sábado, 10 de fevereiro de 2024

Povos Indígenas: Crime brutal contra família Tikuna

No último dia 29 de janeiro, a Secretaria Municipal de Segurança Pública de Benjamin Constant, na região do Alto Solimões, no Amazonas, localizou os corpos de uma mãe, de 28 anos, e do filho, de 4 anos, ambos indígenas da etnia Tikuna de nacionalidade colombiana. Eles estavam desaparecidos em uma área de mata nas proximidades das aldeias Porto Cordeirinho e Filadélfia, também do povo Tikuna, no lado brasileiro. Benjamin Constant fica na tríplice fronteira – Brasil, Colômbia e Peru. A mulher tinha marcas de tiros no corpo e a criança teve o pescoço degolado.

No dia seguinte ao da descoberta do crime brutal, a Polícia Civil do Amazonas prendeu em flagrante dois homens suspeitos de envolvimento nas mortes. Eles também foram acusados de estupro qualificado contra uma criança de 7 anos, filha e irmã das vítimas. De acordo com a delegada Luciana Lima Nasser, titular da 51ª Delegacia Interativa de Polícia de Benjamin Constant (a 1,118 KM de Manaus), as investigações começaram quando a criança de 7 anos foi encontrada por moradores de Porto Cordeirinho caminhando em direção a uma das aldeias.

Segundo nota da Secretaria de Segurança de Benjamin Constant enviada à Amazônia Real, a criança estava com um ferimento profundo no pescoço e inchaço no lado esquerdo do rosto. Ela foi levada imediatamente a uma unidade hospitalar para receber os primeiros atendimentos médicos e para a realização de exames. Os crimes teriam acontecido no dia 27 de janeiro, um dia antes de uma das vítimas ter sido encontrada caminhando sozinha na mata.

Uma equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) foi acionada para auxiliar a criança, que ficou perdida na área de mata por aproximadamente um dia.

“A criança foi ouvida no hospital em escuta especializada, na presença de um psicólogo. Ela relatou, da maneira que pode, o que teria acontecido e informou a possível autoria do crime. A partir daí começamos a trabalhar para identificar os responsáveis. Foi solicitado exame de conjunção carnal, que apontou que a vítima teria sido abusada sexualmente”, explicou a delegada.

Victor Raul Mendonza Macedo, 36 anos, de nacionalidade peruana, confessou os crimes e apontou a participação de Noelson Mendes Tomé, 25 anos. “Em depoimento, ele apontou a participação de mais um homem e disse que eles estariam sob efeito de bebida alcoólica no momento em que o crime aconteceu, em uma casa na roça. Ele contou que sabia que a mãe e os dois filhos estavam sozinhos na residência”, disse a delegada. Os advogados dos acusados não foram localizados pela reportagem.

O inquérito policial enviado pela Polícia Civil à Comarca de Benjamin Constant relata que Victor Raul Mendoza Macedo teria abordado as três vítimas à noite, praticado o crime de estupro de vulnerável e tentativa de homicídio contra a criança de 7 anos, e assassinado a mulher e a criança de 4 anos. Segundo a investigação, o suspeito é cunhado da mulher assassinada e tio das crianças.

De acordo com a delegada, o peruano confessou que teria sido o autor do estupro qualificado contra a menina e alegou, ainda, que teria furado o pescoço da vítima com uma faca. Posteriormente, ele saiu do local, achando que ela estava morta. Ele também confessou ter estuprado a mãe das crianças.

“Devido ao tiro que a mãe levou, o menino de 4 anos se assustou e fugiu do local, sendo perseguido e morto em seguida. A mãe das crianças foi morta com uma espingarda e também foi vítima de estupro”, revelou a policial.

Além de ter violentado a menina de 7 anos, o agressor deu chutes no rosto dela, quebrou o seu maxilar e fez com que ela perdesse vários dentes. A criança terá, inclusive, que fazer uma cirurgia para operar o maxilar.

