Católicos versus Evangélicos no Brasil:
“guerra de posição” x “guerra de movimento”
A disputa entre
católicos e evangélicos teve início há mais de 500 anos, quando Martinho Lutero
afixou na porta da Igreja de Todos os Santos, no castelo de Wittenberg, na
Alemanha, as suas 95 teses e a denúncia da corrupção na Igreja Católica Romana,
em 31 de outubro de 1517. Os protestantes históricos conquistaram a hegemonia
religiosa em vários países europeus (como a Alemanha e a Suíça) e nos Estados
Unidos da América (EUA).
Contudo, na América
Latina e no Brasil o Vaticano manteve a sua hegemonia por cerca de 500 anos
desde a 1ª missa, oficializada quando da chegada dos portugueses ao país. No
ano 2000, as filiações católicas abarcavam 73,9% da população brasileira e os
evangélicos respondiam por apenas 15,4% da preferência popular (com 5,2% de
outras religiões e 8% de sem religião). Portanto, os católicos brasileiros
representavam quase três quartos dos habitantes do país no início do século
XXI, como mostrei no livro “Demografia e Economia nos 200 anos da Independência
do Brasil e cenários para o século XXI” (Alves, 2022).
Porém, o Brasil
iniciou um processo de transição religiosa no último quartel do século XX e
tudo indica que haverá uma troca de hegemonia entre os dois principais grupos
religiosos do país na primeira metade do século XXI. O gráfico abaixo apresenta
os percentuais do panorama religioso brasileiro de 1940 a 2010 (com base nos
censos demográficos do IBGE) e uma projeção das tendências atuais e futuras até
2032. Nota-se que, entre 1991 e 2010, o percentual de católicos brasileiros
passou de 83,3% para 64,6% (uma queda anual de 1% ao ano), o percentual de
evangélicos subiu de 9% para 22,2% (um aumento de 0,7% ao ano), o percentual
das outras religiões passou de 3,1% para 5,2% (aumento de 0,1% ao ano) e o
percentual de pessoas se declarando sem religião subiu de 4,6% para 8% (aumento
de 0,2% ao ano).
Na falta de dados do
IBGE entre 2010 e 2022, realizamos uma projeção cobrindo o período 2010 a 2032,
assumindo os seguintes pressupostos: continuidade da queda das filiações
católicos no ritmo de 1,2% ao ano e aumento anual de 0,8% dos evangélicos, de
0,15% das outras religiões e 0,23% das pessoas autodeclaradas sem religião
(estes parâmetros serão ajustados quando o IBGE divulgar os dados das filiações
religiosas do censo 2022).
O resultado desta
projeção está apresentado no mesmo gráfico que mostra os católicos com 49,9%
das filiações religiosas em 2022 (pela primeira vez abaixo de 50%) e com 38,6%
em 2032, e os evangélicos apresentando percentuais de 31,8% e 39,8% no mesmo
período. Ou seja, os evangélicos devem ultrapassar os católicos nos próximos 8
anos e contribui para isto o fato de estarem mais bem posicionados, em termos
de dinâmica demográfica, na população urbana, pobre, jovem e feminina. As
demais religiões devem passar de 5,2% em 2010 para 8,5% em 2032 e o grupo sem
religião deve passar de 8% para 13,1% no mesmo período. Sendo assim, haverá
mudança na hegemonia entre os dois grandes grupos cristãos, em um quadro de
maior de maior concorrência e pluralidade religiosa.
Olhando pelo lado das
filiações religiosas, os católicos ainda são o grupo majoritário do Brasil.
Muitas pessoas se declaram católicas mesmo sem ter uma participação ativa na
igreja. São os chamados católicos não praticantes. Mas o “exército” católico está
sendo confrontado pelo “exército” evangélico e a transição religiosa no país
está prosseguindo em ritmo acelerado.
