Mauro
Lopes: PF encontra indícios de que Ramagem contratou milicianos para sua
campanha com verba secreta da ABIN
As
suspeitas são antigas, mas a história só agora começa a ser conhecida mais
amplamente.
A primeira
vez que o tema subiu à tona foi em junho de 2022, em pleno governo Bolsonaro,
numa reportagem do jornalista Rodrigo Rangel no Metrópoles. “Abin usou verba secreta para atuar em área
cobiçada por milícias no RJ”.
Nela,
relatava-se uma operação sob comando de Alexandre Ramagem, delegado da Polícia
Federal do núcleo duro do bolsonarismo havia, durante seu tempo à frente da
ABIN. Ele despejara recursos da verba secreta da agência supostamente “para
pagar informantes em comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelo tráfico de
drogas – e onde as milícias que atuam na cidade têm interesse de entrar”.
A ação foi
registrada como “Plano de Operações 06/2021” nos controles da ABIN e hoje é
conhecida nos meios políticos e de segurança/inteligência apenas como “Operação
06”.
Na
reportagem, Rangel apontou o tamanho e o caráter encoberto da ação: “Como a
operação é custeada com verba secreta, é difícil rastrear o caminho do dinheiro
que está sendo gasto na operação. A coluna apurou que o valor total empregado
até agora se aproxima de R$ 1,5 milhão — uma cifra considerada alta para os
padrões da agência em ações de campo”.
No fim do
texto, o jornalista plantou a semente de um tema que agora tornou-se uma árvore
gigantesca com as investigações da Polícia Federal: era uma operação eleitoral
clandestina. “Em conversas internas, agentes chegaram a aventar a hipótese –
grave – de que a Abin estaria agindo por interesse eleitoral, na intenção de
abrir caminho para que grupos de policiais ligados ao bolsonarismo possam
entrar nessas regiões e agir em favor de candidatos aliados do presidente nas
próximas eleições. (...) Para além dos interesses eleitorais da própria família
presidencial, Ramagem, que deixou a direção da Abin no fim de março, é
pré-candidato a deputado federal pelo Rio”.
Publicada
em junho de 2022, o tema da reportagem ficou de lado, pela urgência de outras
pautas e a apuração aberta por Rangel não foi adiante.
Mas voltou
agora, semente tornada árvore frondosa.
Nesta
terça-feira (6), a jornalista Natália Portinari
revelou, no UOL, que a PF teria encontrado na casa
de Ramagem, na busca e apreensão realizada em 25 de janeiro deste ano,
documentos referentes exatamente à “Operação 06”. Segundo Portinari, “Os papéis
encontrados na casa de Ramagem estavam descaracterizados, sem logo ou
identificação da Abin, e sem data”.
·
O que descobri
Nesta
quarta (6), apurei mais informações que avançam em relação às descobertas de
Rangel e Portinari.
De fato, a
“Operação 06”, iniciada em 2021 e que teve seu auge em 2022, era uma operação
eleitoral clandestina. Ramagem teria mobilizado agentes no início de 2022 para
contratarem milicianos da Zona Oeste do Rio de Janeiro para serem cabos
eleitorais de futura campanha.
É o que
indicam as investigações recentes da Polícia Federal.
As
desconfianças sobre o caráter da “Operação 06” são partilhadas por diversos
parlamentares integrantes da CCAI, Comissão Mista de Controle das Atividades de
Inteligência. A comissão deveria exercer rigoroso controle externo sobre a
ABIN, mas a fragilidade do arcabouço institucional brasileiro faz com que a
CCAI não chegue aos pés de suas congêneres em outros parlamentos.
Em março
de 2023, o senador Renan Calheiros, integrante da comissão e que assumirá sua
presidência nas próximas semanas, enviou um ofício ao ministro Rui Costa, chefe
da Casa Civil, a que está subordinada a Abin, com uma série de questionamentos
sobre a “Operação 06”.
Leia:
“Nos
termos do artigo 6º da Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999, que determina o
controle e fiscalização externos das atividades de inteligência pelo Poder
Legislativo, bem como com base nos artigos 3º, I, 16 e 17, da Resolução nº
2-CN, integrante do Regimento Comum do Congresso Nacional, que dispõe sobre a
Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), REQUEIRO ao
Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República:
1 – cópia
integral do Plano de Operação 06/21 – ABIN;
2 – cópias
integrais de todos os relatórios produzidos pelos órgãos do Sistema Brasileiro
de Informações (SISBIN) sobre - Plano 06/21 da ABIN;
3 –
indicação precisa de todos os destinatários das informações produzidas no
âmbito do Plano 06/21 da ABIN;
4 – dados
orçamentários e financeiros, até o nível de elemento de despesa, de todas as
atividades do Plano 06/21 da ABIN;
5 –
objetivos, metas e resultados obtidos do Pano 06/21 da ABIN;
6 –
Atividades do Plano 06/21, no exercício de 2022, ou de plano sucedâneo (até
30/04/2023), com as dotações orçamentárias e respectivas execuções;
7 –
relação completa de todas as autoridades e servidores responsáveis pela
formulação, execução e controle do Plano 06/21, ou de plano sucedâneo (até
30/04/2023), inclusive na esfera orçamentária e financeira.”
Até hoje a
comissão espera pelos dados solicitados. Segundo um deputado que teve acesso às
respostas da ABIN, “elas são um amontoado de informações desencontradas que não
explicam nada”.
