quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Nathan Caixeta e André Passos Santos: ‘Delfim Netto e as esquerdas’

Somos dois economistas de gerações diferentes. Enquanto um vivenciou a ditadura já em seu declínio, outro só a conhece sob as lentes da História. Não sabemos como – e francamente isto não importa – nos tornamos tão amigos. Não como mestre e discípulo, como nossas idades poderiam sugerir, mas apenas como iguais, com vivências e conhecimentos diversos, que se complementam em muitos aspectos. Às vezes conversamos sobre a geração dos que hoje são jovens adultos, como é o caso do primeiro autor, e acabamos convergindo em alguns pontos de vista. A juventude consciente tem pressa, uma ânsia de mudar o mundo; e há entre os mais vividos aqueles que aprenderam a ser mais cautelosos em suas avaliações, mas não desistiram de construir suas utopias.

Boa parte dos já não tão jovens diz que as obrigações materiais os obrigaram a ser pragmáticos – como a justificar a traição aos próprios ideais da juventude – enquanto a geração em seus 20/30 anos já ultrapassou a modernidade. São pós-modernos. Indivíduos líquidos, para quem ideologias não importam.

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Será? Zygmunt Bauman, em seu famoso Modernidade Líquida defende que o ser moderno “significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado constante de transgressão”. O que distingue os sujeitos da primeira modernidade, definida pelos símbolos da velocidade e da aceleração do tempo, dos sujeitos da modernidade líquida é que a ideia de progresso, de futuro, de avanço, deixou de estar ligada ao desenvolvimento coletivo da razão e de seus instrumentos e em seu lugar dominou o instinto do progresso pessoal, do individualismo competitivo, da permanente autoafirmação.

Um dos efeitos dessa passagem é que o ego, elemento criador e reflexivo, que desfaz para fazer de novo, mais e melhor, escapou dos constrangedores deveres da transgressão. O dever de olhar o antes para construir o agora e imaginar o depois tornou-se insuportável no mundo onde a comunicação e as relações sociais são encurtadas ao espaço de um tuite e ao tempo de uma piscada.

Outro efeito é que a identidade, múltipla e em transformação, agora cabe em um impulso digital. O ego não precisa mais da transgressão, basta destruir. Por isso, os deuses da tecnologia nos deram os botões de excluir e aceitar. Ninguém escapa da vigilância do nosso reino pessoal, validado e revalidado em nanossegundos.

Elisabeth Roudinesco explicou que o culto ao ego não é necessariamente consciente, mas parte de uma tentativa de objetificar certas subjetividades que garantem a imposição consciente do conflito entre o eu e o outro. Significa a obtenção e a defesa de símbolos que garantem a definição da identidade e da alteridade com pouco ou nenhum conteúdo subjetivo, isto é, peculiar em relação a uma generalidade passível de debate, de crítica e de reflexão. Em suma, a consciência se resume ao eu e aos meus, em oposição ao seu, aos seus e aos outros.

As reações de alguns intelectuais e influenciadores da esquerda ao falecimento do professor Delfim Netto estamparam os trejeitos e mau-jeitos dos sujeitos líquidos. Vejamos algumas delas:

Vladimir Safatle, filósofo, escreveu em seu Twitter: “a memória é uma arma política. Não há perdão para quem nunca pediu perdão. Delfim Netto foi a cabeça da economia da ditadura militar, artífice de ‘milagres’ que nunca ocorreram, peça maior da Oban e seu aparelho de tortura, do AI-5. Minimizar isso agora é uma afronta à História”.

David Deccache, economista, utilizando o mesmo instrumento, dissertou: “é curioso como a memória pode ser seletiva. A morte de Delfim Neto, signatário do infame AI-5 e arquiteto econômico de um regime que torturou e matou, está sendo tratada com um respeito quase reverente.

Essa exaltação de alguém que ajudou a instaurar um dos capítulos mais cruéis da nossa história revela um desprezo alarmante pelas vítimas da ditadura. Celebrar Delfim é esquecer os mortos, os torturados, os desaparecidos — aqueles que sofreram para que ele pudesse conduzir suas políticas com mão de ferro. A História, parece, é mais gentil com quem a escreveu em sangue alheio.”