Antônio Gramsci
(1891-1937) usou os termos “guerra de posição” para definir a tática e as ações
empreendidas na conjuntura e “guerra de movimento” para definir a estratégia e
as ações empreendidas no longo prazo e com efeitos estruturais. Na guerra de posição
os atores sociais adotam a tática de resistência, acumulação de forças e
conquistas parciais no jogo de poder, enquanto na guerra de movimento, os
atores sociais adotam uma estratégia de ataque frontal e tomada de poder.
Para Gramsci, o ataque
frontal antes da conquista da hegemonia é uma fonte inesgotável de derrotas.
Para ele, a tomada de poder tem que ser precedida da consolidação das
“trincheiras” e da conquista de posições sólidas na disputa social, econômica,
política e cultural. A disputa consiste na conquista de espaços, no controle
dos territórios dominados e no avanço sobre as hostes inimigas.
Pode-se utilizar esta
definição gramsciana para analisar a transição religiosa no Brasil, pois
enquanto os católicos adotam a tática da “guerra de posição” – buscando
defender suas trincheiras construídas em mais de 500 anos – os evangélicos
adotam a tática de “guerra de movimento” – atacando os territórios ao redor das
trincheiras católicas e adotando uma “estratégia de ataque frontal e tomada de
poder”.
Esta nova situação do
quadro religioso brasileiro fica claro quando analisamos o avanço da expansão
dos templos dos dois grupos cristãos, como podemos inferir a partir dos dados
do estudo denominado “Crescimento dos estabelecimentos evangélicos no Brasil
nas últimas décadas” (Negri et al, 2023), realizado por pesquisadores do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), utilizando dados da Relação
Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego.
Estudo mostra a
evolução do número de estabelecimentos religiosos entre 1998 e 2021, indicando
que houve crescimento para todas as religiões em um ritmo maior do que o
crescimento populacional do período. Mas o crescimento variou enormemente entre
as diversas denominações.
O menor crescimento
ocorreu na igreja católica, que passou de 8.686 estabelecimentos em 1998 para
14.294 estabelecimentos em 2021, um crescimento de 65% em 23 anos (ou 2,2% ao
ano). As igrejas evangélicas tradicionais (que incluem presbiterianas, batistas
e adventistas, entre outras denominações) tinham 8.539 estabelecimentos em 1998
e passaram para 23.077 em 2021, um crescimento de 170% no período (ou 4,4% ao
ano).
A igreja Assembleias
de Deus tinha 4.700 estabelecimentos em 1998 e passou para 17.329 em 2021, um
crescimento de 269% em 23 anos (ou 5,8% ao ano). A igreja Universal do Reino de
Deus tinha 1.900 estabelecimentos em 1998 e passou para 7.185 em 2021, um crescimento
de 278% em 23 anos (ou 6% ao ano).
A igreja do Evangelho
Quadrangular tinha 2.400 estabelecimentos em 1998 e passou para 4.201 em 2021,
um crescimento de 75% em 23 anos (ou 2,5% ao ano). As outras igrejas
evangélicas pentecostais ou neopentecostais tinham 8.718 estabelecimentos em
1998 e passaram para 35.779 em 2021, um crescimento de 310% em 23 anos (ou 6,3%
ao ano).
Enquanto, em 1998, as
igrejas católicas tinham 8.686 estabelecimentos, o total das igrejas
evangélicas tinham 26.257 estabelecimentos (3 vezes mais). Em 2021 eram 14.294
estabelecimentos católicos e 87.571 evangélicos (6,1 vezes mais).
Por conseguinte,
quando se considera os estabelecimentos religiosos, os evangélicos já superam
em muito os católicos. Por fim, em 2021, havia também 7.784 estabelecimentos de
outras religiões e 10.073 estabelecimentos não classificados. No total eram 124.529
estabelecimentos religiosos registrados no Brasil em 2021 na base de dados da
RAIS.