A CCAI é
uma comissão mista, integrada por senadores e deputados. Acredite se quiser:
Alexandre Ramagem é integrante do órgão até hoje! Os senadores têm mandato de
dois anos, na CCAI; os deputados, um. Vários dos integrantes da CCAI esperam
que a Câmara tenha o bom senso de não reconduzir o deputado bolsonarista. Desde
o início de 2023, Ramagem tem tido acesso privilegiado a tudo o que tramita na
comissão sobre diversas operações em que ele é investigado. Uma situação
anômala, absurda, mas que faz parte da barafunda institucional
brasileira.
·
Uma explicação à
margem da lei
Com a
publicação da reportagem do UOL, nesta terça, o delegado-deputado Ramagem
vestiu o terno da indignação e saiu-se com uma explicação estapafúrdia, em seu
perfil no ex-Twitter: “Estão revelando trabalho de inteligência contra tráfico
de drogas e milícias no Rio de Janeiro. Narrativas não conseguirão negar que
havia trabalho contra essas organizações criminosas iniciado e desenvolvido na
minha gestão”.
Veja no
original:
Parece uma
explicação impecável. Quem, afinal, seria contra o trabalho da ABIN para
desbaratar milícias e quadrilhas de traficantes? O roteiro é ótimo para agitar
as inflamadas redes bolsonaristas. Mas é uma explicação que afronta a
legislação. A ABIN não tem competência legal para combater nem o tráfico nem as
milícias. Fazer isso significa usurpar atribuição de outras instituições e
cometer ato afrontosamente ilegal. Seria o mesmo, mutatis mutandis, que um
dentista fazer uma cirurgia cardíaca.
Imagino
que Ramagem tenha lido em algum momento a Lei 9.983, de 1999, que criou a ABIN
e estabeleceu suas atribuições legais:
“I -
planejar e executar ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise
de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente
da República;
II - planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos
interesses e à segurança do Estado e da sociedade;
III -
avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional;
IV -
promover o desenvolvimento de recursos humanos e da doutrina de inteligência, e
realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento da atividade de
inteligência”.
A
infiltração de agentes da ABIN em quadrilhas e milícias está longe das funções
definidas pela ABIN. Ramagem sabe disso, mas seu texto tem a pretensão de ser
uma cortina de fumaça a tentar causar confusão -em vão nesta altura dos
acontecimentos, ao que tudo indica.
·
Uma operação eleitoral
clandestina: milicianos cabos eleitorais
As
investigações da PF sobre a “Operação 06” de fato apontam para as milícias. Mas
não para o combate a elas. Tratou-se, segundo indícios apurados pelos
policiais, de um esquema de contratação clandestina de cabos eleitorais ligados
às milícias para a campanha de Alexandre Ramagem à Câmara dos Deputados em
2022.
Se era
grande o valor da operação para os padrões da ABIN (R$ 1,5 milhão) segundo a
apuração de Rodrigo Rangel em junho de 2022, o fato é que não se sabe até agora
o montante aplicado no projeto eleitoral clandestino. O que foi investido na
operação “elege Ramagem” ao longo do ano e até as eleições? Este é um mistério
que poderá ser desvendado pela PF.
Não é uma
investigação que caminhe celeremente e sem obstáculos. Não se trata de
policiais federais investigarem funcionários de carreira da ABIN. Os agentes
aparentemente mobilizados na “Operação 6” por Ramagem seriam bolsonaristas dos
quadros da PF requisitados para a ABIN. Ou seja, a PF tem que cortar na própria
carne para levar adiante o caso -o que, sob o manto do corporativismo que
impregna vastos segmentos do país, do Judiciário ao Legislativo passando pelas
polícias e agências de todo tipo, é uma tarefa titânica.
Como
inferir com maior precisão o caráter da “Operação 6”? Minhas fontes no entorno
da investigação não apresentaram qualquer documento que comprove cabalmente,
apenas a informação.
O que fiz?
Examinei em detalhes o mapa da eleição de Ramagem, escrutinado cada zona
eleitoral e seção. Verifiquei que:
1. Ramagem
foi um “candidato de opinião” do bolsonarismo. Ou seja, pingaram votos para ele
em praticamente todas as seções do Rio de Janeiro. Dois votos aqui, quatro
ali…
2. Houve
duas regiões de concentração de seus votos, com números expressivos. a) a
primeira, a Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, área sob controle das
milícias. É na Zona Oeste que se concentra tradicionalmente a votação do clã
Bolsonaro; é lá também a região sob influência de outro clã com conhecidas
ligações com as milícia, o dos irmãos Brazão (Domingos, Chiquinho e Pedro). A
Zona Oeste é o território do agora largamente conhecido Escritório do Crime; b)
a segunda, a cidade de Campos dos Goitacazes, no norte do Estado, município de
grande penetração da extrema direita desde os longínquos tempos do grupo
católico Tradição, Família e Propriedade (TFP). De lá saíram vários ônibus para
a tentativa de golpe de 8 de Janeiro de 2023; lá foram presas várias lideranças
golpistas-bolsonaristas no fim daquele mês; dentre eles, o líder de extrema
direita Carlos Victor de Carvalho, o CVC, que chamou o deputado Carlos Jordy (PL-RJ) de “meu
líder” em conversas pelo whatsapp flagradas pela PF e o subtenente do Corpo de Bombeiros Roberto Henrique de Souza Júnior, suspeito de ser
miliciano.
As
investigações precisam avançar. Há ainda muito a ser revelado sobre uma
operação clandestina que poderá expor as entranhas da ABIN, da conexão da
agência com o núcleo bolsonarista na PF e as milícias do Rio de Janeiro.
Fonte:
Forum
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