O segredo milenar do Japão para reciclar
alimentos e reduzir resíduos
Koichi Takahashi já
sabia desde criança que queria salvar o planeta. Ele sonhava em construir uma
sociedade futurista que coexistisse de forma sustentável com a natureza, por
meio de um ciclo de reciclagem e regeneração.
Takahashi sabia que
não conseguiria refazer o mundo inteiro sozinho, mas, quando ficou mais velho,
ele percebeu que poderia canalizar sua energia para reformar um pequeno canto
do planeta. E as fazendas de criação de porcos foram o inesperado objetivo escolhido
por Takahashi para ser o trabalho da sua vida.
Ele fundou uma empresa
chamada Centro de Ecologia Alimentar do Japão, que oferece uma solução
lucrativa para transformar restos de alimentos humanos em ração para porcos de
alta qualidade.
"Eu quis formar
um projeto modelo de economia circular", explica ele. "Em vez de
depender de rações importadas, podemos fazer uso eficiente dos resíduos
alimentares locais."
As pequenas dimensões
e o terreno montanhoso do Japão trazem dificuldades para a sua autossuficiência
alimentar. O país importa quase dois terços dos alimentos que consome e 75% da
sua ração animal.
Mesmo assim, o Japão
descarta 28,4 milhões de toneladas de alimentos todos os anos – grande parte
deles, ainda em condições de consumo.
O custo econômico e
ambiental é imenso. Em comparação com muitos países, os consumidores japoneses
pagam mais pelos alimentos porque grande parte deles é importada.
Eles também pagam
impostos para cobrir a maior parte dos 800 bilhões de ienes (cerca de US$ 5,4
bilhões, ou R$ 30,4 bilhões) gastos anualmente pelo país para incinerar os seus
resíduos. E os alimentos representam cerca de 40% do lixo incinerado no Japão,
em um processo que produz grandes níveis de poluição do ar e emissões de gases
do efeito estufa.
O Japão é o quinto
país do mundo que mais emite gases do efeito estufa. O objetivo é reduzir as
emissões em 46% até 2030, passando a ser totalmente neutro em carbono até 2050.
E combater o desperdício de alimentos precisará fazer parte destes esforços, segundo
Takahashi.
• Conhecimento antigo, nova solução
A visão de Takahashi
para criar um novo circuito alimentar sustentável surgiu em 1998. Naquele ano,
o governo japonês lançou um projeto para promover formas de transformar
recursos que seriam desperdiçados em ração animal.
Na época, os preços
dos grãos importados estavam aumentando e havia um "senso de crise no
Japão", relembra ele. As pessoas perceberam que o setor de criação de
animais entraria em colapso, se não fosse encontrada uma solução.
Takahashi trabalhava
então como veterinário. Ele percebeu que esta era uma oportunidade de colocar
em uso seus conhecimentos na criação de animais para realizar seu sonho de
ajudar o planeta. Mas, ao analisar melhor a situação, ele logo viu que não
haveria soluções rápidas.
O simples
encaminhamento dos resíduos alimentares para as fazendas é um processo difícil.
Existem questões importantes que dificultam a questão, como a alta variação de
conteúdo dos resíduos alimentares; o fato de que o alto teor de água dos
alimentos facilita a deterioração; e a secagem dos alimentos para solucionar o
problema da água exigiria quase a mesma quantidade de energia necessária para
sua incineração.
Para chegar a uma
solução, Takahashi examinou uma arte natural desenvolvida pelo Japão há
milênios: a fermentação.
"Percebi que já
detínhamos a tecnologia para criar um produto que pudesse durar mais
tempo", ele conta.
• A longa história da fermentação no Japão
O Japão tem uma
relação especial com as técnicas de fermentação. Evidências arqueológicas
indicam que as pessoas começaram a fermentar pequenas frutas no território
japonês no início do período Jomon, cerca de 5 mil anos atrás.
Hoje em dia,
alimentos, bebidas e condimentos fermentados ocupam posição central na cultura
alimentar japonesa. O país chega a ter seus próprios sommeliers de fermentação
credenciados.
O Japão também é líder
na ciência da fermentação, um campo de estudos que levou a inovações como o
desenvolvimento de biocombustíveis e a descoberta de antibióticos.
A fermentação é objeto
de estudos científicos no Japão desde o século 19, quando o governo começou a
investir massivamente no estabelecimento de novas indústrias, baseadas em
práticas antigas como a produção de shoyu e de saquê.
Em parte, a posição de
destaque do país na ciência da fermentação surgiu da abordagem distinta dos
seus pesquisadores em relação aos micróbios, segundo a historiadora Victoria
Lee, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. Ela é autora do livro The Arts
of the Microbial World: Fermentation Science in Twentieth-Century Japan
("A arte do mundo microbiano: a ciência da fermentação no Japão do século
20", em tradução livre).
