Povos
Indígenas: Crime brutal contra família Tikuna
No último
dia 29 de janeiro, a Secretaria Municipal de Segurança Pública de Benjamin
Constant, na região do Alto Solimões, no Amazonas, localizou os corpos de uma
mãe, de 28 anos, e do filho, de 4 anos, ambos indígenas da etnia Tikuna de
nacionalidade colombiana. Eles estavam desaparecidos em uma área de mata nas
proximidades das aldeias Porto Cordeirinho e Filadélfia, também do povo Tikuna,
no lado brasileiro. Benjamin Constant fica na tríplice fronteira – Brasil,
Colômbia e Peru. A mulher tinha marcas de tiros no corpo e a criança teve o
pescoço degolado.
No dia
seguinte ao da descoberta do crime brutal, a Polícia Civil do Amazonas prendeu
em flagrante dois homens suspeitos de envolvimento nas mortes. Eles também
foram acusados de estupro qualificado contra uma criança de 7 anos, filha e
irmã das vítimas. De acordo com a delegada Luciana Lima Nasser, titular da 51ª
Delegacia Interativa de Polícia de Benjamin Constant (a 1,118 KM de Manaus), as
investigações começaram quando a criança de 7 anos foi encontrada por moradores
de Porto Cordeirinho caminhando em direção a uma das aldeias.
Segundo
nota da Secretaria de Segurança de Benjamin Constant enviada à Amazônia Real, a
criança estava com um ferimento profundo no pescoço e inchaço no lado esquerdo
do rosto. Ela foi levada imediatamente a uma unidade hospitalar para receber os
primeiros atendimentos médicos e para a realização de exames. Os crimes teriam
acontecido no dia 27 de janeiro, um dia antes de uma das vítimas ter sido
encontrada caminhando sozinha na mata.
Uma equipe
do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) foi
acionada para auxiliar a criança, que ficou perdida na área de mata por
aproximadamente um dia.
“A criança
foi ouvida no hospital em escuta especializada, na presença de um psicólogo. Ela
relatou, da maneira que pode, o que teria acontecido e informou a possível
autoria do crime. A partir daí começamos a trabalhar para identificar os
responsáveis. Foi solicitado exame de conjunção carnal, que apontou que a
vítima teria sido abusada sexualmente”, explicou a delegada.
Victor
Raul Mendonza Macedo, 36 anos, de nacionalidade peruana, confessou os crimes e
apontou a participação de Noelson Mendes Tomé, 25 anos. “Em depoimento, ele
apontou a participação de mais um homem e disse que eles estariam sob efeito de
bebida alcoólica no momento em que o crime aconteceu, em uma casa na roça. Ele
contou que sabia que a mãe e os dois filhos estavam sozinhos na residência”,
disse a delegada. Os advogados dos acusados não foram localizados pela
reportagem.
O
inquérito policial enviado pela Polícia Civil à Comarca de Benjamin Constant
relata que Victor Raul Mendoza Macedo teria abordado as três vítimas à noite,
praticado o crime de estupro de vulnerável e tentativa de homicídio contra a
criança de 7 anos, e assassinado a mulher e a criança de 4 anos. Segundo a
investigação, o suspeito é cunhado da mulher assassinada e tio das crianças.
De acordo
com a delegada, o peruano confessou que teria sido o autor do estupro
qualificado contra a menina e alegou, ainda, que teria furado o pescoço da
vítima com uma faca. Posteriormente, ele saiu do local, achando que ela estava
morta. Ele também confessou ter estuprado a mãe das crianças.
“Devido ao
tiro que a mãe levou, o menino de 4 anos se assustou e fugiu do local, sendo
perseguido e morto em seguida. A mãe das crianças foi morta com uma espingarda
e também foi vítima de estupro”, revelou a policial.
Além de
ter violentado a menina de 7 anos, o agressor deu chutes no rosto dela, quebrou
o seu maxilar e fez com que ela perdesse vários dentes. A criança terá,
inclusive, que fazer uma cirurgia para operar o maxilar.
