terça-feira, 27 de agosto de 2024

Emendas parlamentares enfrentam longo caminho até a transparência

O acordo entre os três Poderes em torno das emendas parlamentares não completou uma semana, mas já exibe arestas e deixa a sensação de futuro incerto da garantia de que esse bilionário recurso público será tratado com a transparência devida. Encerrado o encontro no Supremo Tribunal Federal (STF) com as principais lideranças do Congresso e ministros do governo, surgiram dúvidas e estocadas.

O ministro Flávio Dino anunciou que suas medidas de restrição ao uso desse dinheiro seguem vigentes e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não recolheu as duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC) que destravou. Ambas limitam os poderes dos ministros da Corte, com vedação a decisões monocráticas, e dão ao plenário do Congresso a possibilidade de sustar medidas adotadas pelo tribunal que, segundo a Casa, "extrapolem" as funções judiciárias e invadam prerrogativas de deputados e senadores.

Essas PECs estão pautadas para serem votadas na terça-feira, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O acordo entre STF, Congresso e Executivo tinha deixado lacunas. As emendas Pix, que não exigem transparência, serão destinadas à conclusão de obras inacabadas. Perguntas ficaram no ar, como quais obras e quem exatamente vai definir. Os outros dois tipos de emenda, de bancada e de comissões, serão atreladas a "projetos estruturantes", a serem definidos entre o Parlamento e o Palácio do Planalto.

Pelo trato, celebrado na terça-feira, "será o fim da simples divisão do dinheiro" entre os integrantes do Congresso. Foi o que garantiram, em entrevistas, os presidentes Luís Roberto Barroso, do STF, e Rodrigo Pacheco, do Senado. Para quem monitora de perto as contas públicas, não está tão claro assim. É o pensamento da Transparência Brasil, entidade atenta ao destino do dinheiro público.

Marina Atoji, diretora de Programas dessa organização da sociedade civil, o acordo é vago, não menciona quais decisões serão adotadas de fato e lamenta a reunião ter se dado às portas fechadas. A dirigente acentuou que as liminares drásticas de Dino se perderam com a nota pouco incisiva dos Poderes.

"O que vai acontecer com as medidas do ministro Flávio Dino, ainda que ele diga que seguem em vigência? Em relação ao mérito das ações contra a emenda Pix que estão no Supremo, como serão resolvidas? Ficou no ar. É prenúncio de estar errado anunciar um acordo antes da avaliação de mérito. Dino havia tomado decisões referendadas pelo plenário. Por que fazer um acordo depois?", questiona Marina Atoji.

A diretora do Transparência Brasil critica ainda o conceito vago de "projetos estruturantes" e reclama da falta de previsão do que vai ocorrer se nada do que está no papel não for cumprido.

"Não se colocou parâmetros mínimos de comprometimento a serem estabelecidos. Ficou muito no ar. Todos pisando em ovos. O Executivo, que já vinha com essa postura, o STF, excessivamente cauteloso, e um Congresso que resiste e bate o pé, não querendo imposição alguma. É um sistema absolutamente errado, distorcido", diz Atoji, crítica aos formatos das emendas. "Essas emendas individuais viraram um financiamento de campanha complementar", completa.

•        Destinação

O advogado eleitoral Dylliard Alessi destaca que a tensão entre o Judiciário e o Legislativo ficou mais acentuada por ocorrer no período de eleições municipais. "Os membros do Congresso não querem perder o poder de decidir a alocação de mais de 30 bilhões de reais por ano. Com esse dinheiro, fica muito mais fácil fazer alianças importantes com lideranças regionais e locais, notadamente os prefeitos, que são atores essenciais nas eleições gerais", aponta.

Ao longo do tempo, as chamadas "emendas Pix" passaram a funcionar como doações por conta da falta de exigências em se estabelecer contrapartidas e em vincular recursos à determinada área. A restrição é mínima: só não é possível usá-las para despesas com pessoal e para o pagamento de dívidas. "Quanto mais rigor nos critérios, maior a transparência e menor a chance de corrupção", destaca Alessi.

Paulo Henrique Blair de Oliveira, professor de direito da Universidade de Brasília (UnB), explica que as emendas impositivas foram criadas, em 2015, com base no sistema de países como os Estados Unidos, a Austrália e o Canadá. No entanto, com a realidade brasileira, as regras foram flexibilizadas, causando desconfiança quanto à finalidade dos recursos.

"Aqui, no Brasil, elas passaram a ser feitas sem que houvesse uma necessidade de estipular valores e destinos. E isso não existe em nenhum lugar do mundo que tenha um regime democrático", afirma.

Segundo o especialista, a aplicação do dinheiro público deixou de ser eficiente a partir do momento em que não houve mais diferenciação entre despesas indispensáveis e obrigatórias. Blair destacou a autonomia de destinação como um dos principais causadores do afrouxamento de critérios.

