Nathan Caixeta e André Passos Santos: ‘Delfim
Netto e as esquerdas’
Somos dois economistas
de gerações diferentes. Enquanto um vivenciou a ditadura já em seu declínio,
outro só a conhece sob as lentes da História. Não sabemos como – e francamente
isto não importa – nos tornamos tão amigos. Não como mestre e discípulo, como
nossas idades poderiam sugerir, mas apenas como iguais, com vivências e
conhecimentos diversos, que se complementam em muitos aspectos. Às vezes
conversamos sobre a geração dos que hoje são jovens adultos, como é o caso do
primeiro autor, e acabamos convergindo em alguns pontos de vista. A juventude
consciente tem pressa, uma ânsia de mudar o mundo; e há entre os mais vividos
aqueles que aprenderam a ser mais cautelosos em suas avaliações, mas não
desistiram de construir suas utopias.
Boa parte dos já não
tão jovens diz que as obrigações materiais os obrigaram a ser pragmáticos –
como a justificar a traição aos próprios ideais da juventude – enquanto a
geração em seus 20/30 anos já ultrapassou a modernidade. São pós-modernos.
Indivíduos líquidos, para quem ideologias não importam.
Será? Zygmunt Bauman,
em seu famoso Modernidade Líquida defende que o ser moderno
“significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado constante de
transgressão”. O que distingue os sujeitos da primeira modernidade, definida
pelos símbolos da velocidade e da aceleração do tempo, dos sujeitos da modernidade
líquida é que a ideia de progresso, de futuro, de avanço, deixou de estar
ligada ao desenvolvimento coletivo da razão e de seus instrumentos e em seu
lugar dominou o instinto do progresso pessoal, do individualismo competitivo,
da permanente autoafirmação.
Um dos efeitos dessa
passagem é que o ego, elemento criador e reflexivo, que desfaz para fazer de
novo, mais e melhor, escapou dos constrangedores deveres da transgressão. O
dever de olhar o antes para construir o agora e imaginar o depois tornou-se
insuportável no mundo onde a comunicação e as relações sociais são encurtadas
ao espaço de um tuite e ao tempo de uma piscada.
Outro efeito é que a
identidade, múltipla e em transformação, agora cabe em um impulso digital. O
ego não precisa mais da transgressão, basta destruir. Por isso, os deuses da
tecnologia nos deram os botões de excluir e aceitar. Ninguém escapa da vigilância
do nosso reino pessoal, validado e revalidado em nanossegundos.
Elisabeth Roudinesco
explicou que o culto ao ego não é necessariamente consciente, mas parte de uma
tentativa de objetificar certas subjetividades que garantem a imposição
consciente do conflito entre o eu e o outro. Significa a obtenção e a defesa de
símbolos que garantem a definição da identidade e da alteridade com pouco ou
nenhum conteúdo subjetivo, isto é, peculiar em relação a uma generalidade
passível de debate, de crítica e de reflexão. Em suma, a consciência se resume
ao eu e aos meus, em oposição ao seu, aos seus e aos outros.
As reações de alguns
intelectuais e influenciadores da esquerda ao falecimento do professor Delfim
Netto estamparam os trejeitos e mau-jeitos dos sujeitos líquidos. Vejamos
algumas delas:
Vladimir Safatle,
filósofo, escreveu em seu Twitter: “a memória é uma arma política. Não há
perdão para quem nunca pediu perdão. Delfim Netto foi a cabeça da economia da
ditadura militar, artífice de ‘milagres’ que nunca ocorreram, peça maior da
Oban e seu aparelho de tortura, do AI-5. Minimizar isso agora é uma afronta à
História”.
David Deccache,
economista, utilizando o mesmo instrumento, dissertou: “é curioso como a
memória pode ser seletiva. A morte de Delfim Neto, signatário do infame AI-5 e
arquiteto econômico de um regime que torturou e matou, está sendo tratada com
um respeito quase reverente.
Essa exaltação de
alguém que ajudou a instaurar um dos capítulos mais cruéis da nossa história
revela um desprezo alarmante pelas vítimas da ditadura. Celebrar Delfim é
esquecer os mortos, os torturados, os desaparecidos — aqueles que sofreram para
que ele pudesse conduzir suas políticas com mão de ferro. A História, parece, é
mais gentil com quem a escreveu em sangue alheio.”