Em nota enviada à reportagem por e-mail, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou estar acompanhando o caso através da Coordenação Regional Alto Solimões, em constante contato com as autoridades locais, incluindo  Polícia Civil, Polícia Militar, Defesa Civil e o Conselho Tutelar. “A Fundação está colaborando com as investigações em curso para apurar os detalhes do ocorrido”, disse o órgão.

•        Prisão do principal suspeito

Em audiência de custódia realizada no dia 31 de janeiro, a juíza de direito Luiziana Teles Feitosa Anacleto, homologou a prisão em flagrante de Victor Raul Mendoza Macedo e a converteu em prisão preventiva. No mesmo processo, a magistrada concedeu liberdade provisória a Noelson Mendes Tomé. Victor Raul foi indiciado pelos crimes de estupro qualificado e tentativa de homicídio e homicídio qualificado por motivo torpe e impossibilidade de defesa da vítima.

Na decisão que decretou a prisão preventiva de Victor Raul, a magistrada entendeu que seria necessário preservar a integridade da vítima sobrevivente, além de evitar que o agressor fugisse para seu país de origem.

“A conveniência da instrução processual se mostra para resguardar a segurança da vítima, garantir sua integridade emocional e a tranquilidade para ela vir em Juízo prestar seu depoimento. Ademais, a vítima é parte hipossuficiente na relação ora analisada, cabendo ao Estado tutelar sua integridade física e psíquica. Por fim, a necessidade de aplicação da lei penal resta configurada pelo fato de que o custodiado Victor Raul é peruano, havendo risco de fuga para seu país de origem”, relatou a juíza em sua decisão.

Liberado pelo Poder Judiciário por não haver indícios suficientes de que ele foi autor ou que participou dos delitos descritos no flagrante, Noelson Mendes Tomé é obrigado a não se ausentar da Comarca de Benjamin Constant sem prévia autorização judicial e não pode frequentar bares, praças, boates ou locais voltados ao consumo de bebidas alcoólicas ou difusão ilícita de drogas. Ele também não pode mudar do endereço informado na audiência de custódia, sem prévia comunicação ao juízo. Em caso de descumprimento de qualquer uma das medidas cautelares, a Justiça poderá decretar a prisão preventiva de Noelson.

Após a conclusão do inquérito pela autoridade policial, a Justiça aguardará a manifestação do Ministério Público em relação à denúncia, assim como intimará vítima, testemunhas e denunciados para audiência de instrução e julgamento.

•        Silenciamento

Em entrevista à Amazônia Real, a liderança Núbia Rios, indígena do povo Tikuna, afirmou que os casos de  violência de gênero contra as mulheres e crianças indígenas, dentro ou fora das aldeias e das comunidades, não são isolados e acontecem de forma constante.

“Nós somos submetidas a todas as formas de violência de gênero que você possa imaginar: física, psicológica e patrimonial. A maioria de nós não tem estudo formal e são poucas as que conseguem estudar e se sobressair. Grande parte de nós ficamos submetidas a violências com as nossas crianças nas aldeias, porque nós não temos para onde ir. Na cidade não tem casa, não tem renda e nem emprego fixo, e a gente ainda consegue sobreviver nas aldeias, mesmo colocando nossas vidas e das nossas crianças em risco”, disse.

Ela declarou ainda que as mulheres indígenas são silenciadas ao denunciar as violações. Uma das principais dificuldades é encontrar registros oficiais sobre esse tipo de violência. “Nas aldeias tem as leis locais de cada comunidade indígena, então essas situações dificilmente são denunciadas nas delegacias fora das comunidades. Esse é um problema gravíssimo que nós, mulheres indígenas, enfrentamos. É um problema que é enfrentado de forma silenciosa”.

Em janeiro deste ano, Raimundo Nonato Oliveira, tuxaua do povo Mura da aldeia Muratuba, na região do Lago do Acará, em Autazes, interior do Amazonas, foi preso  pelo crime de estupro de vulnerável recorrente contra quatro mulheres, inclusive uma criança de oito anos. As vítimas pediram proteção, alegando correrem risco de vida na comunidade.

