Uma
ofensiva contra doenças com causas estruturais
“Nosso
compromisso é eliminar essas doenças, além da transmissão materno-infantil de
HIV/aids, por meio da integração das políticas públicas de ministérios, alguns
de cunho social, outros tecnológicos, articulando sociedade civil e movimentos
sociais. Me perguntam se não é sonho, um desejo onírico, mas essas doenças
foram eliminadas nos países desenvolvidos. É factível, não só para países ricos
e desenvolvidos”, explicou Dráurio Barreira, diretor do Departamento de
HIV/aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis
(Dathi).
Na última
terça, 6/2, o Governo Federal lançou um ambicioso objetivo para combater as
doenças socialmente determinadas. Capitaneada pelo ministério da Saúde em
parceria com outras 13 pastas, o Programa Brasil Saudável, concebido pelo
Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e Outras Doenças
Determinadas Socialmente (CIEDDS), lista 12 enfermidades que contarão com uma
nova abordagem na sua prevenção. O objetivo é erradicá-las ou ao menos
mantê-las sob controle até 2030, em acordo com os Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável.
Em linhas
gerais, doenças socialmente determinadas são aquelas cuja origem pode ser
identificada pelas condições socioeconômicas de seus portadores. “Estudo
tuberculose há 30 anos e é um momento histórico, de reconhecimento de que os
determinantes sociais são tão ou mais importantes que os agentes infecciosos no
surgimento e impacto na vida das pessoas. Quem conviveu com pessoas portadoras
de tais doenças sabe a falta que faz um prato de comida ou um dinheiro pra
chegar à unidade de saúde. Um inquérito mostrou que 48% das pessoas com
tuberculose tiravam 20% de renda da família durante o processo de diagnóstico e
tratamento. Pela primeira vez, também mostramos que a fome a outras condições
de vida são as causas principais dessas doenças”, sintetizou Ethel Maciel,
secretária de Vigilância Sanitária do ministério da Saúde.
• Quebrar a invisibilidade
O evento,
realizado no Centro Internacional de Convenções de Brasília, reuniu movimentos
sociais compostos por pessoas portadoras de doenças como HIV/aids, Vírus
Linfotrópico da Célula T Humana (HTLV, retrovírus da mesma família do HIV),
hepatites, que encheram seu plenário e aplaudiram Adijeane Oliveira, liderança
do HTLVida, em sua fala ao lado das autoridades. “O Brasil Saudável é uma
reivindicação e conquista de todos esses movimentos, que insistentemente
apontaram a desigualdade social como parte do processo de adoecimento. Temos
uma lacuna muito grande de dificuldade de acesso. É muito duro viver com HTLV,
ter 38 anos e estar presa num corpo adoecido, cheio de limitações. Sem falar a
parte psicológica. Dói viver com aids, hepatite. Impacta muito na nossa vida.
Faço parte de uma família de quatro filhos, nós quatro temos HTLV, e perdi um
irmão recentemente por isso”, afirmou.
Como se
pode ver no site do Ministério da Saúde, o escopo das doenças a ser atacada se
relaciona com as chamadas doenças tropicais negligenciadas. Trata-se,
resumidamente, de doenças evitáveis e curáveis, mas que se propagam no tecido
social em razão da ineficiência do Estado e da estrutura de exclusão social que
afasta seus portadores de diagnóstico e tratamento. Estima-se cerca de 60 mil
mortes por tais doenças entre 2017 e 2021 no Brasil.
“O HTLV
mata, adoece e nos deixa esquecidos. E ainda digo: sou privilegiada. Tive
acesso à cadeira de rodas, a um diagnóstico rápido, aos 14 anos. São diversas
doenças que acometem os brasileiros. Temos estimativas assustadoras. É muito
triste ver essas doenças contarem com pouquíssimo investimento. São dezenas de
doenças tropicais negligenciadas, e infelizmente o HTLV ainda não é parte da
lista. Precisamos de testagem, acompanhamento, vigilância molecular. Temos uma
epidemia silenciosa, mas as pessoas desconhecem e assim deixam de cuidar”.
Destaque
importante do evento, a presença da ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação
(CT&I), Luciana Santos, indicou caminhos que permitem não só avançar no
controle de tais doenças como estimular a produção científica nacional. “O
programa prioriza enfrentar fome e pobreza para mitigar essas vulnerabilidades,
defesa de direitos humanos e proteção social em territórios prioritários,
intensificar qualificação e comunicação com trabalhadores e sociedade civil a
respeito dessas doenças. Incentivo à CT&I e ampliação de ações de
saneamento, pois já sabemos que a cada real investido economizamos 4 em saúde,
é um aspecto estruturante. O comitê interministerial quer promover ações de
aceleração da eliminação de tais doenças a partir da compreensão de se tratar de
temas complexos, o que explica a unidade entre vários ministérios”, afirmou.