"O dinheiro vai para um hospital de caridade, para determinado município, mas não se sabe o que vai ser feito com esse dinheiro ali. Não há clareza sobre como a prefeitura vai usar essa verba. Por isso elas passaram a ser chamadas de Pix", diz.

A solução apontada pelo professor da UnB está na elaboração de uma engenharia política sobre o tema, criando mecanismos de controle e fiscalização, e fortalecendo o corpo técnico de especialistas do Tribunal de Contas da União (TCU), que deveria estar espalhado pelo Brasil, não só concentrado em Brasília.

"Os outros países que serviram de base para o nosso modelo possuem verdadeiros exércitos fiscais. O ideal seria aumentar o número de fiscais e engenheiros concursados, e levá-los até os municípios para atuarem ali. Para existir uma transparência sobre os projetos, é necessário que haja dispositivos humanos, materiais e tecnológicos suficientes", ressalta.

•        Dino manda CGU elaborar projeto para mudar Portal da Transparência

O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), ordenou novas medidas para garantir transparência na execução das emendas parlamentares. A decisão ocorre na mesma semana em que houve um diálogo institucional com os demais Poderes a respeito do repasse desses recursos. Uma das determinações é que a Controladoria-Geral da União (CGU) apresente, em até 30 dias, um projeto de reestruturação do Portal da Transparência que permita o acesso "sem embaraços ou obstáculos", às informações referentes às emendas de comissão (RP 8) e às emendas de relator (RP 9), mecanismo principal do orçamento secreto.

A partir de 2025, os ministérios terão de adotar códigos usados pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) para identificar repasses provenientes de emendas de relator e de comissão.

Dino determinou também que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos apresente, em 30 dias, um plano de ação para garantir a transparência das transferências fundo a fundo — um tipo de repasse entre fundos federais, estaduais e municipais, sem necessidade de se celebrar um convênio.

Em relação a organizações da sociedade civil que atuam com recursos públicos, o relator decidiu que tais entidades devem usar os sistemas de licitação integrados ao portal Transferegov.br.

As medidas ocorrem após o acordo selado em almoço, na terça-feira, com integrantes dos Três Poderes. No encontro, as autoridades chegaram a um consenso para assegurar "critérios de transparência, rastreabilidade e correção" da parte do orçamento que é direcionada por parlamentares a seus redutos eleitorais.

"Em obediência ao poder-dever do relator, estão sendo adotadas medidas, antecedidas de diálogos institucionais e reuniões técnicas, visando a que haja, de fato, transparência e rastreabilidade na aplicação do dinheiro oriundo e pertencente à sociedade brasileira", frisou Dino.

O despacho, assinado nesta sexta-feira, ainda sanou a expectativa quanto à reapreciação da liminar de Dino que suspendeu o repasse de emendas de relator e de comissão até que seja assegurada a transparência das transferências.

O ministro sinalizou que só vai decidir sobre a retomada dos pagamentos após chegarem à Corte as manifestações dos envolvidos no processo, incluindo os Três Poderes e órgãos públicos.

"Na ocasião, será apreciada a solicitação da Secretaria de Relações Institucionais do Poder Executivo quanto à retomada das execuções das RP 8 e RP 9, sempre nas condições fixadas por este Tribunal", anotou o magistrado.

O painel reformulado a ser lançado pela CGU em até 90 dias vai consolidar as informações de documentos e sistemas do governo federal que estão "atualmente dispersos e desorganizados".

A medida atende ao ministro, que externou "preocupação" durante a audiência de conciliação sobre o orçamento secreto. Na ocasião, Dino ressaltou a necessidade de centralizar informações sobre as emendas, de modo a garantir a transparência dos repasses.

O Congresso e o Executivo haviam indicado ao STF que havia limites para as informações que cada um dos Poderes detinha sobre as emendas.

A nova decisão de Dino também avança sobre esse ponto: ele indicou que a CGU deverá identificar quais informações estão indisponíveis, para que então sejam realizadas as "requisições judiciais cabíveis" e adotadas eventuais "providências para a responsabilização de agentes omissos".

O magistrado decidiu que os valores sejam depositados e geridos em contas bancárias específicas, individualizadas por transferência e por emenda parlamentar.

 

•        Emendas parlamentares pioram execução das políticas, diz especialista. Por Lucas Pordeus León

O aumento da execução do orçamento pelo Legislativo – iniciado em 2015 por meio das emendas impositivas – piora a capacidade de planejamento de políticas públicas e sua execução, reduzindo a eficiência na prestação de serviços à população.

A avaliação é da assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Cléo Manhas, que trabalha nas áreas de orçamento, direitos e justiça fiscal.

A especialista destacou que o dinheiro para emendas impositivas não está previsto no Plano Plurianual (PPA), enfraquecendo o planejamento do Executivo para executar políticas públicas uma vez que o recurso na mão dos parlamentares é significativo – R$ 49,2 bilhões em 2024, cerca de um quarto do total dos gastos não obrigatórios, que é o que a União tem para investimentos.

