Os crimes da ditadura no Reformatório
Krenak
Foi no final dos anos
1960 que Djanira Krenak presenciou uma cena cuja memória carregaria consigo por
toda a vida. Anciã do povo Krenak, Djanira e a família viviam nas imediações do
Posto Indígena Guido Marliére, na cidade de Resplendor, Minas Gerais. Criado pelo governo brasileiro no início do
século XX, o Guido Marliere existia –
segundo a visão da época – para administrar a presença indígena na região. O
território, às margens do Rio Doce, era tradicionalmente ocupado pelos Krenak.
Durante a Ditadura Militar, no entanto, a recém-criada Fundação Nacional do
Índio (Funai) entregou o comando da área a um policial militar, o Capitão Manoel dos Santos Pinheiro.
Pinheiro cumpria seu
papel com violência. Em 1969, a Funai mandou construir no Posto Indígena um
presídio: o Reformatório Krenak. Para lá, passou a enviar indígenas acusados de
causar problemas. Calcula-se que pessoas de 23 etnias, provenientes de todo o
Brasil, foram confinados no Reformatório. Eram presas sem acusação formal nem
direito de defesa. Os Krenak, antigos moradores do Posto, viviam também sob a
ameaça dessa penitenciária.
O indígena Krenak que
quisesse deixar o Posto Guido Marliére precisava pedir permissão às
autoridades. Quem desrespeitasse as ordens apanhava e era preso no
reformatório. O mesmo acontecia a quem bebesse, fizesse “arruaça”, tivesse
relações homossexuais ou insistisse em falar o idioma Krenak em lugar do
português. A detenção não tinha prazo definido: durava o tempo que os policiais
julgassem adequado. Os presos sofriam castigos físicos: segundo relatos da
época, eram amarrados em um tronco e açoitados. Presos em celas individuais,
passavam dias sem comer.
Mesmo as crianças eram
punidas caso desrespeitassem as ordens de Pinheiro e seus homens. Djanira
lembra que, certo dia, “um dos meninos não quis estudar. Preferiu pescar”. Um
dos policiais que patrulhava o posto descobriu a traquinagem. Para punir a criança,
montou num cavalo e amarrou o menino, que foi obrigado a correr à frente da
montaria. Se caísse ou não acompanhasse o passo, a criança seria arrastada . “A
gente teve pena, mas não podia fazer nada. Não podia socorrer a criança. Ia
preso ou morto”.
Djanira narrou suas
memórias durante sessão da Comissão da Anistia em Brasília na última
terça-feira (2). Vinculada ao ministério dos Direitos Humanos, a Comissão tem a
missão de reconhecer e reparar os crimes praticados pela ditadura militar
brasileira. Na ocasião, o colegiado analisou as violações praticadas contra
dois povos indígenas: os Krenak, de Djanira; e os Guarani-Kaiowá, que foram
perseguidos e expulsos de suas terras durante o regime de exceção. Os dois
grupos cobram do Estado brasileiro medidas coletivas de reparação. Entre as
demandas, pedem a demarcação de seus territórios tradicionais.
A sessão foi
considerada um marco histórico para a Comissão: até 2023, o colegiado só
tratava de reparações individuais, que podem incluir indenizações em dinheiro.
No ano passado, o regimento interno da instituição foi alterado, de modo a
autorizar reparações coletivas. Elas, no entanto, não podem envolver
pagamentos. “Debatemos muito e entendemos que, para os povos indígenas, o que
faz sentido é a reparação coletiva”, disse a presidente da Comissão, Enéa de
Stutz. “Sabemos que a perseguição aos povos indígenas dura mais de 500 anos.
Não vamos reparar 500 anos de perseguição.
Mas é possível trazer algum tipo de conforto, reconhecimento e
homenagem”.
Ajoelhada sobre as
cadeiras do auditório, Enéa pediu perdão aos Guarani-Kaiowá e aos Krenak em
nome do Estado brasileiro. O colegiado também encaminhou recomendações à União.
Entre elas, que se reconheça o direito originário desses povos aos seus territórios.
O gesto foi bem
recebido, mas as lideranças indígenas cobram medidas concretas. “Esse pedido [
de desculpas] não pode se resumir a uma dimensão simbólica, para que não se
repita o passado” disse Giovani Krenak durante a sessão. “Não podemos abraçar
uma barreira legal dizendo que na reparação coletiva não pode ser garantida uma
dimensão econômica. Não podemos nos ancorar num argumento legalista. A
legislação, com seu empecilho, é uma continuação das violações contra os povos
indígenas”. A sessão da última terça-feira
foi mais um capítulo de uma longa luta que os Krenak travam com o Estado
brasileiro em busca de reparação.
