A carta de Einstein que mudou a história da
humanidade: 'Grande erro da minha vida'
O relato dramático do
uso letal da energia atômica, contado em 2023 no filme Oppenheimer, poderia ter
sido apenas um conto de ficção científica, não fosse por uma carta de duas
páginas, escrita no dia 2 de agosto de 1939.
"Os trabalhos
recentes na física nuclear aumentaram a probabilidade de transformar o urânio
em uma nova e importante fonte de energia", diz uma carta datilografada,
dirigida ao então presidente americano Franklin D. Roosevelt (1882-1945) e assinada
pessoalmente pelo respeitado físico Albert Einstein (1879-1955).
Einstein prossegue,
afirmando que essa energia poderá ser utilizada "para a construção de
bombas extremamente poderosas".
Expressando suspeitas
sobre a decisão alemã de suspender as vendas de urânio na Checoslováquia
ocupada, a carta levou à criação de um programa de pesquisas altamente secreto,
ao custo de US$ 2 bilhões (R$ 11,2 bilhões ao câmbio atual).
Era o Projeto
Manhattan, uma corrida para vencer a Alemanha no desenvolvimento de armas
atômicas.
Liderado pelo físico
Robert Oppenheimer (1904-1967), o projeto durou três anos e conduziu os Estados
Unidos para a era nuclear.
Ele levou ao
desenvolvimento de uma das invenções mais significativas e destrutivas da
história humana: a bomba atômica.
Em 10 de setembro, a
histórica e cuidadosamente redigida carta de Einstein irá a leilão na casa
Christie's de Nova York, nos Estados Unidos. Espera-se que seu preço de venda
atinja mais de US$ 4 milhões (cerca de R$ 22,4 milhões).
A carta foi escrita em
duas versões. A versão mais curta é a que está sendo leiloada pela Christie's.
Uma versão mais
detalhada, entregue pessoalmente na Casa Branca, hoje faz parte da coleção
permanente da Biblioteca Franklin D. Roosevelt, em Nova York.
"De muitas
formas, esta carta marca uma reviravolta fundamental na história da ciência, da
tecnologia e da humanidade", afirmou à BBC Peter Klarnet, especialista em
assuntos americanos, livros e manuscritos da Christie's.
"Esta foi, de
fato, a primeira vez em que o governo dos Estados Unidos se envolveu
diretamente, financiando uma pesquisa científica importante", explica ele.
"A carta foi o
pontapé inicial para que os Estados Unidos pudessem aproveitar totalmente as
transformações tecnológicas que estavam em andamento."
O diretor de programas
do Departamento de Política, Filosofia e Relações Internacionais da
Universidade de Swansea, no Reino Unido, Bryn Willcock, é também professor e
pesquisador de História Nuclear e Americana. Ele concorda com a opinião de
Klarnet.
"A maior parte
dos relatos históricos sobre as origens da bomba começa com uma discussão da
carta", diz à BBC. "O conteúdo da carta foi fundamental para
conseguir ações diretas do presidente Roosevelt."
Willcock destaca que
"A American Heritage Foundation chega a descrever a carta... como
'fundamental' para levar Roosevelt a conduzir a pesquisa atômica."
O premiado filme
Oppenheimer, baseado na história do Projeto Manhattan, menciona a carta em uma
cena de Oppenheimer com o físico Ernest Lawrence (1901-1958). Espera-se que
esta referência aumente o interesse pelo leilão.
"Esta [carta] é
algo que faz parte da cultura popular desde 1945, de forma que ela já tem uma
posição sólida", explica Klarnet, "mas acho que o filme Oppenheimer
apresentou a carta para uma nova geração."
• 'Lenda'
Klarnet descreve
Einstein como um "personagem lendário" na cultura popular. Ele
certamente demonstra esta qualidade em Oppenheimer, esgueirando-se pelas
beiradas do filme, como uma breve aparição que aguardamos ansiosamente.
Sua identidade só é
revelada quando seu chapéu voa e expõe sua famosa cabeleira branca.
A equação de Einstein,
E = mc², explica a energia que é liberada em uma reação nuclear e abriu o
caminho para sua terrível aplicação. Mas seu papel na construção da bomba
atômica pode ter sido superestimado no filme.
A cena final de
Oppenheimer mostra um comovente diálogo entre Einstein e o personagem-título.
Nele, Oppenheimer diz: "Quando vim até você com estes cálculos, achei que
poderíamos iniciar uma reação em cadeia que destruiria o mundo inteiro..."
Para Klarnet, este
diálogo é "absurdo". Sua tendência à esquerda e suas origens alemãs
rodeavam Einstein de suspeitas. Por isso, ele "não tinha autorização de
segurança para aquilo", segundo ele.
De fato, Einstein era
pacifista declarado e procurava se distanciar do projeto. Ele sempre insistia
que sua participação na liberação da energia atômica foi "muito
indireta".
Se houve um
instigador, foi Leo Szilard (1898-1964), ex-aluno de Einstein.
A carta com a nota de
Szilard a lápis "Original não enviado!" permaneceria em seu poder até
a morte.