Em sua crítica à nota de pesar de Lula e do governo, Jones Manoel, em seu canal do Youtube, tratou das adjetivações: “vamos lembrar que é de Delfim Netto a frase: primeiro tem que fazer o bolo crescer para depois dividir… Delfim Netto era um homem das classes dominantes, era um homem do Imperialismo, era um homem contra a classe trabalhadora, era um homem que sempre pensou o tal desenvolvimento brasileiro de costas para as necessidades do povo trabalhador”.

A capa de apresentação da notícia do falecimento de Delfim pelo canal Galãs Feios, no Youtube, carrega a seguinte frase: “já foi tarde”. No miolo da exposição do apresentador, saltam os seguintes dizeres: “eis a prova, agora morta, de que o tempo não cobra quem é rico, e se for cobrar não deve ter achado o endereço e a cobrança não foi entregue”.

Esses são alguns exemplos.

O ser-líquido é superior e altivo. Autoriza, desautoriza, carrega a História nas costas como se sua forma fluida ainda pudesse sentir a rigidez do sólido cuja liquefação o criou. Ele vê as partes e conclui sobre o todo. Não tem paciência para mediações. Importa lançar à massa habitante de seu reino algum indício de resistência ao espaço. O ser-líquido transborda os saberes e opina.

Os modernos, com suas décadas de memória, à direita e à esquerda, trataram de apontar, a despeito das complexidades do personagem histórico-político-intelectual, a importância de Delfim para o debate econômico e político do Brasil. Curioso. Poderia ser uma coisa geracional. Mas não é.

Professor Delfim esclareceu, em seu artigo Economia e Civilização, que os agentes sociais são “átomos pacientes e agentes das interações: pensam, aprendem e comunicam-se”, com a boa ironia de quem distinguia a Economia das ciências naturais. Talvez isso não se aplique para os seres-H2O. Ou, talvez, só se aplique a eles. Sujeitos incontroversos, resistentes às contradições; moles e inofensivos parados, fortes e cortantes em movimento.

Cabe repor então algumas verdades históricas. Não com a intenção de normalizar ou justificar as atitudes de Antonio Delfim Netto, ou de condená-lo ao mármore do inferno. Não é nosso papel arvorarmo-nos em juízes ou júri. Com o tempo, amainadas as paixões, a História saberá colocá-lo em seu devido lugar, como tem feito a inúmeras figuras controversas como ele, dando a cada atitude seu devido peso e consequência.

Sim, Delfim foi controverso. Ao longo da vida tomou atitudes que a muitos parecem incoerentes. Contudo, é preciso aconselhar a quem quiser encontrar coerência ao longo da vida de algum ser humano – ainda mais em um de tão alongada existência – que faça tal como Diógenes: tome uma lanterna e saia pelo mundo a procurar tal pessoa. Desejamos-lhe boa sorte. A vida transforma a alguns, enquanto endurece a outros, que paradoxalmente veem a si mesmos como “líquidos”. São coerentes na própria incoerência, tomam a parte pelo todo e atribuem a si mesmos o papel de tribunal da História.

Delfim, oriundo de uma família de baixa classe média paulistana, descendente de imigrantes italianos radicados no Cambuci, formou-se em Economia na USP, onde doutorou-se com uma tese sobre o problema do café no Brasil, de reconhecida qualidade. Tornou-se professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEA da USP, para quem doou sua enorme biblioteca pessoal, que de tão numerosa obrigou a construção de um anexo de grandes proporções para recebê-la. Mas, embora professor, não deixa uma produção acadêmica de vulto. Era reconhecidamente um homem prático.