As violências vividas
por esse povo à sombra do Reformatório Krenak continuaram até 1972. Naquele
ano, a Funai fez um acordo com o governo de Minas Gerais e transferiu os
indígenas para a cidade de Carmésia, no interior do estado. Para o governo, a
transferência era vantajosa: as terras dos Krenak, ao redor do Reformatório,
eram cobiçadas pelo agronegócio. Na Fazenda Guarani, para onde os indígenas
foram levados à força, as detenções arbitrárias e os castigos físicos
continuaram. Expulsos de seu território tradicional, os Krenak sofreram. “Nosso
povo foi morto e torturado por causa de terra. Toda a vida, o indígena é morto
e sofre por causa da terra”, disse Djanira.
Em 2021, a União, o
Estado de Minas Gerais e a Funai foram condenados pela Justiça mineira a
reparar os danos que a ditadura causou aos indígenas. No ano passado, a Funai
reconheceu a Terra Indígena Sete Salões, onde ficava o reformatório, como um
território tradicional dos Krenak. Mas a demarcação ainda não avançou. Nesse
meio tempo, os Krenak continuam a contar sua história – ainda que isso lhes
seja doloroso, conforme disse Djanira à Comissão. Ao fazê-lo, forçam o Estado
brasileiro a confrontar um crime impossível de expiar.
Quando o posto
indígena Guido Marliére – onde seria construído o reformatório Krenak – foi
criado, no início do século XX, vigorava a ideia de que os povos indígenas
brasileiros estavam destinados a desaparecer. Para os governos de então, os
indígenas deveriam ser “civilizados” e integrados à sociedade nacional. Essa
aculturação do indígena era parte da missão do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) – o órgão federal que precedeu a
Funai.
O posto indígena
surgiu quando, em 1920, o governo
federal doou ao SPI uma área de 4 mil hectares às margens do Rio Doce.
Ali, o órgão pretendia fixar os Krenak.
No raciocínio dos servidores do SPI, para se adequar à sociedade nacional, era
recomendável que o indígena se estabelecesse num dado território, e fosse
convertido em agricultor. Nessa mesma época, o SPI começou a arrendar parte do
território dos Krenak a produtores rurais. Os posseiros pagavam uma taxa ao
órgão federal, de modo a ocupar as terras e cultivá-las. A intenção era que os
colonos servissem de “exemplo” aos indígenas.
Quem contou essa
história em detalhes foi o antropólogo João Gabriel Silveira Correa. Em sua
dissertação de mestrado, apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) no ano 2000, Correa recorre a documentos oficiais para traçar a história
de como o governo brasileiro, ao longo de todo o século XX, buscou controlar a
trajetória dos Krenak.
Correa afirma que a
missão assumida pelo SPI, de controlar os indígenas, foi também herdada pelo
órgão que o sucedeu, a Funai. E que a construção do Reformatório Krenak,
durante a Ditadura Militar, se encaixava na filosofia adotada, até ali, por
essas instituições: seu desejo era o de guiar os indígenas rumo à assimilação
pela sociedade não–indígena. “Junto com a tarefa de proteger e assistir os
índios, a ação tutelar inclui também a dimensão do controle, devendo o tutor
guiá-los para que se transformem e se integrem à sua sociedade”, escreveu o
antropólogo. (pg180).
Foi seguindo esse
espírito que, em 1969, a Funai criou a Guarda Rural Indígena (Grin). O grupo
era formado por indígenas de diferentes etnias, que recebiam treinamento
militar e eram instruídos a fazer cumprir as regras estritas que governavam a
vida no Guido Marliere.
Na sua dissertação de
mestrado, Correa conta que a criação da Grin foi festejada e amplamente
divulgada pelo governo. A cerimônia de formação dos primeiros cadetes incluiu
uma parada pública pelas ruas de Belo Horizonte. Ao evento, compareceram o
governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, e o ministro do Interior, o
general José Costa Cavalcanti. A solenidade foi registrada em um filme nunca
lançado – Araras, do cineasta Jesco von Puttmaker. Trechos dele foram exibidos
na sessão da Comissão da Verdade da última terça-feira. Mostram cadetes
indígenas, de cabelos compridos, marchando pelas ruas em fila. Perto do fim da parada, o filme mostra também
um indígena sendo carregado num pau-de-arara – um método de tortura que
consistia em amarrar as pernas e braços das pessoas em um feiche de madeira e
ergue-lo. O sofrimento do indígena era parte do espetáculo.
• O dia a dia em um campo de concentração
indígena
Ao contrário do que se
fez com as Grin, a criação do Reformatório Krenak foi mantida em relativo
segredo pela Funai. Correa conta que, ao pesquisar o tema, deparou com pastas
da instituição carimbadas como “confidenciais”.
Na cidade ao redor, no
entanto, o presídio indígena não passou despercebido. Por anos, o SPI
estimulara a presença de agricultores brancos no território Krenak. No final dos anos 1960, a Funai mudou de
postura: passou a cobrar taxas cada vez maiores pelos arrendamentos, na
esperança de afastar os agricultores da região.
Esses, por sua vez,
grilavam terras na esperança de, eventualmente, regularizar a posse da área.
