deitar, pedras e objetos pontiagudos embaixo de
viadutos para impedir que famílias sem teto se abriguem da chuva, além de
toldos com gotejamento proposital para que a umidade do chão duro não posso
suportar corpos desvalidos.
A
aversão ao pobre, como se vê, é regulada pela distância. Aporofóbicos não negam
a existência dos pobres, mas os querem em uma distância tal que eles deixem de
lhes provocar qualquer afeto. A distância, pois, como explica o psicanalista
Dunker, é externa, geográfica, facilitada pela lógica condominial dos muros e
pela arquitetura hostil de um lado, mas é, sobretudo, interna. Todos nós,
explica o psicanalista, trazendo Freud para reflexão, não somos apenas um
acontecimento biológico, mas nos constituímos a partir de uma sucessão de atos
de reconhecimento. Nosso maior medo é o retorno à experiência comum de
desamparo, que existe dentro de nós e que o outro, em seu desamparo, pode nos
espelhar. Na aporofobia negamos que, dentro de nós mesmos, existe o desamparo
que nos constitui. Negar o pobre é, pois, negar a nós mesmos.
Se
o amor é paradoxalmente esse ato de estar fora de si, no outro, para uma
reconciliação conosco mesmo, fica a pergunta: quem, de fato, seriam os zumbis,
alienados, mortos-vivos, incompetentes para o amor que se dá apenas, e tão
somente, na partilha de tempo e espaço da convivência, e que perambulam por aí,
em carros blindados, apavorados com o humano, demasiadamente humano, que somos
todos nós?
Para
além dos movimentos sociais, do padre e do psicanalista há, nessa conversa,
também um Juiz.
No
enfrentamento da aporofobia o Supremo Tribunal Federal teve seu importante
papel no julgamento da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 976.
Em
face do estado de coisas inconstitucional concernente às condições desumanas de
vida da população em situação de rua no Brasil, o Ministro Alexandre de Moraes,
em decisão confirmada pelo pleno da Corte determinou que, em 120 dias, União,
Estados e Municípios implementassem políticas próprias para as pessoas em
situação de rua, voltadas à moradia, trabalho, renda, educação e cultura e que
respeitassem as especificidades de cada sujeito.
Na
decisão, dentre muitos parâmetros, lembrou que pessoas em situação de rua amam
e desejam, e que seus objetos pessoais e seus vínculos com animais de estimação
teriam que ser respeitados.
O
STF, profundamente “ideológico”, como alegam pejorativamente os aporofóbicos,
craques em esvaziar o sentido dos conceitos políticos, se fundamentou nas
violações aos seguintes preceitos fundamentais: “direito social à saúde (art.
6º; art. 23, inciso II; art. 24, inciso XII; art. 194; art. 196; art. 197; art.
198; art. 199 e art. 200), o direito fundamental à vida (art. 5º, caput; art.
227 e art. 230), o direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput, e art.
196), o fundamento da República Federativa de dignidade da pessoa humana (art.
1º, inciso III), direito social à moradia (art. 6º) e, por fim, o objetivo
fundamental da República Federativa de construir uma sociedade justa e
solidária (art. 3º, inciso I)”.
Em
cumprimento à ordem judicial, o governo federal lançou, em 10 de dezembro de
2023, o “Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação
de rua” que prevê ações intersetoriais e em diálogo com sociedade civil,
academia e outros poderes públicos.
Ao
Ministério Público fica a grande incumbência de acompanhar a execução dessa
política e estimular que Estados e Municípios adiram a ela e cumpram a
determinação da Corte Superior de Justiça.
Ao
que parece, nem todos fogem dos desertos que guardam dentro de si.
Pelas
ruas de São Paulo, um senhor de avental segue distribuindo agasalho, comida e
palavra. Segue chamando gente pelo nome e falando sobre o direito de escolher,
amar e ser. Esse senhor fala sobre uma tal pedagogia do olhar, que troca
saberes pela conexão e convivência. Fala que a morte vai lhe encontrar lutando
para que haja água potável, moradia, abraço e afeto para todas as gentes, e que
não existe luta sem esperança teimosa, resistência e alguma dor.
O
senhor do avental, que não tem medo das fomes todas, diz que segue a teologia
do fracasso: “nessa sociedade capitalista e neoliberal, não fracassar seria
aderir a ela”.
O
fracasso do padre segue reconhecendo sujeitos entre escombros e salvando vidas,
diariamente, nas ruas da cidade mais populosa de desertos do país.
Fonte:
por Cristiane Hillal e Eduardo Valério, no Jornal GGN
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