Sempre se destacou por manter relações próximas e informadas com o poder. Com a ditadura empresarial-militar, encontrou terreno fértil para ascender rapidamente. Foi um dos ideólogos da ditadura, e não apenas no terreno econômico, mas também no político. Ministro da Fazenda de Costa e Silva, foi um dos artífices do “milagre econômico”, um período de grande aceleração do crescimento econômico, à sombra do infame AI-5, de que foi um dos signatários. Uma simples comparação entre os Censos Demográficos de 1960 e 1980 demonstra cabalmente a quem esse crescimento econômico serviu: a concentração de renda no topo da distribuição cresceu na mesma proporção em que crescia a economia. O “milagre” foi para poucos, e custou o suor e até o sangue e a liberdade de muitos.

Há quem diga que em seu “exílio dourado” como embaixador do Brasil na França – que para alguns foi a maneira encontrada por Geisel de afastá-lo dos círculos mais íntimos do poder – amealhou uma fortuna pessoal pela via da corrupção. Foi também ministro da Agricultura e do Planejamento, sempre durante os governos militares. Construiu uma sólida rede de contatos entre os industriais, setores do agronegócio e nos círculos de poder, onde habilmente foi alocando muitos de seus ex-alunos. Era um homem de vasta cultura, bem conectado e extremamente bem-informado, o que o tornou valioso como consultor de empresas (um outro nome para lobista), ajudando-o a consolidar uma fortuna considerável.

Portanto, era sem dúvida (ele próprio jamais demonstrou qualquer arrependimento) um homem da ditadura empresarial-militar, da qual fez parte com destaque. Suas mãos estavam manchadas do sangue de opositores (há indícios de que ajudou a financiar a famigerada Operação Bandeirantes) e do suor dos trabalhadores, a quem ajudou a explorar manipulando índices de inflação. E foi regiamente recompensado por isso.

Mas – aqui é preciso repor a verdade dos fatos – Delfim não cunhou a frase “é preciso fazer crescer o bolo para depois reparti-lo”. Miriam Limoeiro Cardoso, em seu livro A Ideologia do Desenvolvimento. Brasil: JK-JQ, mostra que Juscelino Kubitschek, que governou quando Delfim era apenas um jovem professor, já pensava desta forma. Aliás, a elite industrial brasileira sempre resistiu com muito vigor a distribuir parte dos seus ganhos, quer pela via dos salários, quer pela via dos tributos. Os desenvolvimentistas, com mais ou menos preocupação social, estavam mais ocupados com a acumulação de capital industrial do que com as deformações sociais que o processo de industrialização induzida pelo Estado produziu ao longo de 50 anos.

Delfim era um aliado das classes dominantes, sobretudo de interesses industriais paulistas, mas também financeiros e rurais. E como tal atuou, ao longo de sua carreira, mais política do que econômica. Mas foi dos poucos ideólogos da ditadura que não aderiu ao neoliberalismo que – de forma igualmente cruel – tem contribuído para inibir a ação do Estado para aliviar as péssimas condições de vida dos brasileiros. Podemos dizer, sem medo de errar, que o neoliberalismo produziu mortes – tal como fez a ditadura – por vias diretas, com o crescente assassinato de jovens pretos nas periferias, sem expectativas de futuro; ou pela via da expansão da miséria, do desemprego, da superexploração do trabalho e da fome de dezenas de milhões de brasileiros. Contudo, não em nome da industrialização do país, mas da acumulação de capital fictício nas mãos de pouquíssimos. O desenvolvimentismo do qual Delfim fez parte produziu riquezas reais e empregos de qualidade – decerto sem qualquer preocupação distributiva – mas o neoliberalismo produz uma riqueza de papel, estéril, que em nada contribui para o país – excetuados os bilionários que florescem à sua sombra como cogumelos depois da chuva.

Não há escândalo algum na fala do presidente Lula ao lamentar sua morte. Nem mesmo em citá-lo junto com Maria da Conceição Tavares, cuja perda recente ainda choramos. Decerto foram trajetórias muito diferentes entre si – ela foragida de uma ditadura, ele servidor de outra ditadura – mas ela mesma via Delfim Netto como um economista estruturalista. Ambos foram valiosos conselheiros de Lula, que os ouvia com respeito. Aliás, a influência de Delfim Netto ajudou Lula a encontrar espaços de mediação e diálogo com as elites econômicas do país, que o temiam. Um conhecido representante dos industriais paulistas afirmou que centenas de empresários deixariam o país se Lula fosse eleito. Pois Lula deve a Delfim, embora não somente a ele, a construção de uma convivência civilizada com o grande capital, que foi importante para o sucesso de seus dois primeiros governos. Lula pode ser acusado de muitas e variadas coisas – justa ou injustamente – mas procurou cercar-se de pessoas capazes e a elas sempre demonstrou gratidão.

