sábado, 24 de agosto de 2024

Paulo Nogueira Batista Jr.: ‘70 anos da morte de Getúlio Vargas’

No dia em que o maior presidente da nossa história se matou, em 24 de agosto de 1954, há 70 anos, eu estava exatamente dentro da barriga da mãe, que enfrentava uma gravidez difícil, com risco de perda da criança. Acamada, ela foi terminantemente proibida de se levantar. Porém, ao ouvir a notícia do suicídio do presidente da República, ela pulou da cama e saiu gritando pela casa: “Getúlio se matou!”. Por pouco, não fui desta para melhor (o que talvez não fosse mal, uma vez que, como escreveu Heine, “o sono é bom, a morte melhor, melhor mesmo seria nunca ter nascido”).

Dominada por getulistas, a família de minha mãe, os Pinheiros de Minas Gerais, ficou desolada, assim como a grande maioria do povo brasileiro. A morte de Getúlio Vargas desencadeou comoção popular sem precedentes e adiou por dez anos o golpe que militares e civis reacionários e entreguistas tramavam para derrubá-lo. Essa comoção é uma das muitas provas de que ele foi, de fato, o maior presidente da história do Brasil.

Os lulistas que me perdoem, mas o atual presidente seria um segundo lugar, no meu modesto entender, à frente de dois outros grandes presidentes que governaram o Brasil por menos tempo: Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Ernesto Geisel (1974-1979), ambos por mandato de cinco anos. Lula já governou quase dez anos e, se reeleito em 2026, como esperamos que seja, terá completado 16 anos na Presidência ao final do seu quarto governo. Getúlio Vargas permanece, entretanto, o presidente mais longevo da história, com 19 anos no cargo (1930-1945 e 1951-1954).

Não é por duração no cargo, evidentemente, que Getúlio Vargas deve ser considerado o maior presidente de todos os tempos. O que importa é a sua extraordinária quantidade de grandes feitos, que deixaram marcas indeléveis.

Antes de enumerá-los, faço duas rápidas digressões. Primeira: ninguém pode negar que Lula é um gigante, talvez hoje um dos principais líderes do planeta. Realizou muito nos seus dois primeiros mandatos, sobretudo no segundo. Resistiu heroicamente a uma perseguição implacável. Procura agora realizar mais ainda, defrontando-se, porém, com a pesadíssima herança recebida de Jair Bolsonaro e com a sabotagem permanente da turma da bufunfa.

Lula se destaca entre todos os presidentes, pelo que fez e está fazendo em termos de combate à pobreza e distribuição de renda. Pode ser considerado um sucessor de Getúlio Vargas, em que pese certa ambivalência dele e do PT em relação à era Vargas.

Segunda rápida digressão: os quatro presidentes mencionados têm pelo menos um ponto em comum: lideraram governos marcados pela combinação de desenvolvimento com nacionalismo e suscitaram a hostilidade dos setores mais conservadores da sociedade brasileira. Isso vale principalmente para os presidentes civis, mas até Ernesto Geisel teve que enfrentar a insubordinação do general Ednardo D’Ávila, comandante do Segundo Exército em São Paulo, antro de tortura e assassinatos políticos.

Teve, também que abortar uma tentativa de golpe comandada por seu ministro do Exército, Sílvio Frota, líder da linha dura. Foi o que permitiu a continuação da “distensão política lenta, segura e gradual” iniciada por Geisel e que daria fim à ditadura militar no início da década de 1980. Um parêntese: a inclusão de Ernesto Geisel entre os mais importantes presidentes pode causar estranheza; prometo explicar melhor em outra ocasião.

•                         Realizações econômicas e sociais do Getúlio Vargas

Lula e Juscelino são presidentes democráticos, eleitos pelo voto direto. Getúlio Vargas só o foi na sua segunda fase como presidente, quando voltou ao poder por eleição direta com uma vitória estrondosa em 1950.

Mesmo assim, qualquer um sofre na comparação com Getúlio Vargas. Não sei se os brasileiros, mesmo os que tiveram a oportunidade de se educar, fazem uma ideia, ainda que remota, do que foram os seus governos. A lista de realizações é longa, vou procurar resumi-las, sem a pretensão de mencionar sequer todas as principais.

No campo econômico, Getúlio Vargas reagiu à grande depressão dos anos 1930 com uma política de intervenção econômica e defesa do preço do café, então nosso principal produto de exportação, o que permitiu suavizar e abreviar o impacto da crise internacional sobre a economia brasileira. Praticou o que Celso Furtado denominou de “keynesianismo antes de Keynes”. Em consequência, a economia brasileira se recuperou antes da maioria das demais.