Segundo ela, os
microbiólogos japoneses "tomaram uma direção totalmente diferente"
dos seus colegas europeus e norte-americanos, que se concentraram nos patógenos
e germes. E, em vez de observar os micróbios como inimigos, o Japão criou a
tradição de "considerá-los parceiros poderosos".
No século 20, a
dedicação do país à fermentação trouxe uma abordagem distintamente japonesa, na
qual os micróbios são considerados "trabalhadores vivos", explica
Lee.
"Para os
cientistas, mais do que um processo alimentar, a fermentação se tornou uma
forma de transformar a sociedade e solucionar diversos problemas ambientais e
de recursos", afirma ela.
Como os pesquisadores
da fermentação que o precederam, Takahashi buscava uma forma de, nas palavras
de Lee, "pegar o que, de outra forma, seria simplesmente lixo e
transformá-lo em algo útil, criando novas indústrias no processo".
Trabalhando com
pesquisadores do governo, universidades e institutos nacionais, Takahashi usou
seu conhecimento veterinário para criar um produto alimentar líquido,
fermentado com ácido láctico, para os porcos. Sua equipe precisou solucionar
enormes problemas.
"Quando
administramos o primeiro teste da ração para os porcos, eles cresceram menos e
sua carne tinha muita gordura", relembra Takahashi. E, depois de "uma
série de fracassos", sua equipe conseguiu chegar ao teor nutricional
correto.
Eles também
encontraram uma forma de ampliar a vida útil da "eco ração", como
chamaram o produto, reduzindo o pH para 4,0, um nível no qual a maior parte das
bactérias patogênicas não consegue sobreviver.
O produto resultante –
claro e aguado – tem sabor similar a iogurte azedo, segundo Takahashi. Ele pode
ficar na prateleira, sem refrigeração, por até 10 dias.
A eco ração também
traz benefícios para o clima. Em comparação com a quantidade equivalente de
ração importada, seu processo de fabricação gera 70% menos emissões de gases do
efeito estufa, segundo Takahashi.
Quando tudo se
encaixou, Takahashi começou a procurar o governo e diversos outros interessados
para fazer com que seu sistema de reciclagem pudesse chegar ao mercado.
Foram necessários anos
de trabalho, mas "agora estabelecemos uma relação de confiança" com
diversos órgãos governamentais que supervisionam questões ambientais e de
resíduos, segundo ele. E, na verdade, as autoridades do governo "nos procuram
com frequência em busca de aconselhamento".
• Sustentável e lucrativo
A maior parte das
instalações de tratamento de lixo tem cheiro, digamos, de lixo. Mas os
visitantes do Centro de Ecologia Alimentar do Japão muitas vezes ficam
surpresos com a ausência do odor pungente. Quando muito, o ar relembra uma loja
de venda de smoothies.
O centro fica em
Sagamihara, uma cidade da prefeitura de Kanagawa a cerca de duas horas de trem
da capital japonesa, Tóquio. A cidade não tem grandes atrações, mas cerca de
1,5 mil visitantes de todo o Japão – de estudantes do ensino fundamental até
aposentados – visitam o centro todos os anos, para aprender sobre reciclagem de
alimentos no próprio local.
A instalação processa
cerca de 40 toneladas de resíduos alimentares por dia. Eles chegam de caminhão
de várias centenas de supermercados, lojas de departamentos e grandes
indústrias.
Algumas dessas
empresas são motivadas pelo desejo de tornar suas operações mais verdes, mas
todas elas recebem o incentivo das tarifas mais baixas cobradas pelo centro
para receber seus resíduos, em comparação com as incineradoras.
Os alimentos variam a
cada dia, mas o soro de leite – subproduto da fabricação de manteiga e queijo –
está sempre presente, bem como os resíduos da produção em massa de guioza e
sushi.
Qualquer processo de
produção resulta em perda inevitável de 3% a 5% de produto, segundo Takahashi.
Por isso, uma fábrica que produz 50 toneladas de alimentos por dia irá gerar
pelo menos 1,5 tonelada de resíduos.
para enormes tanques
de fermentação
Grandes quantidades de
resíduos alimentares também são produzidas pelos fabricantes contratados para
abastecer constantemente as 55.657 lojas de conveniência do Japão, muitas delas
abertas 24 horas por dia, 365 dias por ano.
Os alimentos
perecíveis para as lojas de conveniência "devem ser fornecidos assim que o
pedido for feito, de forma que as fábricas que produzem sanduíches embalados e
bolinhos de arroz precisam produzir a mais, mesmo se parte for perdida",
explica Takahashi. "Devido à importância de evitar a perda de
oportunidades de venda, grandes quantidades de resíduos alimentares se tornaram
o padrão."
Em uma manhã recente,
diversos tambores de 140 e 500 litros com restos de guioza, arroz, repolho,
cascas de abacaxi, bananas, macarrão e pães de forma aguardavam para serem
processados.
Os lotes de eco ração
são balanceados com base no seu teor calórico e nutricional. Por isso,
diferentes materiais são misturados intencionalmente e não de forma aleatória.
