sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Mauro Lopes: PF encontra indícios de que Ramagem contratou milicianos para sua campanha com verba secreta da ABIN

As suspeitas são antigas, mas a história só agora começa a ser conhecida mais amplamente. 

A primeira vez que o tema subiu à tona foi em junho de 2022, em pleno governo Bolsonaro, numa reportagem do jornalista Rodrigo Rangel no Metrópoles. “Abin usou verba secreta para atuar em área cobiçada por milícias no RJ”.

Nela, relatava-se uma operação sob comando de Alexandre Ramagem, delegado da Polícia Federal do núcleo duro do bolsonarismo havia, durante seu tempo à frente da ABIN. Ele despejara recursos da verba secreta da agência supostamente “para pagar informantes em comunidades do Rio de Janeiro dominadas pelo tráfico de drogas – e onde as milícias que atuam na cidade têm interesse de entrar”.

A ação foi registrada como “Plano de Operações 06/2021” nos controles da ABIN e hoje é conhecida nos meios políticos e de segurança/inteligência apenas como “Operação 06”.

Na reportagem, Rangel apontou o tamanho e o caráter encoberto da ação: “Como a operação é custeada com verba secreta, é difícil rastrear o caminho do dinheiro que está sendo gasto na operação. A coluna apurou que o valor total empregado até agora se aproxima de R$ 1,5 milhão — uma cifra considerada alta para os padrões da agência em ações de campo”.

No fim do texto, o jornalista plantou a semente de um tema que agora tornou-se uma árvore gigantesca com as investigações da Polícia Federal: era uma operação eleitoral clandestina. “Em conversas internas, agentes chegaram a aventar a hipótese – grave – de que a Abin estaria agindo por interesse eleitoral, na intenção de abrir caminho para que grupos de policiais ligados ao bolsonarismo possam entrar nessas regiões e agir em favor de candidatos aliados do presidente nas próximas eleições. (...) Para além dos interesses eleitorais da própria família presidencial, Ramagem, que deixou a direção da Abin no fim de março, é pré-candidato a deputado federal pelo Rio”.

Publicada em junho de 2022, o tema da reportagem ficou de lado, pela urgência de outras pautas e a apuração aberta por Rangel não foi adiante. 

Mas voltou agora, semente tornada árvore frondosa. 

Nesta terça-feira (6), a jornalista Natália Portinari revelou, no UOL, que a PF teria encontrado na casa de Ramagem, na busca e apreensão realizada em 25 de janeiro deste ano, documentos referentes exatamente à “Operação 06”. Segundo Portinari, “Os papéis encontrados na casa de Ramagem estavam descaracterizados, sem logo ou identificação da Abin, e sem data”.

·        O que descobri

Nesta quarta (6), apurei mais informações que avançam em relação às descobertas de Rangel e Portinari. 

De fato, a “Operação 06”, iniciada em 2021 e que teve seu auge em 2022, era uma operação eleitoral clandestina. Ramagem teria mobilizado agentes no início de 2022 para contratarem milicianos da Zona Oeste do Rio de Janeiro para serem cabos eleitorais de futura campanha.

É o que indicam as investigações recentes da Polícia Federal. 

As desconfianças sobre o caráter da “Operação 06” são partilhadas por diversos parlamentares integrantes da CCAI, Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência. A comissão deveria exercer rigoroso controle externo sobre a ABIN, mas a fragilidade do arcabouço institucional brasileiro faz com que a CCAI não chegue aos pés de suas congêneres em outros parlamentos. 

Em março de 2023, o senador Renan Calheiros, integrante da comissão e que assumirá sua presidência nas próximas semanas, enviou um ofício ao ministro Rui Costa, chefe da Casa Civil, a que está subordinada a Abin, com uma série de questionamentos sobre a “Operação 06”. 

Leia:

“Nos termos do artigo 6º da Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1999, que determina o controle e fiscalização externos das atividades de inteligência pelo Poder Legislativo, bem como com base nos artigos 3º, I, 16 e 17, da Resolução nº 2-CN, integrante do Regimento Comum do Congresso Nacional, que dispõe sobre a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), REQUEIRO ao Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República: 

1 – cópia integral do Plano de Operação 06/21 – ABIN; 

2 – cópias integrais de todos os relatórios produzidos pelos órgãos do Sistema Brasileiro de Informações (SISBIN) sobre - Plano 06/21 da ABIN; 

3 – indicação precisa de todos os destinatários das informações produzidas no âmbito do Plano 06/21 da ABIN; 

4 – dados orçamentários e financeiros, até o nível de elemento de despesa, de todas as atividades do Plano 06/21 da ABIN; 

5 – objetivos, metas e resultados obtidos do Pano 06/21 da ABIN; 

6 – Atividades do Plano 06/21, no exercício de 2022, ou de plano sucedâneo (até 30/04/2023), com as dotações orçamentárias e respectivas execuções; 

7 – relação completa de todas as autoridades e servidores responsáveis pela formulação, execução e controle do Plano 06/21, ou de plano sucedâneo (até 30/04/2023), inclusive na esfera orçamentária e financeira.”

Até hoje a comissão espera pelos dados solicitados. Segundo um deputado que teve acesso às respostas da ABIN, “elas são um amontoado de informações desencontradas que não explicam nada”.