Já a Argentina, apegada ao grande sucesso da sua economia primário-exportadora até 1929, adotou uma linha econômica liberal e experimentou uma crise muito mais severa. Enquanto a Argentina naufragava, o Brasil de Getúlio Vargas deu partida à fase mais intensa de industrialização brasileira, com o centro dinâmico da economia se deslocando do setor agroexportador para o mercado interno, como destacou Celso Furtado.

Em 1941, Getúlio Vargas criou a Companhia Siderúrgica Nacional, explorando a rivalidade entre o Terceiro Reich e os Estados Unidos, e conseguindo assim o apoio americano para o estabelecimento da empresa. Em 1942, ele criou a Vale do Rio Doce, cujo primeiro presidente foi Israel Pinheiro, meu tio-avô e avô do economista André Lara Resende.

No seu segundo mandato, em 1952, Getúlio Vargas cria o BNDE (hoje BNDES). E a Petrobrás em 1953, sob forte resistência do capital estrangeiro e seus aliados domésticos. Só não conseguiu criar a Eletrobrás, que surgiria em 1961 com JK.

Boa parte das empresas estatais estratégicas para o desenvolvimento do Brasil remonta, portanto, à Era Vargas. Não por acaso, coube ao presidente Fernando Henrique Cardoso, neoliberal e entreguista, líder da “privataria”, anunciar pretensiosamente que poria “fim à Era Vargas”. O que FHC pôs no lugar estamos procurando até hoje. O que houve nos governos dele foi um processo acelerado e mal conduzido de privatização, de 1995 em diante, que desaguaria nas privatizações infames de Paulo Guedes no governo de Jair Bolsonaro.

Mas não foi só no terreno econômico que Getúlio Vargas trouxe mudanças fundamentais. Foi ele que instituiu as leis trabalhistas, em 1934, prevendo direitos para os trabalhadores, como salário mínimo, jornada de oito horas, férias remuneradas e liberdade sindical. Foi no seu governo que se estabeleceu o voto da mulher, em 1932, realizando antiga reivindicação das lideranças femininas.

Não por acaso, Getúlio Vargas volta em 1951 à Presidência “nos braços do povo”, como ele diria na sua carta-testamento três anos depois. Não por acaso, as suas políticas suscitaram intensa hostilidade de grande parte, provavelmente da maior parte da retrógrada e predatória elite brasileira.

•                         Os falsos democratas

Getúlio Vargas foi derrubado por um golpe militar em 1945. Veio então a presidência do marechal Eurico Gaspar Dutra, de triste memória, marcada pela implantação de uma política liberal desastrosa e pela subordinação aos interesses dos Estados Unidos. Em 1950, porém, retoma o desenvolvimentismo após derrotar o candidato da União Democrática Nacional (UDN), o brigadeiro Eduardo Gomes, cujo lema de campanha era “vote no brigadeiro, ele é bonito e é solteiro” e que chegara a dizer que “não necessitava dos votos dessa malta de desocupados, que apoia o ditador [Getúlio], para eleger-me presidente da República”.

A UDN só era democrática no nome. Tinha pouca competitividade eleitoral, perdia quase todas para o getulismo e logo ia bater nas portas dos quartéis, pedindo intervenção militar. Ela foi derrotada não só em 1950, mas em 1955 quando Juscelino se elegeu. E JK teria sido provavelmente eleito em 1965, não fosse o golpe militar de 1964, insuflado e liderado pelos “democratas” da UDN.

Diga-se de passagem que a direita brasileira só conseguiu vencer eleições presidenciais quando apelou para figuras exóticas e destrambelhadas, porém carismáticas – Jânio Quadros em 1960, Fernando Collor em 1989 e Jair Bolsonaro em 2018. A eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, um político sem carisma e até então sem grande projeção, um “presidente acidental”, como ele mesmo disse, só foram possíveis em circunstâncias muito especiais – com o Plano Real em 1994 e um gigantesco estelionato eleitoral em 1998.

O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC, sucessor da velha UDN anti-Getúlio, também só era democrático e social-democrata no nome, tendo os seus integrantes e seguidores, em grande maioria, embarcado alegremente no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016. Foi a UDN, comandada por Carlos Lacerda, um demagogo radical de direita, que arquitetou junto a militares entreguistas o golpe que seria abortado pelo suicídio de Getúlio Vargas há 70 anos.

Getúlio Vargas saiu da vida para entrar na história, como disse na sua carta-testamento, documento que merece ser lido até hoje, pois expressa magistralmente as aspirações de desenvolvimento e justiça social que continuamos buscando.

 

•                        Reflexões nos 70 anos da morte de Getúlio: um legado ambíguo para a gestão pública brasileira. Por Luiz Henrique Lima Faria

Em agosto de 2024, o Brasil relembra os 70 anos da morte de Getúlio Vargas, uma figura central na história do país, cuja trajetória política foi marcada por contradições profundas. Vargas, ao mesmo tempo em que se apresentou como defensor das classes trabalhadoras, consolidou um regime que centralizou o poder em suas mãos, utilizando a máquina do Estado para impor um controle autoritário sobre a sociedade brasileira.