Em nota
enviada à reportagem por e-mail, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas
(Funai) informou estar acompanhando o caso através da Coordenação Regional Alto
Solimões, em constante contato com as autoridades locais, incluindo Polícia Civil, Polícia Militar, Defesa Civil
e o Conselho Tutelar. “A Fundação está colaborando com as investigações em
curso para apurar os detalhes do ocorrido”, disse o órgão.
• Prisão do principal suspeito
Em
audiência de custódia realizada no dia 31 de janeiro, a juíza de direito
Luiziana Teles Feitosa Anacleto, homologou a prisão em flagrante de Victor Raul
Mendoza Macedo e a converteu em prisão preventiva. No mesmo processo, a
magistrada concedeu liberdade provisória a Noelson Mendes Tomé. Victor Raul foi
indiciado pelos crimes de estupro qualificado e tentativa de homicídio e
homicídio qualificado por motivo torpe e impossibilidade de defesa da vítima.
Na decisão
que decretou a prisão preventiva de Victor Raul, a magistrada entendeu que
seria necessário preservar a integridade da vítima sobrevivente, além de evitar
que o agressor fugisse para seu país de origem.
“A
conveniência da instrução processual se mostra para resguardar a segurança da
vítima, garantir sua integridade emocional e a tranquilidade para ela vir em
Juízo prestar seu depoimento. Ademais, a vítima é parte hipossuficiente na
relação ora analisada, cabendo ao Estado tutelar sua integridade física e
psíquica. Por fim, a necessidade de aplicação da lei penal resta configurada
pelo fato de que o custodiado Victor Raul é peruano, havendo risco de fuga para
seu país de origem”, relatou a juíza em sua decisão.
Liberado
pelo Poder Judiciário por não haver indícios suficientes de que ele foi autor
ou que participou dos delitos descritos no flagrante, Noelson Mendes Tomé é
obrigado a não se ausentar da Comarca de Benjamin Constant sem prévia
autorização judicial e não pode frequentar bares, praças, boates ou locais
voltados ao consumo de bebidas alcoólicas ou difusão ilícita de drogas. Ele
também não pode mudar do endereço informado na audiência de custódia, sem
prévia comunicação ao juízo. Em caso de descumprimento de qualquer uma das
medidas cautelares, a Justiça poderá decretar a prisão preventiva de Noelson.
Após a
conclusão do inquérito pela autoridade policial, a Justiça aguardará a
manifestação do Ministério Público em relação à denúncia, assim como intimará
vítima, testemunhas e denunciados para audiência de instrução e julgamento.
• Silenciamento
Em
entrevista à Amazônia Real, a liderança Núbia Rios, indígena do povo Tikuna,
afirmou que os casos de violência de
gênero contra as mulheres e crianças indígenas, dentro ou fora das aldeias e
das comunidades, não são isolados e acontecem de forma constante.
“Nós somos
submetidas a todas as formas de violência de gênero que você possa imaginar:
física, psicológica e patrimonial. A maioria de nós não tem estudo formal e são
poucas as que conseguem estudar e se sobressair. Grande parte de nós ficamos
submetidas a violências com as nossas crianças nas aldeias, porque nós não
temos para onde ir. Na cidade não tem casa, não tem renda e nem emprego fixo, e
a gente ainda consegue sobreviver nas aldeias, mesmo colocando nossas vidas e
das nossas crianças em risco”, disse.
Ela
declarou ainda que as mulheres indígenas são silenciadas ao denunciar as
violações. Uma das principais dificuldades é encontrar registros oficiais sobre
esse tipo de violência. “Nas aldeias tem as leis locais de cada comunidade
indígena, então essas situações dificilmente são denunciadas nas delegacias
fora das comunidades. Esse é um problema gravíssimo que nós, mulheres
indígenas, enfrentamos. É um problema que é enfrentado de forma silenciosa”.
Em janeiro
deste ano, Raimundo Nonato Oliveira, tuxaua do povo Mura da aldeia Muratuba, na
região do Lago do Acará, em Autazes, interior do Amazonas, foi preso pelo crime de estupro de vulnerável
recorrente contra quatro mulheres, inclusive uma criança de oito anos. As
vítimas pediram proteção, alegando correrem risco de vida na comunidade.