Mas o alemão Einstein
e o húngaro Szilard eram judeus, que fugiram para os Estados Unidos depois da
ascensão do nazismo. Por isso, eles compreendiam, melhor do que ninguém, a
ameaça representada pela Alemanha na época.
A carta foi ideia de
Szilard, mas ele buscou Einstein obstinadamente para que fosse seu autor e
signatário. Afinal, Einstein conferia considerável autoridade e, depois de
ganhar o Prêmio Nobel de 1921, ele passou a ser "a personificação da
ciência moderna", afirma Klarnet.
"Ele tem uma
influência única", explica. "Aparentemente, outras pessoas tentaram
alertar Roosevelt sobre o que estava acontecendo nos últimos meses, mas, de
repente, você entra pela porta com uma carta de Albert Einstein, dizendo que
você deve fazer isto – é algo que impressiona."
No dia 16 de julho de
1945, espectadores liberados pela segurança, com seus olhos protegidos por
óculos, observaram um protótipo da bomba conhecido como "gadget"
("dispositivo") ser detonado com sucesso no deserto do Novo México,
nos Estados Unidos.
O resultado foi
recebido com euforia e apreensão. Naquele dia, o presidente americano Harry S.
Truman (1884-1972) escreveu no seu diário: "descobrimos a bomba mais
terrível da história do mundo".
Naquele momento, a
Segunda Guerra Mundial já estava quase no fim. A Alemanha já havia se rendido,
mas faltava o Japão.
Acreditava-se que o
ataque aos portos japoneses de Hiroshima e Nagasaki com aquele poder assustador
e sem precedentes aceleraria o final da guerra.
Szilard lançou uma
petição, um dia depois dos testes da bomba, recomendando que o Japão fosse
convidado a se render antes que fossem tomadas ações drásticas, mas ela não
chegou às autoridades a tempo.
No dia 6 de agosto,
uma bomba denominada "Little Boy" ("Menininho", em
português) foi lançada sobre Hiroshima. E outra bomba, "Fat Man"
("Homem Gordo"), foi detonada em Nagasaki, em 9 de agosto.
Estima-se que 200 mil
pessoas tenham sido mortas ou feridas imediatamente e muitas outras morreriam
anos depois devido aos efeitos colaterais da radiação.
Até hoje, estes são os
únicos casos de emprego direto de armas nucleares em conflito.
• A carta foi decisiva?
É difícil dizer se o
Projeto Manhattan teria existido, não fosse pela carta de Einstein.
Willcock observa que o
Reino Unido já estava "tentando de tudo para levar os Estados Unidos a
apoiar mais pesquisas". Ele descreve o Relatório Maud, liderado pelos
britânicos em 1941 – um estudo sobre a viabilidade das armas nucleares – como "fundamental
para forçar o desenvolvimento de pesquisas pelos americanos".
A carta de Einstein
pode ter apenas acelerado o processo. Sem ela, o desenvolvimento teria sofrido
um atraso que, segundo Willcock, "provavelmente teria feito com que a
bomba não estivesse pronta para uso no verão de 1945".
Por outro lado,
Einstein lamentou amargamente a violência e o caos causados pela sua carta de
1939.
Em 1946, ele foi um
dos fundadores do Comitê de Emergência de Cientistas Atômicos, criado para
divulgar os riscos da guerra nuclear e propor um caminho para a paz mundial.
Em um artigo para a
revista Newsweek em 1947, intitulado Einstein: O Homem que Deu Início a Tudo,
ele afirmou: "Se eu soubesse que os alemães não teriam sucesso no
desenvolvimento da bomba atômica, eu não teria feito nada pela bomba."
Hoje em dia, mesmo
detendo a tecnologia, a Alemanha ainda não tem armas nucleares.
Einstein dedicaria o
resto da vida à defesa do desarmamento nuclear. Em 1954, falando para o químico
Linus Pauling (1901-1994), outro vencedor do Prêmio Nobel, ele descreveu a
carta para Roosevelt como "grande erro da minha vida".
A bomba atômica
alterou radicalmente o cenário da guerra, criando uma corrida armamentista
entre o Oriente e o Ocidente, que define as relações internacionais até hoje.
Atualmente, nove
nações do mundo possuem armas nucleares – e grande parte do risco que
percebemos hoje em dia pode se dever àquela carta.
Para Klarnet, esta
"ainda é uma questão muito relevante até hoje. É uma sombra que paira
sobre a humanidade. Aquela carta é um lembrete das origens do nosso mundo
moderno e um severo alerta de como chegamos até aqui."
Em julho de 1955, o
mesmo nome que assinou a carta que inspirou Roosevelt em 1939 apareceria de
forma póstuma no título do Manifesto Russell-Einstein, uma resolução emotiva
contra a guerra nuclear.
Ela foi proposta pelo
filósofo Bertrand Russell (1872-1970) e endossada por Einstein apenas uma
semana antes da sua morte.
"Apelamos, como
seres humanos, aos seres humanos", diz parte do texto.
"Lembrem-se da
sua humanidade e se esqueçam do resto. Se fizerem isso, abre-se o caminho para
um novo paraíso; se não conseguirem, o que se apresenta à sua frente é o risco
da morte universal."
Fonte: BBC Culture
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