Em sua crítica à nota
de pesar de Lula e do governo, Jones Manoel, em seu canal do Youtube, tratou
das adjetivações: “vamos lembrar que é de Delfim Netto a frase: primeiro tem
que fazer o bolo crescer para depois dividir… Delfim Netto era um homem das classes
dominantes, era um homem do Imperialismo, era um homem contra a classe
trabalhadora, era um homem que sempre pensou o tal desenvolvimento brasileiro
de costas para as necessidades do povo trabalhador”.
A capa de apresentação
da notícia do falecimento de Delfim pelo canal Galãs Feios, no Youtube, carrega
a seguinte frase: “já foi tarde”. No miolo da exposição do apresentador, saltam
os seguintes dizeres: “eis a prova, agora morta, de que o tempo não cobra quem
é rico, e se for cobrar não deve ter achado o endereço e a cobrança não foi
entregue”.
Esses são alguns
exemplos.
O ser-líquido é
superior e altivo. Autoriza, desautoriza, carrega a História nas costas como se
sua forma fluida ainda pudesse sentir a rigidez do sólido cuja liquefação o
criou. Ele vê as partes e conclui sobre o todo. Não tem paciência para
mediações. Importa lançar à massa habitante de seu reino algum indício de
resistência ao espaço. O ser-líquido transborda os saberes e opina.
Os modernos, com suas
décadas de memória, à direita e à esquerda, trataram de apontar, a despeito das
complexidades do personagem histórico-político-intelectual, a importância de
Delfim para o debate econômico e político do Brasil. Curioso. Poderia ser uma
coisa geracional. Mas não é.
Professor Delfim
esclareceu, em seu artigo Economia e Civilização, que os agentes
sociais são “átomos pacientes e agentes das interações: pensam, aprendem e
comunicam-se”, com a boa ironia de quem distinguia a Economia das ciências
naturais. Talvez isso não se aplique para os seres-H2O. Ou, talvez, só se
aplique a eles. Sujeitos incontroversos, resistentes às contradições; moles e
inofensivos parados, fortes e cortantes em movimento.
Cabe repor então
algumas verdades históricas. Não com a intenção de normalizar ou justificar as
atitudes de Antonio Delfim Netto, ou de condená-lo ao mármore do inferno. Não é
nosso papel arvorarmo-nos em juízes ou júri. Com o tempo, amainadas as paixões,
a História saberá colocá-lo em seu devido lugar, como tem feito a inúmeras
figuras controversas como ele, dando a cada atitude seu devido peso e
consequência.
Sim, Delfim foi
controverso. Ao longo da vida tomou atitudes que a muitos parecem incoerentes.
Contudo, é preciso aconselhar a quem quiser encontrar coerência ao longo da
vida de algum ser humano – ainda mais em um de tão alongada existência – que
faça tal como Diógenes: tome uma lanterna e saia pelo mundo a procurar tal
pessoa. Desejamos-lhe boa sorte. A vida transforma a alguns, enquanto endurece
a outros, que paradoxalmente veem a si mesmos como “líquidos”. São coerentes na
própria incoerência, tomam a parte pelo todo e atribuem a si mesmos o papel de
tribunal da História.
Delfim, oriundo de uma
família de baixa classe média paulistana, descendente de imigrantes italianos
radicados no Cambuci, formou-se em Economia na USP, onde doutorou-se com uma
tese sobre o problema do café no Brasil, de reconhecida qualidade. Tornou-se
professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEA da USP,
para quem doou sua enorme biblioteca pessoal, que de tão numerosa obrigou a
construção de um anexo de grandes proporções para recebê-la. Mas, embora
professor, não deixa uma produção acadêmica de vulto. Era reconhecidamente um
homem prático.