A despeito de
possíveis diferenças dos números de estabelecimentos religiosos nas diferentes
bases de dados, há um padrão inquestionável que é o crescimento geral do setor
religioso no Brasil e o aumento do volume dos evangélicos em relação aos
católicos, indicando uma aceleração da transição religiosa no Brasil. Os
templos evangélicos são a ponta de lança da “guerra de movimento” e mostram
como o processo de avanço da transição religiosa está ocorrendo.
Na verdade, a dimensão
é ainda maior, pois os dados do estudo do IPEA consideram apenas os templos com
CNPJ, quando sabemos que existem muitos templos e outros estabelecimentos
religiosos que são informais e não estão registrados nos bancos de dados da Receita
Federal.
Desta forma, é útil
considerar os dados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos
(CNEFE), a base de endereços usada pelo IBGE não só no Censo Demográfico, mas
também para diversas outras pesquisas domiciliares.
O censo demográfico de
2022 revelou uma tendência surpreendente no Brasil: há mais estabelecimentos
religiosos do que a soma das instituições de ensino e saúde. Foram visitados e
georreferenciados 580 mil estabelecimentos religiosos durante o censo 2022, o
que representa uma média de 2,9 edificações para cada 1 mil habitantes.
Em contrapartida,
foram registrados 264 mil estabelecimentos de ensino, com uma média de 1,3
edificações para cada 1 mil habitantes, e 248 mil estabelecimentos de saúde,
com uma média de 1,2 edificações para cada 821 habitantes.
Esses números indicam
uma realidade marcante do país, onde o setor religioso tem crescido de forma
significativa e se espalhado por todo o território nacional. Essa prevalência
de estabelecimentos religiosos reflete não apenas a diversidade de crenças presentes
na sociedade brasileira, mas também o papel central que a religião desempenha
atualmente na vida da maioria dos brasileiros e na política nacional.
No Censo 2022, foram
registrados 111,1 milhões de coordenadas geográficas para as espécies de
endereços identificadas na operação censitária nacional. Além dos
estabelecimentos religiosos, de educação e saúde, foram contabilizados 90,6
milhões de domicílios particulares, 104,5 mil domicílios coletivos (hotéis,
prisões, repúblicas de estudantes, etc.), 4,1 milhões de estabelecimentos
agropecuários, 3,5 milhões de edificações em construção e 11,7 milhões de
estabelecimentos com outras finalidades (lojas, prédios públicos, cultura,
etc.).
Dos 111,1 milhões de
estabelecimentos, o maior número absoluto (46,2 milhões) está na região
Sudeste, seguido pela região Nordeste (31 milhões), a região Sul em terceiro
lugar (16,8 milhões) e as regiões Norte e Centro-Oeste com pouco mais de 8
milhões de estabelecimentos.
A tabela abaixo indica
o número dos estabelecimentos religiosos e o tamanho da população, para o
Brasil e as Regiões brasileiras, assim como a proporção para cada 1 mil
habitantes. Nota-se que as Regiões com maior volume absoluto de
estabelecimentos religiosos são em ordem decrescente: Sudeste, Nordeste, Norte,
Sul e Centro-Oeste.
Em termos relativos, o
Brasil tem uma proporção de 2,9 estabelecimentos religiosos para cada 1 mil
habitantes, a proporção da Região Norte é de 4,6 estabelecimentos, Nordeste
(3,2), Sudeste (2,6), Sul (2,3) e Centro-Oeste com 2,6 estabelecimentos para cada
1 mil habitantes.
Os dados do CNEFE do
IBGE não apresentam as denominações dos estabelecimentos religiosos. Quando
forem divulgados os dados das filiações religiosas se poderá fazer um estudo
estatístico para cruzar os dados de estabelecimentos e de filiações religiosas.
Mas, não resta dúvida de que o crescimento do número de templos e de
estabelecimentos religiosos está correlacionado com o aumento das filiações
religiosas.
Desta forma, podemos
inferir que a maioria destes 580 mil estabelecimentos religiosos são
evangélicos e que o avanço que estava muito concentrado na região Sudeste, tem
ocorrido de forma muito rápida na região Norte. Mesmo no Nordeste – que é a
região com o maior percentual de católicos – os estabelecimentos religiosos
evangélicos crescem de maneira significativa.