Para
Núbia, ao lutar por direitos aos territórios,
à saúde e à educação, o movimento indígena deixa a questão da segurança
das mulheres em segundo plano. “É um assunto tão excluído e tão reprimido que
por isso essas violências acontecem de forma silenciada nos nossos
territórios”, ressaltou.
Rosimere
Arapaço, vice-coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas
– Makira E’ta, concorda que a violência contra mulheres e crianças indígenas
acontece ao longo das décadas, como nos casos onde a vítima é uma liderança.
“A mulher
indígena sofre violência e ameaças quando defende seu território e sua
comunidade contra garimpo ilegal, quando denuncia os impactos causados pelos
garimpeiros. As mulheres das faixas de fronteiras sofrem mais porque não há
punições aos agressores, seja a agressão feita dentro da comunidade ou nas
sedes dos municípios”, disse.
Também
integrante da Makira E’ta, Marinete Tukano ressalta que as mulheres indígenas
são submetidas a todo tipo de violência, seja obstétrica, sexual, assédio, ou
mesmo a fome, invasão de territórios e o racismo ambiental.
“É uma
violência que vem crescendo, que vem aumentando constantemente e esse ano, no
primeiro semestre 2024, estamos perdendo muitas mulheres por feminicídio”,
alertou.
Marinete
afirma que os casos de feminicídio de mulheres indígenas não são tipificados
como tal, porque elas não têm a atenção devida do poder público e das políticas públicas voltadas para
mulheres. “Aqui em Manaus as mulheres indígenas não estão no mapa da violência
por não conseguirmos fazer as denúncias sobre as violências cometidas contra
nós, por exemplo. Então, existe violência sim nos territórios e fora dos
territórios, nas capitais”, declarou.
• Desafios
Para
Rosimere Arapaço, falta a implementação de ouvidorias específicas para
atendimento às mulheres indígenas. Ela
aponta como prioridade a estruturação de órgãos como o Conselho Tutelar, para
que possam também atender as crianças indígenas vítimas de violência, sobretudo
sexual.
“A falta
de políticas públicas de segurança nos municípios é o principal fator de
impunidade aos agressores e de assassinatos de mulheres indígenas”.
A
liderança Núbia Rios acredita que o principal desafio no combate à violência de
gênero contra as mulheres indígenas é trazer o assunto à tona, o que ainda não
é algo comum. “Quando uma mulher indígena começa a tocar nesse assunto de
violência de gênero, muitas vezes somos criticadas, mas quando conseguimos aos
pouquinhos fazer com que outras mulheres entendam que a violência é
perigosa, cruel e agressiva e que os
principais alvos somos nós e as nossas crianças, elas conseguem ter uma visão
de libertação”.
Núbia
ressalta que, para abordar um tema sensível como violência de gênero, as
indígenas ainda caminham a passos lentos e enfrentam essa luta com muita
dificuldade e muitos obstáculos.
• Falta de políticas públicas
Marinete
Tukano analisa que as políticas públicas voltadas para as mulheres não atendem
as demandas das mulheres indígenas. Sendo assim, é necessário que sejam
revisadas por elas e para elas.
“As leis
de proteção às mulheres, como a Lei Maria da Penha, têm que ser revistas conforme
a demanda e necessidade das mulheres indígenas em todos os territórios que elas
residem. As políticas públicas precisam se adaptar à nossa realidade, aos
nossos anseios e às nossas dificuldades”.
Em 2020,
repercutiu o caso de violência sexual sofrida pela menina Ana Beatriz, de 5
anos, dentro de seu próprio território, na Terra Indígena Andirá Marau, do povo
Sateré-Mawé. O estupro resultou em sua morte.
Em 2023,
durante a Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, as lideranças femininas
denunciaram a violência de gênero que atravessa seus corpos. Um dos episódios
mais violentos foi o assassinato de Maria Clara Batista, 15 anos, da etnia
Karipuna. Ela foi vítima de violência sexual na cidade de Oiapoque, no Amapá.
Segundo
estatísticas da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, 16 mulheres foram
vítimas de feminicídio no estado de janeiro a outubro de 2023. Neste período
foram registrados 3.620 estupros.
Fonte:
Amazonia Real
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