Sempre se destacou por
manter relações próximas e informadas com o poder. Com a ditadura
empresarial-militar, encontrou terreno fértil para ascender rapidamente. Foi um
dos ideólogos da ditadura, e não apenas no terreno econômico, mas também no
político. Ministro da Fazenda de Costa e Silva, foi um dos artífices do
“milagre econômico”, um período de grande aceleração do crescimento econômico,
à sombra do infame AI-5, de que foi um dos signatários. Uma simples comparação
entre os Censos Demográficos de 1960 e 1980 demonstra cabalmente a quem esse
crescimento econômico serviu: a concentração de renda no topo da distribuição
cresceu na mesma proporção em que crescia a economia. O “milagre” foi para
poucos, e custou o suor e até o sangue e a liberdade de muitos.
Há quem diga que em
seu “exílio dourado” como embaixador do Brasil na França – que para alguns foi
a maneira encontrada por Geisel de afastá-lo dos círculos mais íntimos do poder
– amealhou uma fortuna pessoal pela via da corrupção. Foi também ministro da
Agricultura e do Planejamento, sempre durante os governos militares. Construiu
uma sólida rede de contatos entre os industriais, setores do agronegócio e nos
círculos de poder, onde habilmente foi alocando muitos de seus ex-alunos. Era
um homem de vasta cultura, bem conectado e extremamente bem-informado, o que o
tornou valioso como consultor de empresas (um outro nome para lobista),
ajudando-o a consolidar uma fortuna considerável.
Portanto, era sem
dúvida (ele próprio jamais demonstrou qualquer arrependimento) um homem da
ditadura empresarial-militar, da qual fez parte com destaque. Suas mãos estavam
manchadas do sangue de opositores (há indícios de que ajudou a financiar a
famigerada Operação Bandeirantes) e do suor dos trabalhadores, a quem ajudou a
explorar manipulando índices de inflação. E foi regiamente recompensado por
isso.
Mas – aqui é preciso
repor a verdade dos fatos – Delfim não cunhou a frase “é preciso fazer crescer
o bolo para depois reparti-lo”. Miriam Limoeiro Cardoso, em seu livro A
Ideologia do Desenvolvimento. Brasil: JK-JQ, mostra que Juscelino
Kubitschek, que governou quando Delfim era apenas um jovem professor, já
pensava desta forma. Aliás, a elite industrial brasileira sempre resistiu com
muito vigor a distribuir parte dos seus ganhos, quer pela via dos salários,
quer pela via dos tributos. Os desenvolvimentistas, com mais ou menos
preocupação social, estavam mais ocupados com a acumulação de capital
industrial do que com as deformações sociais que o processo de industrialização
induzida pelo Estado produziu ao longo de 50 anos.
Delfim era um aliado
das classes dominantes, sobretudo de interesses industriais paulistas, mas
também financeiros e rurais. E como tal atuou, ao longo de sua carreira, mais
política do que econômica. Mas foi dos poucos ideólogos da ditadura que não
aderiu ao neoliberalismo que – de forma igualmente cruel – tem contribuído para
inibir a ação do Estado para aliviar as péssimas condições de vida dos
brasileiros. Podemos dizer, sem medo de errar, que o neoliberalismo produziu
mortes – tal como fez a ditadura – por vias diretas, com o crescente
assassinato de jovens pretos nas periferias, sem expectativas de futuro; ou
pela via da expansão da miséria, do desemprego, da superexploração do trabalho
e da fome de dezenas de milhões de brasileiros. Contudo, não em nome da
industrialização do país, mas da acumulação de capital fictício nas mãos de
pouquíssimos. O desenvolvimentismo do qual Delfim fez parte produziu riquezas
reais e empregos de qualidade – decerto sem qualquer preocupação distributiva –
mas o neoliberalismo produz uma riqueza de papel, estéril, que em nada
contribui para o país – excetuados os bilionários que florescem à sua sombra
como cogumelos depois da chuva.
Não há escândalo algum
na fala do presidente Lula ao lamentar sua morte. Nem mesmo em citá-lo junto
com Maria da Conceição Tavares, cuja perda recente ainda choramos. Decerto
foram trajetórias muito diferentes entre si – ela foragida de uma ditadura, ele
servidor de outra ditadura – mas ela mesma via Delfim Netto como um economista
estruturalista. Ambos foram valiosos conselheiros de Lula, que os ouvia com
respeito. Aliás, a influência de Delfim Netto ajudou Lula a encontrar espaços
de mediação e diálogo com as elites econômicas do país, que o temiam. Um
conhecido representante dos industriais paulistas afirmou que centenas de
empresários deixariam o país se Lula fosse eleito. Pois Lula deve a Delfim,
embora não somente a ele, a construção de uma convivência civilizada com o
grande capital, que foi importante para o sucesso de seus dois primeiros
governos. Lula pode ser acusado de muitas e variadas coisas – justa ou
injustamente – mas procurou cercar-se de pessoas capazes e a elas sempre
demonstrou gratidão.