“No PPA, o governo coloca suas promessas de campanha. Nele, você tem quais são as prioridades, quais as metas e indicadores que você tem que cumprir ano a ano. Aí vem os parlamentares que têm um recurso enorme e mandam a seu bel prazer para onde eles quiserem. Com isso, a lógica da programação e do planejamento fica em segundo plano”, explicou.

“Ao mesmo tempo que o Congresso aprova o PPA, ele contribui para a retirada de recursos para que esse plano seja atendido”, completou.

Um estudo produzido pelo doutor em economia e pesquisador do Insper Marcos Mendes, publicado em 2022, concluiu que a parte do orçamento sob controle do Legislativo no Brasil é 20 vezes maior que na média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Cléo Manhas defendeu que a execução dos recursos a partir do parlamento não tem a mesma qualidade da produzida pelo Executivo.

“O Poder Legislativo não tem estrutura e não foi feito para executar. Os órgãos de pesquisa são todos ligados ao Executivo. É nos ministérios que está a capacidade de planejamento e a estrutura de execução das políticas públicas”, destacou.

Por outro lado, os parlamentares argumentam que eles estão nos estados e municípios e conhecem melhor as necessidades reais da população.

<><> Entenda

As emendas impositivas individuais, de Comissão ou de bancadas, são os recursos do orçamento que o Executivo tem a obrigação de executar a partir da indicação dos parlamentares.

A suspensão das emendas impositivas dos parlamentares pelo Supremo Tribunal Federal (STF) reacendeu o debate sobre a execução do orçamento no Brasil. Após o STF suspender o pagamento das emendas, um acordo foi firmado entre os Poderes para ajustar a execução desses recursos respeitando a transparência, rastreabilidade e eficácia desses gastos.

A ação do PSOL que deu origem à decisão afirma que a impositividade das emendas capturou o orçamento e bloqueou o planejamento e a coordenação das políticas públicas de forma eficiente, criando no Brasil, na prática, um regime semipresidencialista.

<><> Comparação OCDE

O estudo do pesquisador Marcos Mendes feito a pedido do Instituto Millenium comparando o Brasil à OCDE mostra a diferença entre a execução do orçamento em diferentes países.

“Em outros 14 países, o legislativo não emendou o orçamento ou o fez em montantes negligíveis, abaixo de 0,01% da despesa primária discricionária. Há dez países em que essa mudança fica abaixo dos 2%. Somente Estados Unidos, Eslováquia e Estônia aparecem acima dessa marca de 2%. Porém, mesmo esses países estão longe do que ocorre no Brasil, onde nada menos que 24% da despesa primária discricionária é alterada pelo parlamento”, afirma.

<><> Emendas Pix

Além da eficiência, a transparência e rastreabilidade dos recursos também estão sendo abordados pelo STF. Em dezembro de 2022, o Supremo definiu que as emendas de relator – conhecidas como orçamento secreto – eram inconstitucionais.

Porém, uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) argumenta que o Legislativo continua descumprindo a decisão, dessa vez por meio das emendas especiais – ou emendas Pix – que permite a transferência direita de dinheiro, sem necessidade de convênio ou projeto prévio.

A assessora política do Inesc Cléo Manhas destacou que o recurso “entra no caixa único da prefeitura e a gente não sabe mais o que foi feito desse recurso”.

Nesta semana, o ministro Flávio Dino enviou à Procuradoria-Geral da República (PGR) lista de possíveis irregularidades no pagamento das emendas parlamentares.

<><> Legislativo

Os parlamentares reagiram contra as liminares do Supremo apresentando um recurso assinado pela Câmara e Senado e mais 11 partidos. Porém, por unanimidade, o STF manteve a suspensão das emendas.

Os partidos argumentam que “as decisões causam danos irreparáveis à economia pública, à saúde, à segurança e à própria ordem jurídica, além de violar patentemente a separação de poderes”.

O presidente da Câmara defendeu o modelo de execução vigente no Brasil. “É sempre bom lembrar que o Orçamento não é do Executivo. O Orçamento é votado pelo Congresso, por isso é lei. Sem o aval do Parlamento não tem validade constitucional”, afirmou Arthur Lira.

Já o senador Rodrigo Pacheco justificou que desvio de recursos ou mal uso de dinheiro público ocorrem em todos os formatos de execução de políticas:

“Há uma série de possibilidades de que isso aconteça e isso tem que ser coibido e reconhecido como exceções que precisam ser combatidas pelos órgãos de controle. Mas não inviabilizar a execução orçamentária partindo do pressuposto de que tudo está errado.”

Para Pacheco, as emendas individuais, de bancada e de comissão são instrumentos legais e legítimos de participação orçamentária pelo poder Legislativo, mas devem sofrer ajustes “para se buscar o máximo possível de transparência, rastreabilidade e eficiência no gasto público”.

 

Fonte: Correio Braziliense/Agencia Brasil

 

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