Para evitar
contaminações, todos os alimentos passam por um detector de metais e são
inspecionados manualmente por funcionários em uma correia transportadora.
Em seguida, eles são
picados e triturados, resultando em um produto líquido – em média, os alimentos
são compostos por 80% de água – que é esterilizado em seguida, para reduzir as
bactérias patogênicas.
Por fim, o líquido é
conduzido para um dentre vários tanques enormes onde ocorre a fermentação,
graças às bactérias presentes no ácido láctico.
A eco ração resultante
custa aos pecuaristas cerca da metade da ração convencional – e as fazendas
podem também adaptar sua fórmula pessoal conforme suas necessidades. Elas podem
solicitar mais lisina ou outros aminoácidos, por exemplo, para aumentar a massa
muscular ou a gordura dos seus porcos.
A Eco Fazenda Azumino
em Nagano, na região central do Japão, consome a ração produzida pelo centro
desde 2006. Segundo Dan Kawakami, pecuarista da fazenda, a carne dos porcos
alimentados com a ecorração é de melhor qualidade.
O uso de uma fonte de
ração sustentável "também diferencia o nosso produto dos
concorrentes", segundo ele, "e é vantajoso em termos de custo".
A "carne de porco
ecológica" de fazendas como a Azumino é comercializada por dezenas de
restaurantes, supermercados e lojas de departamentos em todo o país. A lista de
clientes não para de crescer e o produto gera vendas anuais de mais de 350 milhões
de ienes (cerca de US$ 2,3 milhões ou R$ 13,3 milhões), segundo Takahashi.
"Está se tornando
popular como uma carne deliciosa e sustentável", segundo ele.
• Gerando eletricidade
No ano passado, Koichi
Takahashi também iniciou a produção de biogás, uma forma de energia renovável
gerada pela fermentação de metano. Esta operação amplia o leque de alimentos
recebido pela fábrica, já que os porcos não podem comer nada com alto teor de
gordura, sal ou óleo.
Imensas cubas de 1,5
mil toneladas retêm o material borbulhante, parecido com o Poço do Fedor
Eterno, do filme Labirinto: A Magia do Tempo (1986). Nelas, os resíduos são
misturados com água e aquecidos para dar início à fermentação.
Um gerador de
conversão de eletricidade transforma o metano resultante em energia elétrica,
que Takahashi vende de volta para a rede. A fábrica gera atualmente 528 kW de
eletricidade por dia, que são suficientes para abastecer cerca de 1 mil
residências.
O subproduto sólido do
processo – uma substância em pó preto com saboroso aroma de condimento – é seco
utilizando o calor excedente do gerador e vendido como fertilizante agrícola,
rico em nutrientes.
Ou seja, como destaca
Takahashi, "nada é desperdiçado".
É importante observar
como o centro lucra com as 35 mil toneladas de resíduos alimentares processadas
todos os anos.
"Estamos
subvertendo a noção convencional de que os esforços ambientais não são
lucrativos, ou que a reciclagem simplesmente é cara demais", afirma
Takahashi.
Como seu objetivo é
"mudar a sociedade", ele não patenteou sua tecnologia, permitindo que
outras pessoas reproduzam o seu método.
O centro serviu de
modelo para outras instalações no Japão que empregam seu método de fermentação.
Juntas, elas produzem mais de um milhão de toneladas de ecorração por ano,
comprovando que "o esforço sustentável e ecológico pode ser
lucrativo", segundo ele.
Takahashi também
recebe regularmente estudantes, acadêmicos e executivos de todo o mundo. Eles
vêm aprender sobre a fermentação e os resíduos alimentares.
Para fechar o círculo,
ele gosta de encerrar as visitas servindo para as pessoas a própria carne de
porco, para que elas possam avaliar por si próprias a sua qualidade.
O porco é servido no
estilo tonkatsu – frito por imersão, acompanhado de arroz e salada produzidos
na mesma fazenda. A carne de porco é surpreendentemente macia, com a proporção
correta entre gordura e os suculentos músculos.
A mesma refeição é
servida três vezes por semana para os funcionários do centro, "para
motivá-los a provar o sabor dos porcos criados com os seus próprios
produtos", segundo Takahashi.
• A fermentação de espinhas de peixe
O cientista de
fermentação Makoto Kanauchi, da Universidade de Miyagi em Sendai, no Japão, usa
a ciência para aprimorar e expandir as antigas técnicas de fermentação.
"O cultivo dos
bons micróbios para eliminar os ruins é a origem dos alimentos
fermentados", explica ele.
Kanauchi faz
experiências constantes com novos tipos de alimentos fermentados, incluindo um
molho de soja feito com espinhas de baiacu.
Ele também produziu um
queijo de leite de soja macio e cremoso e um condimento fermentado similar a
molho de peixe produzido com plâncton.
Fonte: BBC Future
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