Entre suas diversas contribuições, este artigo analisará a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), um órgão que desempenhou um papel controverso na transformação da administração pública brasileira.

Para compreender, plenamente, a criação do DASP, em 1938, é fundamental analisá-la dentro do contexto político e social da época, marcado pela ascensão do Estado Novo, regime de caráter autoritário instaurado por Vargas em 1937. Assumindo o poder em 1930, Vargas liderou um movimento que pôs fim à República Velha, dominada pelas oligarquias regionais.

Porém, em vez de democratizar a administração pública, Vargas optou por centralizar o poder, transformando o Estado brasileiro em um instrumento de controle político e social. O Brasil vivia um período de intensas mudanças, impulsionado pela industrialização e pela urbanização acelerada, mas também por um crescente movimento operário e pelas lutas sociais nas grandes cidades.

Nesse cenário de transição, Vargas identificou a necessidade de modernizar o Estado, não apenas para enfrentar os desafios econômicos, mas também para conter as pressões populares por reformas mais profundas. É sob esse contexto histórico que o presente artigo se propõe a questionar: o DASP, criado sob o governo de Getúlio Vargas, deixou algum legado positivo para o serviço público brasileiro ou foi, sobretudo, um instrumento de controle e repressão estatal?

Instituído por meio do Decreto-Lei nº 579 de 30 de julho de 1938, o DASP foi concebido para reorganizar, racionalizar e modernizar a administração pública no Brasil. Inspirado em modelos de gestão pública estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos e da Europa, o DASP tinha como objetivo garantir maior eficiência e profissionalismo na gestão dos serviços públicos.

Contudo, essa modernização não pode ser vista de forma neutra, pois o DASP também serviu para consolidar o poder de Vargas e reforçar o autoritarismo do Estado Novo. Embora o objetivo fosse tornar o serviço público mais eficiente, o DASP acabou promovendo uma lógica de controle e vigilância que permeou toda a administração pública. A centralização das políticas administrativas fortaleceu o Executivo, permitindo a Vargas alinhar as ações governamentais aos seus objetivos políticos e econômicos, muitas vezes em detrimento das demandas populares.

As mudanças estruturais promovidas pelo DASP ajudaram a consolidar um estilo de gestão que ainda caracteriza a administração pública brasileira contemporânea em muitos aspectos. A ideia de uma carreira pública estruturada, baseada no mérito e com possibilidades claras de ascensão, foi uma das inovações trazidas pelo DASP que, embora relevantes, também perpetuaram a lógica de um Estado voltado mais para a manutenção do poder do que para a promoção de reformas sociais profundas.

Além de suas contribuições para a estrutura administrativa, o DASP teve um papel crucial na formulação e implementação de políticas públicas. No entanto, ao centralizar o controle e introduzir métodos de gestão mais racionais, o órgão também serviu para reforçar o controle do governo federal sobre as ações administrativas, muitas vezes sufocando as iniciativas locais e regionais e limitando a participação democrática na administração pública.

Para além das críticas, o DASP foi fundamental para o desenvolvimento do Estado brasileiro, embora seu legado seja ambíguo. Ao introduzir práticas modernas de gestão, ele moldou uma administração pública mais eficiente e orientada para resultados, mas também consolidou um modelo de Estado que privilegiava o controle e a centralização em detrimento da participação democrática e das demandas populares. Embora extinto em 1990, o legado do DASP ainda permeia as práticas e estruturas da administração pública brasileira, perpetuando um modelo de gestão que, apesar de eficiente, carrega uma lógica de controle com raízes no período autoritário.

Diante desse contexto emaranhado de ambiguidades, a resposta à questão central deste artigo é complexa. O DASP deixou, sim, alguma herança benigna para o serviço público brasileiro, embora esse legado seja permeado por contradições. Ao refletirmos sobre os 70 anos da morte de Getúlio Vargas, é importante reconhecer tanto a importância do DASP quanto suas limitações e seu papel na consolidação de um Estado centralizador. Mais do que um órgão administrativo, o DASP foi uma ferramenta que Vargas utilizou para implementar reformas que, ao mesmo tempo que transformaram o Brasil, reforçaram desigualdades regionais, já existentes, por meio da centralização estatal.

A história do DASP é também a história do Brasil moderno, com todas as suas contradições. Sua criação e atuação na diversa realidade brasileira refletem os desafios e ambições de um país que, sob a liderança de Vargas, buscava se modernizar e se afirmar no cenário internacional, mas que também reproduziu lógicas autoritárias que, ainda hoje, influenciam nossa gestão pública.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Jornal GGN

 

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