O artigo “Distribuição
espacial da transição religiosa no Brasil” (Alves et al, 2017) apresenta uma
análise do quadro geográfico da transição religiosa no Brasil.
Desta maneira, o
avanço dos templos e estabelecimentos evangélicos pode ser analisado pela
abordagem gramsciana, entendendo que a igreja católica está nas trincheiras da
“guerra de posição”, enquanto as igrejas evangélicas estão na audácia da
“guerra de movimento”.
As igrejas evangélicas
investem em templos por todo o país, atuam na Internet, nas rádios, televisão e
na política. Usam estratégias de movimento e até “guerra de guerrilha”, ou
seja, usam estratagemas de extrema mobilidade e ocupam ruas e praças com o objetivo
de conquistar novos fiéis, avançando nos espaços de poder na política
institucional nas três esferas da federação e também nos espaços de poder da
sociedade civil. Este fenômeno é facilitado pela descentralização hierárquica e
pela “customização” da mensagem religiosa para públicos específicos.
Os evangélicos estão
ganhando diversas batalhas, mas ainda não ganharam a guerra. O termo “exército
de Jesus” faz parte da linguagem religiosa e a “marcha para Jesus” é uma
mobilização que visa agregar multidões para conquistar posições na disputa
hegemônica. A atual senadora Damares Alves (em fala de maio de 2016) disse: “É
o momento de a Igreja ocupar a nação. É o momento de a Igreja dizer à nação a
que viemos. É o momento de a Igreja governar”. A “Teologia do Domínio” busca
reconquistar o planeta com base nos valores cristãos em 7 áreas: “Família,
Religião, Educação, Mídia, Lazer, Negócios e Governo”.
O carnaval de 2024 foi
palco da disputa religiosa. A cantora Ana Paula Valadão já disse sobre o
carnaval do Rio de Janeiro: ‘Neste lugar, Senhor, nós declaramos que o carnaval
irá falir, se enfraquecer até morrer. E o sambódromo será transformado num altar
de adoração ao único Deus vivo e verdadeiro”. Em plena folia de Salvador, a
cantora Baby do Brasil disse: “Nós entramos em apocalipse. O arrebatamento tem
tudo para acontecer entre cinco e dez anos. Procure ao Senhor enquanto é
possível achá-lo”. Outra cantora, Claudia Leitte, alterou o trecho da música
‘Caranguejo – “saudando a rainha Iemanjá” – por “só louvo meu rei Yeshua”. Ou
seja, procure o Salvador em Salvador (capital da Bahia). Diversas denominações
promoveram retiros espirituais durante o carnaval e utilizaram os meios de
comunicação para criticar os festejos carnavalescos.
A bancada evangélica
da Câmara dos Deputados acusou a escola de samba Gaviões da Fiel de
intolerância religiosa. A escola de samba Vai-Vai, maior campeã do Carnaval de
São Paulo, enfrentou uma onda de ataques por parte de organizações ligadas às
forças de segurança e de diversos líderes religiosos, após seu desfile
apresentar uma ala da escola com a tropa de choque da Polícia Militar
fantasiada como demônios. Os exemplos de ataque ao carnaval se multiplicaram em
2024, mostrando que a “guerra de movimento” se desdobra em vários terrenos até
mesmo da cultura popular.
Inegavelmente, existe
uma disputa pela hegemonia religiosa no Brasil e haverá um novo quadro
religioso no Brasil no século XXI, muito diferente dos 500 anos anteriores. Em
número de templos, os evangélicos já superaram os católicos. Mas, em número de
filiações, os católicos ainda estão na frente.
Todavia, no ritmo das
últimas décadas, o número de pessoas que se declaram evangélicas devem superar
o número de pessoas que se declaram católicas por volta de 2032.
Fonte: Por José
Eustáquio Diniz Alves em EcoDebate
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