Por isso, correu o boato de que a instituição correcional serviria para punir
posseiros.
Registros da época
mostram que o reformatório Krenak era formado por dois grandes prédios. No
maior, havia farmácia, enfermaria, celas individuais e coletivas. Havia também
dois espaços diminutos, que serviam como cubículos para detenção. O segundo
prédio abrigava um alojamento para guardas e a sede de administração.
Para lá, o governo
enviava indígenas que precisavam ser “reeducados” – porque tinham se envolvido
em brigas, cometido delitos ou, simplesmente, contrariado as vontades de alguma
autoridade. As razões das detenções nunca eram muito bem explicadas.
Essa vagueza foi
descrita já em 1974, em uma denúncia enviada ao Tribual Russel II. O Tribunal
foi criado por iniciativa dos filósofos
Bertrant Russell e Jean-Paul Sartre . Na sua primeira encarnação, a
Corte pretendia julgar os crimes praticados pelos EUA durante a Guerra do
Vietnã. A segunda edição aconteceu em Roma, e focou em denunciar a repressão
dos regimes autoritários na América Latina.
A denúncia à Corte
descreve o Reformatório Krenak como um “campo de concentração”, e relata o caso
de um indígena que foi aprisionado depois de ir à sede da Funai, em Brasília,
apresentar reivindicações ao presidente da instituição. O homem se desentendeu
com um servidor. Ficou preso por três anos.
O antropólogo Correa
conta que nas fichas individuais dos indígenas, eles eram classificados segundo
adjetivos: boa conduta, boa amizade, civilizado, trabalhador e esforçado,
obediente, pederasta ativo e passivo, revoltado, corrompido, ladrão. O indígena
que apresentasse bom comportamento durante a detenção poderia ser libertado.
Quem, ao contrário, somasse adjetivos negativos, continuava preso. “A aprovação ou reprovação dos comportamentos
pelos funcionários do reformatório e da AJMB se ligavam diretamente ao perfil
do novo índio que se pretendia fabricar dentro dessa instituição, e das
virtudes das quais deveriam ser dotados”, escreveu Correa.
Esse sistema valia
para os indígenas de diferentes etnias que eram enviados, de todo o Brasil,
para o reformatório. Valia, também, para toda a população de indígenas Krenak
que morava na região do Posto Guido Maliére. E era aplicado, inclusive, aos
homens da Guarda Rural Indígena – que poderiam ser presos e punidos pelos seus
pares, caso violassem alguma regra.
Além das detenções, os
indígenas eram submetidos a trabalhos forçados e castigos físicos. No relatório
da Comissão Nacional da Verdade, de 2014,
Bonifácio Duarte, indígena do Povo Guarani-Kaiowá, relembrou o tempo que
passou preso no Reformatório. Segundo seu depoimento, o indígena que seria
castigado era escolhido por sorteio: “Amarravam a gente no tronco, muito
apertado. Quando eu caia no sorteio para apanhar, passava uma erva no corpo,
pra aguentar mais. Tinha outros que eles amarravam com corda de cabeça para
baixo. A gente acordava e via aquela pessoa morta, que não aguentava ficar
amarrada daquele jeito”.
A arbitrariedade das
prisões impressionou, inclusive, o encarregado da Funai que sucedeu o capitão
Pinheiro na gestão do presídio indígena. João Geraldo Itatuim Ruas assumiu a
função em 1973. Àquela altura, os indígenas do Reformatório Krenak já haviam sido
transferidos para a Fazenda Guarani. Os relatos da época dão conta de que, na
nova localidade, o cotidiano dos prisioneiros mudou pouco. Ruas, por sua vez,
era um gestor diferente: ganhou fama como o primeiro servidor da Funai de
origem indígena. Ficou à frente da divisão da Funai que, entre outras
obrigações, tratava da Fazenda Guarani. E se surpreendeu com a falta de
documentação dos indígenas detidos: segundo levantamento seu, 80% dos
prisioneiros não tinham nenhum documento. Tampouco havia registros das causas
da detenção.
Essa rotina de
desmandos seguiria até o final dos anos 1970, quando a Fazenda Guarani foi
desativada. Mais de quatro décadas depois, a memória dessas perseguições
permanece viva entre os Krenak. Vive também a certeza de que é preciso retomar
as terras que lhes foram tiradas. “Doi muito falar disso. Porque a gente perdeu
parentes, perdeu nosso rio, perdeu tudo”, disse Djanira Krenak à Comissão da
Anistia, lembrando como, bem depois do fim da Ditadura Militar, o rompimento da
Barragem do Fundão, em Mariana, poluiu o Rio Doce. Foi um golpe grave para os
Krenak, que consideram o rio uma entidade sagrada. “Por isso, pedimos força a
vocês, que podem nos ajudar a recuperar essa terra. Vamos lutar. O direito é
nosso”.
Fonte: Por Rafael
Ciscati, no Brasil de Direitos
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