Nós, economistas, muitas vezes menosprezamos a dimensão política e corremos a ditar fórmulas, como se fôssemos demiurgos. Neoclássicos, estruturalistas, marxistas, keynesianos, como quer que nos denominemos, muitas vezes nos limitamos a enfatizar a técnica, embora os chamados heterodoxos reconheçam formalmente a Economia como uma ciência social, sujeita à realidade histórica, social e política, ao contrário da corrente majoritária no debate público, que trata a Economia como se exata fora, exibindo suas planilhas, gráficos e equações como “a verdade”.

Porém, muitos de nós, heterodoxos, nos apressamos a criticar o governo de base popular, esquecidos de que são muitas as limitações e barreiras que a realidade política procura impor para inibir a ação governamental. Mas a verdade é que a política orienta a economia, e não o contrário, e não importam as nossas frustrações pessoais. Quem está no poder no momento navega contra o vento, atravessa um mar de sargaço, e cede por concessão ou por ser obrigado, para conseguir obter espaço para melhorar a dura situação social da imensa maioria dos brasileiros, que não sabem se terão como alimentar e abrigar suas famílias amanhã.

Nesse sentido, são valiosos aqueles que contribuem de alguma forma para que o governo de base popular avance, mesmo que aos tropeços, entre os escolhos da política. Delfim Netto, seja lá com que motivação o tenha feito, foi um dos que contribuiu decisivamente para que Lula – e depois a tão criticada Dilma – pudessem avançar pequenas conquistas ao povo brasileiro. Saímos do vergonhoso Mapa da Fome da ONU, ao qual o neoliberalismo da “Ponte para o Futuro” e o governo neofascista que o sucedeu nos empurrou de volta. As forças da escuridão estavam o tempo todo à espreita, buscando sinais de fraqueza, para destruir o pouco que havíamos construído.

A bem da verdade, Delfim Netto não estava entre eles. Curiosamente, alguns de seus mais acerbos críticos de hoje, sim. E acabaram, conscientemente ou não, contribuindo para empurrar o governo de base popular de Dilma Rousseff para o lodaçal do impeachment e Lula para a prisão persecutória e injusta. É só olharmos as chamadas “jornadas de junho” de 2013 ou suas atitudes no início da farsa da Lava-jato e veremos que alguns deles – admitam ou não – cevaram com sua pressa e incompreensão das limitações políticas a cadela faminta do neofascismo. As pessoas às vezes não atentam para que moinho estão levando sua água.

Que a História sopese com exatidão os atos de Delfim Netto, já que a ditadura garantiu que a justiça não o fizesse. Mas que não se deixe de reconhecer que também contribuiu para a governabilidade do primeiro presidente da República oriundo do povo, com preocupações genuínas com a justiça social. Não foram poucos os que serviram à ditadura empresarial-militar e depois mudaram de lado, contribuindo para a redemocratização. Teotônio Vilela e José Sarney, com todas as suas contradições, são festejados. Mas temos visto epítetos como “monstro”, “medíocre” e “oportunista” sendo aplicados a Delfim Netto, e nos cabe registrar que discordamos.

Teria sido mais fácil para ele aderir à onda neoliberal, mas ele não o fez. Merece toda a reprovação pelos atos que praticou ou influenciou durante o regime militar, mas sua trajetória não se resume a isso. Aos que o criticaram em vida, aplaudimos. Aos que o louvaram, respeitamos. Mas agora sua família, que chora seu falecimento, merece respeito, não pedradas.

Nesse momento, acreditamos, menos é mais.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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