Nós, economistas,
muitas vezes menosprezamos a dimensão política e corremos a ditar fórmulas,
como se fôssemos demiurgos. Neoclássicos, estruturalistas, marxistas,
keynesianos, como quer que nos denominemos, muitas vezes nos limitamos a
enfatizar a técnica, embora os chamados heterodoxos reconheçam formalmente a
Economia como uma ciência social, sujeita à realidade histórica, social e
política, ao contrário da corrente majoritária no debate público, que trata a
Economia como se exata fora, exibindo suas planilhas, gráficos e equações como
“a verdade”.
Porém, muitos de nós,
heterodoxos, nos apressamos a criticar o governo de base popular, esquecidos de
que são muitas as limitações e barreiras que a realidade política procura impor
para inibir a ação governamental. Mas a verdade é que a política orienta a
economia, e não o contrário, e não importam as nossas frustrações pessoais.
Quem está no poder no momento navega contra o vento, atravessa um mar de
sargaço, e cede por concessão ou por ser obrigado, para conseguir obter espaço
para melhorar a dura situação social da imensa maioria dos brasileiros, que não
sabem se terão como alimentar e abrigar suas famílias amanhã.
Nesse sentido, são
valiosos aqueles que contribuem de alguma forma para que o governo de base
popular avance, mesmo que aos tropeços, entre os escolhos da política. Delfim
Netto, seja lá com que motivação o tenha feito, foi um dos que contribuiu
decisivamente para que Lula – e depois a tão criticada Dilma – pudessem avançar
pequenas conquistas ao povo brasileiro. Saímos do vergonhoso Mapa da Fome da
ONU, ao qual o neoliberalismo da “Ponte para o Futuro” e o governo neofascista
que o sucedeu nos empurrou de volta. As forças da escuridão estavam o tempo
todo à espreita, buscando sinais de fraqueza, para destruir o pouco que
havíamos construído.
A bem da verdade,
Delfim Netto não estava entre eles. Curiosamente, alguns de seus mais acerbos
críticos de hoje, sim. E acabaram, conscientemente ou não, contribuindo para
empurrar o governo de base popular de Dilma Rousseff para o lodaçal do
impeachment e Lula para a prisão persecutória e injusta. É só olharmos as
chamadas “jornadas de junho” de 2013 ou suas atitudes no início da farsa da
Lava-jato e veremos que alguns deles – admitam ou não – cevaram com sua pressa
e incompreensão das limitações políticas a cadela faminta do neofascismo. As
pessoas às vezes não atentam para que moinho estão levando sua água.
Que a História sopese
com exatidão os atos de Delfim Netto, já que a ditadura garantiu que a justiça
não o fizesse. Mas que não se deixe de reconhecer que também contribuiu para a
governabilidade do primeiro presidente da República oriundo do povo, com preocupações
genuínas com a justiça social. Não foram poucos os que serviram à ditadura
empresarial-militar e depois mudaram de lado, contribuindo para a
redemocratização. Teotônio Vilela e José Sarney, com todas as suas
contradições, são festejados. Mas temos visto epítetos como “monstro”,
“medíocre” e “oportunista” sendo aplicados a Delfim Netto, e nos cabe registrar
que discordamos.
Teria sido mais fácil
para ele aderir à onda neoliberal, mas ele não o fez. Merece toda a reprovação
pelos atos que praticou ou influenciou durante o regime militar, mas sua
trajetória não se resume a isso. Aos que o criticaram em vida, aplaudimos. Aos
que o louvaram, respeitamos. Mas agora sua família, que chora seu falecimento,
merece respeito, não pedradas.
Nesse momento,
acreditamos, menos é mais.
Fonte: Jornal GGN
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