A ministra
anunciou que o Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia abrirá editais para
selecionar projetos que tragam soluções para o combate a tais doenças. Da
divulgação científica à produção de insumos úteis a tais políticas, aqui fica
claro porque a ação é interministerial. Além disso, corrobora posições do
Brasil em fóruns internacionais, como OMS e o G-20, o qual preside neste ano.
“Tais
medidas são políticas de Estado. Não vamos ficar isolados e estamos nos
inserindo de novo no mundo. Estamos abertos à transferência de tecnologia. E
vamos trabalhar em editais de saúde que dialoguem com os objetivos do Complexo
Econômico Industrial de Saúde”, completou Luciana Santos.
• Protagonismo global
Nesse
sentido, chamou atenção a articulação internacional do evento de apresentação
do Brasil Saudável. Tedros Adhanom e Jarbas Barbosa, diretores da OMS e OPAS,
respectivamente, estiveram presentes ao evento, que ainda contou com o ministro
da Saúde da Indonésia, outro país que convive com doenças tropicais negligenciadas, Budi Gunadi
Sadikin.
“Senti-me
encorajado porque estamos trabalhando com pessoas convencidas de que podemos
vencer essas doenças, trabalhando de forma inclusiva, como um movimento, mais
que um programa de governo. Na Indonésia, tenho dificuldade de trabalhar com
outros ministérios, em especial a economia, que representa as pessoas mais
poderosas do país. Mas é trabalhando juntos que podemos resolver esses
problemas”, disse Sadikin, que por tabela ainda apresentou uma tradicional
disjuntiva brasileira, onde os orçamentos para políticas públicas estão sempre
no alvo de dogmas econômicos.
Por sua
vez, Jarbas Barbosa lembrou de histórias de pioneirismo de países do continente
americano na erradicação e superação de doenças socialmente determinadas.
Apesar do otimismo com a iniciativa, destacou a desigualdade como vetor
principal de sua permanência nos países da região. “O desafio é identificar
barreiras de acesso das pessoas aos tratamentos. Diagnóstico e tratamento
gratuitos são avanços imensos, mas populações pobres, originárias,
marginalizadas, não têm acesso por barreiras invisíveis. Tenho certezaque este
programa servirá de inspiração para outros países”, asseverou.
A visão de
Jarbas foi corroborada por Tedros Adhanom, a partir de uma chave de que tais
políticas devem significar um avanço na inteligência dos próprios Estados na
preparação de seus sistemas públicos de saúde e sua força de trabalho. Mais que
isso, podem avançar na promoção do controle social de sistemas como o SUS. “As
doenças não se tratam uma de cada vez. Precisamos de respostas holísticas, que
coloquem as pessoas no centro do sistema e serviços de saúde, não a doença.
Essas doenças podem ser manejadas no âmbito da atenção primária, os
profissionais de saúde podem estar treinados para detectar seus sintomas. Os
benefícios vão muito além do combate às doenças elencadas aqui no plano, gera
dividendos superiores a isso”, explicou.
O diretor
da OMS ainda mostrou ânimo em relação às posturas recentes do Brasil em fóruns
internacionais, onde Nísia foi enfática em defender a soberania sanitária de
países em desenvolvimento. A produção da vacina contra a dengue do Instituto
Butantan foi saudada com otimismo por Tedros, que sugeriu a possibilidade de o
Brasil ser um fornecedor internacional. “Fico feliz com a representação da
União Africana aqui, pois a experiência brasileira ajudará este continente e
fortalece a cooperação sul-sul, cujos países tem muitas coisas comum”, agregou.
Por sua
vez, Nísia foi direto ao ponto das mazelas estruturais brasileiras para
justificar o novo programa de governo. “O último país a encerrar a escravidão
manteve uma imensa desigualdade e sua república demorou quase 100 anos para
reconhecer direitos dos povos indígenas. Quando falamos de determinantes
sociais em saúde, falamos de classe, de diferenças étnico-raciais, que estão na
raiz de tantos problemas de saúde. Esses determinantes, no fundo, impactam
todas as doenças, para além das que estão no programa. Impactam em doenças
crônicas, em tratamentos como de câncer. Mas com engajamento podemos fazer com
que se tornem história”, resumiu.
Como
mostra a declaração de Dráurio Barreira, otimismo é o que não parece faltar nos
corredores do governo. “Há 120 anos, no Rio de Janeiro, que tinha alcunha de
cemitério dos estrangeiros, pobre e recém-saído da colonização, com apoio do
governo federal da época e vontade política de um prefeito (Pereira Passos),
com determinação do diretor de saúde pública da época, um tal Oswaldo Cruz, foi
possível eliminar a peste bubônica, a varíola e a febre amarela em 3 anos. E
não foi fácil, porque naquela época também tínhamos os negacionistas, como
simbolizado na revolta da vacina. Com a liderança de Lula, dos estados e
municípios, o compromisso de sociedade civil e academia, podemos eliminar todas
essas doenças. Um governo que consegue erradicar a fome, a miséria, educar o
povo e trazer saúde à população deixará um legado para a história. É isso que
pretendemos”, celebrou.
Fonte: Por
Gabriel Brito, em Outra Saúde
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