A CCAI é uma comissão mista, integrada por senadores e deputados. Acredite se quiser: Alexandre Ramagem é integrante do órgão até hoje! Os senadores têm mandato de dois anos, na CCAI; os deputados, um. Vários dos integrantes da CCAI esperam que a Câmara tenha o bom senso de não reconduzir o deputado bolsonarista. Desde o início de 2023, Ramagem tem tido acesso privilegiado a tudo o que tramita na comissão sobre diversas operações em que ele é investigado. Uma situação anômala, absurda, mas que faz parte da barafunda institucional brasileira. 

·        Uma explicação à margem da lei

Com a publicação da reportagem do UOL, nesta terça, o delegado-deputado Ramagem vestiu o terno da indignação e saiu-se com uma explicação estapafúrdia, em seu perfil no ex-Twitter: “Estão revelando trabalho de inteligência contra tráfico de drogas e milícias no Rio de Janeiro. Narrativas não conseguirão negar que havia trabalho contra essas organizações criminosas iniciado e desenvolvido na minha gestão”.

Veja no original:

Parece uma explicação impecável. Quem, afinal, seria contra o trabalho da ABIN para desbaratar milícias e quadrilhas de traficantes? O roteiro é ótimo para agitar as inflamadas redes bolsonaristas. Mas é uma explicação que afronta a legislação. A ABIN não tem competência legal para combater nem o tráfico nem as milícias. Fazer isso significa usurpar atribuição de outras instituições e cometer ato afrontosamente ilegal. Seria o mesmo, mutatis mutandis, que um dentista fazer uma cirurgia cardíaca.

Imagino que Ramagem tenha lido em algum momento a Lei 9.983, de 1999, que criou a ABIN e estabeleceu suas atribuições legais:

“I - planejar e executar ações, inclusive sigilosas, relativas à obtenção e análise de dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República;
II - planejar e executar a proteção de conhecimentos sensíveis, relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade;

III - avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional;

IV - promover o desenvolvimento de recursos humanos e da doutrina de inteligência, e realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento da atividade de inteligência”.

A infiltração de agentes da ABIN em quadrilhas e milícias está longe das funções definidas pela ABIN. Ramagem sabe disso, mas seu texto tem a pretensão de ser uma cortina de fumaça a tentar causar confusão -em vão nesta altura dos acontecimentos, ao que tudo indica.

·        Uma operação eleitoral clandestina: milicianos cabos eleitorais

As investigações da PF sobre a “Operação 06” de fato apontam para as milícias. Mas não para o combate a elas. Tratou-se, segundo indícios apurados pelos policiais, de um esquema de contratação clandestina de cabos eleitorais ligados às milícias para a campanha de Alexandre Ramagem à Câmara dos Deputados em 2022. 

Se era grande o valor da operação para os padrões da ABIN (R$ 1,5 milhão) segundo a apuração de Rodrigo Rangel em junho de 2022, o fato é que não se sabe até agora o montante aplicado no projeto eleitoral clandestino. O que foi investido na operação “elege Ramagem” ao longo do ano e até as eleições? Este é um mistério que poderá ser desvendado pela PF.

Não é uma investigação que caminhe celeremente e sem obstáculos. Não se trata de policiais federais investigarem funcionários de carreira da ABIN. Os agentes aparentemente mobilizados na “Operação 6” por Ramagem seriam bolsonaristas dos quadros da PF requisitados para a ABIN. Ou seja, a PF tem que cortar na própria carne para levar adiante o caso -o que, sob o manto do corporativismo que impregna vastos segmentos do país, do Judiciário ao Legislativo passando pelas polícias e agências de todo tipo, é uma tarefa titânica.

Como inferir com maior precisão o caráter da “Operação 6”? Minhas fontes no entorno da investigação não apresentaram qualquer documento que comprove cabalmente, apenas a informação. 

O que fiz? Examinei em detalhes o mapa da eleição de Ramagem, escrutinado cada zona eleitoral e seção. Verifiquei que:

1. Ramagem foi um “candidato de opinião” do bolsonarismo. Ou seja, pingaram votos para ele em praticamente todas as seções do Rio de Janeiro. Dois votos aqui, quatro ali… 

2. Houve duas regiões de concentração de seus votos, com números expressivos. a) a primeira, a Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, área sob controle das milícias. É na Zona Oeste que se concentra tradicionalmente a votação do clã Bolsonaro; é lá também a região sob influência de outro clã com conhecidas ligações com as milícia, o dos irmãos Brazão (Domingos, Chiquinho e Pedro). A Zona Oeste é o território do agora largamente conhecido Escritório do Crime; b) a segunda, a cidade de Campos dos Goitacazes, no norte do Estado, município de grande penetração da extrema direita desde os longínquos tempos do grupo católico Tradição, Família e Propriedade (TFP). De lá saíram vários ônibus para a tentativa de golpe de 8 de Janeiro de 2023; lá foram presas várias lideranças golpistas-bolsonaristas no fim daquele mês; dentre eles, o líder de extrema direita Carlos Victor de Carvalho, o CVC, que chamou o deputado Carlos Jordy (PL-RJ) de “meu líder” em conversas pelo whatsapp flagradas pela PF e o subtenente do Corpo de Bombeiros Roberto Henrique de Souza Júnior, suspeito de ser miliciano.

As investigações precisam avançar. Há ainda muito a ser revelado sobre uma operação clandestina que poderá expor as entranhas da ABIN, da conexão da agência com o núcleo bolsonarista na PF e as milícias do Rio de Janeiro. 

 

Fonte: Forum

 

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