Para Núbia, ao lutar por direitos aos territórios,  à saúde e à educação, o movimento indígena deixa a questão da segurança das mulheres em segundo plano. “É um assunto tão excluído e tão reprimido que por isso essas violências acontecem de forma silenciada nos nossos territórios”, ressaltou.

Rosimere Arapaço, vice-coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas – Makira E’ta, concorda que a violência contra mulheres e crianças indígenas acontece ao longo das décadas, como nos casos onde a vítima é uma  liderança.

“A mulher indígena sofre violência e ameaças quando defende seu território e sua comunidade contra garimpo ilegal, quando denuncia os impactos causados pelos garimpeiros. As mulheres das faixas de fronteiras sofrem mais porque não há punições aos agressores, seja a agressão feita dentro da comunidade ou nas sedes dos municípios”, disse.

Também integrante da Makira E’ta, Marinete Tukano ressalta que as mulheres indígenas são submetidas a todo tipo de violência, seja obstétrica, sexual, assédio, ou mesmo a fome, invasão de territórios e o racismo ambiental.

“É uma violência que vem crescendo, que vem aumentando constantemente e esse ano, no primeiro semestre 2024, estamos perdendo muitas mulheres por feminicídio”, alertou.

Marinete afirma que os casos de feminicídio de mulheres indígenas não são tipificados como tal, porque elas não têm a atenção devida do poder público  e das políticas públicas voltadas para mulheres. “Aqui em Manaus as mulheres indígenas não estão no mapa da violência por não conseguirmos fazer as denúncias sobre as violências cometidas contra nós, por exemplo. Então, existe violência sim nos territórios e fora dos territórios, nas capitais”, declarou.

•        Desafios

Para Rosimere Arapaço, falta a implementação de ouvidorias específicas para atendimento às mulheres indígenas.  Ela aponta como prioridade a estruturação de órgãos como o Conselho Tutelar, para que possam também atender as crianças indígenas vítimas de violência, sobretudo sexual.

“A falta de políticas públicas de segurança nos municípios é o principal fator de impunidade aos agressores e de assassinatos de mulheres indígenas”.

A liderança Núbia Rios acredita que o principal desafio no combate à violência de gênero contra as mulheres indígenas é trazer o assunto à tona, o que ainda não é algo comum. “Quando uma mulher indígena começa a tocar nesse assunto de violência de gênero, muitas vezes somos criticadas, mas quando conseguimos aos pouquinhos fazer com que outras mulheres entendam que a violência é perigosa,  cruel e agressiva e que os principais alvos somos nós e as nossas crianças, elas conseguem ter uma visão de libertação”.

Núbia ressalta que, para abordar um tema sensível como violência de gênero, as indígenas ainda caminham a passos lentos e enfrentam essa luta com muita dificuldade e muitos obstáculos.

•        Falta de políticas públicas

Marinete Tukano analisa que as políticas públicas voltadas para as mulheres não atendem as demandas das mulheres indígenas. Sendo assim, é necessário que sejam revisadas por elas e para elas.

“As leis de proteção às mulheres, como a Lei Maria da Penha, têm que ser revistas conforme a demanda e necessidade das mulheres indígenas em todos os territórios que elas residem. As políticas públicas precisam se adaptar à nossa realidade, aos nossos anseios e às nossas dificuldades”.

Em 2020, repercutiu o caso de violência sexual sofrida pela menina Ana Beatriz, de 5 anos, dentro de seu próprio território, na Terra Indígena Andirá Marau, do povo Sateré-Mawé. O estupro resultou em sua morte.

Em 2023, durante a Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, as lideranças femininas denunciaram a violência de gênero que atravessa seus corpos. Um dos episódios mais violentos foi o assassinato de Maria Clara Batista, 15 anos, da etnia Karipuna. Ela foi vítima de violência sexual na cidade de Oiapoque, no Amapá.

Segundo estatísticas da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, 16 mulheres foram vítimas de feminicídio no estado de janeiro a outubro de 2023. Neste período foram registrados 3.620 estupros.

 

Fonte: Amazonia Real

 

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